A nova música dos Beatles

Os filmes de O Senhor dos Anéis geraram uma série de eventos que, de alguma forma, nos permitiu ter esta música hoje. Acho isso fascinante.

Feriado

Dia de tomar café na padaria, entre a classe média alta paulistana. 

Na mesa dum lado, uma velha desabafava com a garçonete. Ela acha que a sua empregada doméstica "tá roubando". Deve ter vindo falar disso na padaria porque em casa mais ninguém tem paciência para a ouvir.
 
Do outro lado, um casal. Ela queixando-se dum colega de trabalho. Ele com medo de que o sogro deixe o apartamento na praia para o cunhado no testamento.
 
Que mundo de gente pequena. Ser rico é ter segurança? Então ali é tudo pobre. "Ser livre é não ter medo" (Nina Simone).
 
A velha só tomou um café e foi-se embora. 

O casal fez um pedido enorme e ficou muito desapontado por não haver rabanada.

Joe Pera Talks With You (2018-2021)

Há uma semana exata, vi uma entrevista engraçadíssima de Joe Pera ao Seth Meyers. Ela levou-me até à série dele, Joe Pera Talks With You (originalmente do Adult Swim; no Brasil, está na HBO Max). Feita de três temporadas com episódios minúsculos, de 11 minutos, esperava que fosse só uma comédia divertida para relaxar um pouco depois de jantar, mas veio-me uma das produções de televisão mais perfeitas que alguma vez me passou pela frente. 
 
Parece um exagero, mas realmente não é. Não imagino como um episódio de televisão possa ser melhor do que, por exemplo, Joe Pera Reads You The Church Announcements, o sexto da primeira temporada, que tem uma classificação de 9,6 no IMDB. 
 
São episódios escritos com a precisão de um relógio, mas filmados e editados com tempo para respirar. O tom é carinhoso, lembra Derek e certamente influenciou Ted Lasso, mas o pé fica no chão, junto da comunidade que a inspirou e onde foi gravada, com aquela quarta parede translúcida ao jeito de P'tit Quinquin. Impressiona (ou talvez não) que uma história simultaneamente tão real e tão carinhosa, que passa o tempo a dizer-nos que os absurdos do mundo são para atravessar juntos, tenha surgido durante a presidência Trump. É um abraço em forma de série como nunca vi e não a posso recomendar mais.

Os ecologistas

Pessoas que conheço conseguiram emplacar uma série portuguesa de sucesso internacional na Netflix — e ficam já aqui os meus abraços de parabéns para todos.

Então, porque leio tantas opiniões do estilo «ah, mas a série devia ser assim e assado»? E porque o "assim e assado" parece coincidir com as características daqueles filmes portugueses que se dão por satisfeitos com 2 mil bilhetes vendidos ou daquelas séries que batalham para conquistar umas poucas centenas de milhar de espectadores?

Estou certo que quem critica não deixou passar nenhuma destas obras. Foram ver todas ao cinema e estiveram atentos sempre que um novo episódio estreou na televisão. Dito isso, eu não tenho nada contra nichos. Estou em vários, e vejo muitas dessas coisas que são pouco vistas. O que não entendo é porque neste caso a conversa é centrada na imposição de um padrão sobre a obra, a ver se encaixa, como um acetato num retroprojetor das antigas. Tenho a sensação que, nos últimos dias, li dezenas de variações da frase "a série fez sucesso, mas não é X".

O X pode ser a teoria de autor francesa, as formulações de Adorno sobre a cultura de massas ou o modelo narrativo hollywoodiano. Pode até ser outra série que se apreciou no passado e se tornou sombra da caverna de Platão particular que cada um carrega.

Outras coisas engrossam a mistura. Algumas são feias, como a inveja de quem não percebe que, em audiovisual, um sucesso é o que é preciso para puxar outros. Outras são pouco faladas, como a provável habituação do espectador a uma dose de "estrangeiro" — rostos, vozes, lugares, pensamento narrativo — na ficção.

Em vez do "vi e não gostei" (sempre legítimo, expectável, sem novidade), acho mais interessante perguntar porque finalmente uma série portuguesa se deu bem. «Ah, porque foi feita para o grande público». E qual série não é? Em Portugal ou fora dele, quantos filmes "feitos para o grande público" não afundaram na bilheteira e quantos filmes "de arte" não se deram bem? A divisão entre arte e público está tão gasta quanto o monóculo do Fritz Lang.

É preciso firmar a noção de que há diferentes modos de ver e que, em si mesmos, eles não são necessariamente maus ou bons. O mesmo raciocínio vale para o exemplo da poesia: não é porque chegamos a Mallarmé que não conseguiremos mais apreciar António Aleixo. A verdadeira conquista da literacia, mais do que o entendimento do complexo, é essa sensibilidade versátil. Não vale a pena dizer "Pacifiction é bom, mas não é MCU", tal como não faria sentido o contrário. Aliás, eu já não sei muito bem se "bom" e "mau" são conceitos que façam muito sentido nestas coisas. Identificar o modo de ver adequado para determinada obra e se ela é interessante nele parece mais acertado.

É verdade que o êxito e o fracasso dependem de muita coisa. Caprichos de programação ou distribuição, notícias de mexericos coladas à estreia, catástrofes que desviam a atenção do público. Abstraindo destes, formulo a seguinte hipótese: uma obra audiovisual tem sucesso quando é eficaz a provocar o gozo.

O gozo pode vir da história interessante ou do elenco carismático, do conhecimento de uma realidade nova ou duma catarse poderosa, do prazer estético provocado pela imagem ou da cadência dos diálogos. É um intangível, uma equação e um mistério que se resolve artisticamente (mesmo em obras feitas para o "grande público") e que depende do acerto de múltiplos olhares.

Vai do olhar de quem faz o casting ao de quem maquia os atores. Do de quem desenha a produção ao do motorista que um dia andou um bocado mais depressa só para a diária não atrasar. Do de quem inventou uma forma de escrever um mundo ao de quem decide como montar um enquadramento.

As coisas vão-se encaixando e, às vezes, encaixam com o público. Rabo de Peixe encaixou com o público da Netflix. Uma história de crime interessante, inspirada em fatos reais curiosos, com um elenco bonito e empático, num cenário belo e cruel que combina com o tema aspiracional.

Teve sorte de não ter rivalizado na mesma semana com uma grande estreia na plataforma? Talvez, mas, como se diz por aí, sorte é o encontro da preparação com a oportunidade. É uma obra que conseguiu provocar o gozo dos seus espectadores. Bravo!

Uma vez, vi uma palestra do António-Pedro Vasconcelos em que ele contou uma história muