LOCKE (2013)

A personagem principal (o absolutamente magistral Tom Hardy, ator que só falhou nos seus papéis quando foi bom demais) é um homem que, um dia, cometeu um erro e que passa uma viagem de carro de 1h30 a fazer telefonemas para impedir que a sua vida caia em derrocada por completo. Há algumas coisas em filmes que imediatamente me despertam o interesse, e a proximidade ao teatro é uma delas. Adoro coincidências com o tempo diegético, poucas personagens e muitos monólogos, como em "Timecode" (2000), "Den skyldige" (2018) ou "Buried" (2010), e não escondo que aqui também me fascinou muito o processo; durante 6 noites, Tom Hardy interpretava o texto duas vezes na estrada enquanto os atores secundários (Olivia Colman, Andrew Scott, Tom Holland) lhe ligavam em tempo real. Ou seja, o filme foi filmado 12 vezes, o que talvez explique porque, sem sair da autoestrada, ele seja tão bonito. Muito, muito bom.

THE TIME MACHINE (1960)

Apesar da mensagem pacifista e do apelo à responsabilidade humana para não repetir as atrocidades do passado, a forma como mostra o cientista inglês a responsabilizar-se por liderar uma civilização "primitiva" no futuro, alumiando-a com a tocha do progresso, é bem um reflexo direto do colonialismo com inspiração positivista dos séculos passados. Além disso, fica-me a dúvida: se a máquina do tempo atravessa o tempo sem se movimentar, não seria de considerar que as pessoas à volta do cientista (que ele vê moverem-se muito depressa, como num "time-lapse") o veem, mas muito lentamente, como se fosse uma estátua?

ANGEL HEART (1987)

Um ano depois de "9½ Weeks", não seria de esperar um filme com Mickey Rourke que não tivesse uma cena de sexo. "Angel Heart" tem, e é memorável, mas o que impressiona é lembrar como Rourke era um ator delicado, com gestos e expressões quase pueris que dão à sua personagem uma vulnerabilidade marcante. De resto, confesso que o neo-noir não é o meu género preferido, principalmente quando a novidade que poderia trazer — no caso, o subtexto do satanismo — não parece concretizada por completo.

HAIRSPRAY (1988) e CRY-BABY (1990)

Os dois filmes de John Waters que foram adaptados para musicais abordam a cultura teen dos anos 50-60 bem ao jeitinho dele, com muito absurdo, alegria e iconoclastia, mas há uma diferença importante: enquanto "Cry-baby" vai abraçando a loucura devagarinho até uma grande apoteose final, "Hairspray" evita essa vertigem, talvez por tratar o tema bem sério da terrível segregação que se instalou em Baltimore, logo ali tão perto de Washington. .

JOHN ADAMS (2008)

Enquanto John Adams estava no Congresso Continental a tentar aprovar a Declaração de Independência, a sua esposa Abigail decidiu que ela e os filhos iriam vacinar-se contra a varíola. Naquele tempo, isso significava que o médico fazia um corte no braço da pessoa e, com um osso, inseria na ferida pus retirado das pústulas de um doente. Esperava-se que a pessoa vacinada tivesse, durante uns dias, uma variação ligeira da doença, que às vezes não era tão ligeira e podia levar à morte. Boa lição para estes nossos tempos de gente mimada.
(e também: sim, eu li Howard Zinn e entendo bem toda a hipocrisia nesta aventura de homens brancos protestantes; ao mesmo tempo, que rebeldia delirante e que projeto incrível que foram os EUA)

COFFY (1973)

O filme que lançou Pam Grier e uma influência admitida de Tarantino, que o usou como referência para o seu "Jackie Brown" (além, claro, de "Foxy Brown").  "Coffy" mostra-nos que a diferença entre uma atriz atraente e uma "sex symbol" é um papel marcante, e Grier não desperdiça a oportunidade. A forma como manipula as outras personagens com a sua sensualidade para consumar a sua vingança é semelhante à forma como manipula o espectador. Afinal, se Coffy sabe camuflar tão bem as suas reais intenções, será que não está a fazer o mesmo nos momentos em que nos parece ser sincera? Ela até pode tirar a roupa, mas nunca perde o controlo da situação, e isso atinge uma contradição fundamental do género da "blaxploitation": ao mesmo tempo que era gerado no seio de um sistema de produção dominado por homens brancos que criava personagens negras estereotipadas (hipersexualizadas, entregues a uma vida de crime, toxicodependentes, etc), também abordava temas que realmente interessavam ao público negro e, talvez até mais importante, criava heróis e heroínas negras com a capacidade de empoderarem o seu público.

POLYESTER (1981)

John Waters, o "Papa do trash" é um provocador nato. Sempre que vejo um filme dele, lembro-me de um conselho que uma colega de trabalho me deu uma vez: "se a gente não se divertir a fazer isto, ninguém se diverte a ver". Parece que Waters e os seus atores estão em permanente diversão quando montam estas cenas escandalosas, absurdas e cabotinas que parecem fazer com o espectador um pacto silencioso: "relaxem e divirtam-se, que foi o que a gente fez". Porém, também parece que, por trás disso tudo, está um cineasta que adora e conhece intimamente a sua arte. "Polyester" cita William Temple e Douglas Sirk e lembra-nos que a época em que estreou foi a mesma em que, do outro lado do Atlântico, um senhor chamado Pedro Almodóvar começava a fazer longas. .

Eu e as imagens

Sempre vi muitos filmes, sempre vi muitas séries. Quando era adolescente, gravava o "5 Noites, 5 Filmes" para ver no dia seguinte, depois dos trabalhos de casa. Tinha em casa uma estante cheia de VHS's, do chão até ao teto. No mesmo dia, descobria Alain Resnais e revia o Terminator 2. 

Acho que tudo começou quando a minha mãe me levou para ver "Rain Man" no cinema. Estávamos de férias e eu devia ter uns 9, 10 anos. A fila no salão dos bombeiros voluntários de Vila Praia de Âncora era gigantesca e, quando finalmente chegou a nossa vez, o rapaz do outro lado do vidro colocou um letreiro que dizia "lotação esgotada". Não gostei da sensação de querer ver alguma coisa e não conseguir. Às vezes, brinco a sério que estou sempre a tentar entrar no "Rain Man".

Tenho-me armado numa espécie de Roger Ebert da quarentena porque, durante o isolamento, é fácil cair em poços negros dentro e fora de nós. Políticos maus (em mais do que um sentido), gente burra, racismo em Portugal e no Brasil, as contas para pagar, muitos afazeres de trabalho, muitos afazeres do mestrado. Escrever sobre os filmes e séries que vejo à noite ajuda-me a desanuviar a cabeça e permite-me fazer uma espécie de inventário do visto e do pensado (como o meu amigo que colecionava os canhotos de todos os bilhetes de cinema). Gosto muito quando vocês leem, comentam, concordam ou discordam. O mais importante mesmo é curtir junto. Obrigado!

MARADONA BY KUSTURICA (2008)

No ano passado, a HBO deu-nos o excelente "Diego Maradona", que escarafuncha a história do jogador focando principalmente no seu período em Nápoles, mas, 11 anos antes, Emir Kusturica tinha dirigido este documentário mais interessado na personalidade combativa. O filme parece ser um sobrevivente: o realizador sérvio foi afetado pelas crises narcóticas e pelos humores de Maradona, que o fizeram faltar a algumas entrevistas, e ele teve que enchê-lo com animações, visitas a nightclubs temáticos e à Igreja Maradoniana, imagens de arquivo, o Manu Chao e até consigo próprio. É a inclusão do documentarista, à Michael Moore, que salva o documentário: Kusturica é interessante e reflexivo, encontra paralelismos entre a sua obra e aquilo que vê e o seu monólogo dá a coesão que o filme arriscava não ter. O realizador cita muito Borges, mas, revendo a esta distância, lembrou-me mais Ortega y Gasset e o  “yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”. Ao contrário do filme da HBO, o que vemos aqui é o Maradona das suas circunstâncias, preso entre a lenda que é e os fantasmas que carrega, paradoxalmente tentando salvar o mundo à sua volta ao mesmo tempo que dele se esconde. Para terminar, deixo uma pergunta: estou a escrever isto ouvindo a música dos filmes de Kusturica, sim ou não?

THE AMITYVILLE HORROR (1979)

Uma joia da coroa da AIP do Samuel Z. Arkoff, inclui tudo o que parece tema do terror americano dos anos 70: casa assombrada, cristianismo, satanismo e possessão satânica, "slasher", família e crianças, a intervenção sobrenatural que leva à loucura, e por aí segue. Não me parece ter sobrevivido muito bem, principalmente por uma estética meio quadradona que o faz mais parecer um telefilme.

R (2010)

Tobias Lindolhm é um cineasta dinamarquês que já escreveu várias coisas que vocês provavelmente viram ("Borgen", "A Caça", "A Comunidade") e dirigiu outras que vocês ainda vão ver ("Krigen", "Kapringen"). "R" é o seu primeiro filme e o começo da sua colaboração com Pilou Asbæk, que hoje deve estar no pelotão de atores dinamarqueses mais reconhecíveis  logo atrás de Mads Mikkelsen. Não é difícil ver "R" e dizer algo como «um filme de prisão num lugar em que cada preso tem para si um quartinho melhor do que aqueles em que muita gente mora? Uau, deve ser muito difícil». Ironias à parte, o filme é uma análise bem pesada das hierarquias complexas que se criam dentro de uma prisão e termina com uma moral bem clara: por muito que nos imponhamos divisões e diferenças, no fundo somos todos réplicas uns dos outros.

MICHELLE WOLF: JOKE SHOW (2019)

O show da Ilana Glazer foi tão chatinho que achei que merecia algo melhor. Apostei que o especial da Michelle Wolf para o Netflix não me iria decepcionar, e ganhei a aposta. Foi até interessante ver os dois na sequência para perceber o porquê. Wolf fala exatamente sobre os mesmos temas que Glazer — menstruação, feminismo, sexualidade — e vai mais longe, abordando o cancelamento, o estupro e até o aborto que ela fez no passado. A diferença entre as duas comediantes consiste num ponto muito simples: em nenhum momento Glazer põe algo em causa. Ela é um dado adquirido e o mundo não é um problema complexo a ser resolvido, mas um simples pretexto para ela dar a sua opinião. Ora, o show de Wolf é exatamente o oposto. Ela e o mundo aparecem como lugares complexos, onde nada é adquirido e onde é possível fazer punchlines com frases como «as mulheres brancas são as vítimas mais privilegiadas» ou «quando fiz o meu aborto, senti-me poderosa». Como qualquer grande comediante, Wolf deixa-nos pensativos depois de passar 1 hora a fazer-nos sentir o perigo que as palavras podem conter.

STARSHIP TROOPERS (1997)

Se há alguém que se pode queixar de ter sido mal entendido, essa pessoa é Paul Verhoeven. Lembro-me bem de quando este filme estreou e de todas as acusações que o realizador ouviu: efeitos digitais maus e a mais, violência gratuita, elogio ao totalitarismo, e por aí adiante. A grande injustiça é que a ironia de Verhoeven não é tão difícil de compreender. A artificialidade dos efeitos, da história e das personagens e a forma como a nação, a ordem, o militarismo e o ódio ao inimigo são exaltados em excertos de noticiários (como ele já tinha feito em "Robocop") diz-nos outra coisa: «este filme é fascista porque ele faz parte de um sistema de imaginário — o cinema, a informação, as imagens que vocês veem — que é fascista». Torcemos pelos heróis de Verhoeven, porque queremos que o herói vença, mas, ao mesmo tempo, reconhecemos o absurdo do imperialismo militarista de que eles fazem parte porque o realizador deixa evidente que o meio audiovisual é um elemento fundamental para a construção desse imperialismo. Verhoeven foi castigado por ter colocado o género e o espectador moralmente em causa, e isso não se lhe podia permitir.

ILANA GLAZER: THE PLANET IS BURNING (2020)

Gostava muito de "Broad City", principalmente das primeiras temporadas. Por isso, quando vi este especial de stand-up da Ilana Glazer no catálogo da Amazon Prime, não resisti, mas antes tivesse resistido. Glazer tem um grande problema que nunca consegue resolver (apesar de começar o "set" falando sobre ele): a distância entre a sua personagem na série e ela própria. O seu "delivery" do texto é preguiçoso, como se ela não tivesse conseguido dominar o tempo específico do stand-up, e, enquanto fala sobre menstruação e sexualidade, não diz nada de novo ou de particularmente engraçado. Além disso, o público não ajuda. Aquelas pessoas estão lá mais para ver Glazer, rainha dessa espécie em vias de extinção que é o hipster de Brooklyn, do que para ouvir o seu número. É só ela gritar «xana!» ou «gosto 60% de homens e 40% de mulheres» que toda a gente irrompe numa saraivada de aplausos e vivas. Muito, muito fraquinho.

THE HATER (2020)

Conhecido no Brasil como "Rede do Ódio", é um filme que vem a calhar para estes tempos de divisões e que mostra bem como as redes sociais — surgidas como promessa de uma comunicação sem obstáculos entre as pessoas — são espaços de manipulação e distorção com consequências terríveis no mundo. Uma espécie de "Nightcrawler" (2014) do mundo digital, não resiste a alguns clichês, mas é interessante na sua crítica ao jogo político, da esquerda caviar à direita nacionalista, e termina com uma moral curiosa: num mundo de imagens, quem se esconde é rei.

MA LOUTE (2016)

Foi-me recomendado este filme que o Bruno Dumont filmou entre Quinquin e Coincoin. Há algo em Dumont que me lembra o saudoso João César Monteiro: a capacidade subversiva de impor um ritmo lento, que intriga e faz com que nos surpreendamos ainda mais quando algum absurdo aparece. Pensamos outra e outra vez "peraí, eu vi mesmo aquilo que penso que vi?" enquanto Dumont nos vai atirando realismo mágico, canibalismo, uma aristocracia podre e incestuosa, referências cinéfilas (Laurel & Hardy, "O Atalante") e assassinatos mil. Como nas suas séries, a história é um pretexto que serve para nos presentear com tudo isso e que não precisa de um fim convencional. Divertidíssimo.

CAR WASH (1976)

Ao ver esta comédia de "blaxploitation" que passava em sessões da tarde na televisão, dei por mim a pensar em que momento é que nos perdemos de nós mesmos. O filme é bem simples: um dia numa lavadora de carros, acompanhando os empregados, o chefe e os clientes. Há uma prostituta, um ex-presidiário, um latino, um nativo americano, uma transsexual, um revolucionário negro e um universitário riquinho maoista. O patrão sai com a balconista às escondidas e queixa-se de ganhar pouco dinheiro. Enquanto o disco e o funk-soul passam na rádio, os empregados armam partidas uns aos outros e tentam animar as horas. Os pequenos dramas e comédias dessa gente passam à frente dos nossos olhos sem ironia, sem julgamento, num roteiro sem firulas escrito pelo — surpresa — Joel Schumacher. Por trás da sua aparência falsamente bobinha, "Car Wash" é um filme absolutamente real, feito por quem soube observar a vida e fazer comédia com isso. É melhor do que carregamentos inteiros de coisas que se produzem por aí até hoje.

THE WOMAN IN BLACK (1989)

Antes do filme de 2012 com Daniel Radcliffe, o romance de Susan Hill foi adaptado para um telefilme da ITV que, numa decisão histórica de programação, o transmitiu na noite do dia 24 de Dezembro, aterrorizando crianças e estragando o Natal das famílias do Reino Unido. Naturalmente, o orçamento foi menor do que o do seu irmão mais novo, e os efeitos especiais não são tão desenvolvidos, mas a austeridade fica-lhe bem: a história é enxuta, sem tempo para se distrair com acessórios, a construção da tensão é imaculada e diria mesmo que o paralelismo entre assombração e perda da sanidade é mais bem conseguido.

DELLAMORTE DELLAMORE (1994)

Este filme italiano, realizado por um colaborador de Dario Argento e com Rupert Everett no papel principal, adapta o romance do mesmo nome de Tiziano Sclavi, mas também se inspira livremente numa banda desenhada chamada "Dylan Dog", criada pelo mesmo Tiziano Sclavi e com um protagonista inspirado no próprio Rupert Everett. Começa parecendo uma comédia de terror à "The Evil Dead". Um pouco depois, parece que vamos afinal ver um "gothic horror" à Mario Bava... ou talvez um terror erótico à Jess Franco? Mas o erotismo dura pouco e retrocede para o que parece uma sátira política. Mais um pouco e estamos em plena "Night of the Living Dead", mas, no final, parece que o que vimos foi um thriller psicológico. Se isso vos faz pensar que talvez seja incoerente, desenganem-se. Sob a capa de série B "eurotrash", "Dellamorte Dellamore" é apenas um filme incrível.

SE TIL VENSTRE, DER ER EN SVENSKER (2003)

O mundo roda, as epidemias mudam e é fácil a gente esquecer-se como, em 2003, ser infetado com o HIV ainda parecia uma sentença de morte ou, pelo menos, de uma qualidade de vida muito inferior. Não que este filme Dogma faça disso uma tragédia à "Les Nuits Fauves", muito pelo contrário: é uma comédia romântica leve e humana, muito mais na linha de Lone Sherfig do que na de von Trier e Vinterberg. Seis anos depois de começar, o Dogma já não sobrevivia bem e levava a histórias, lugares e emoções que já pareciam vistas, mas o seu efeito "corretivo" no cinema dinamarquês e mundial era incontornável. O movimento esgotara-se, não porque morrera, mas porque fora absorvido.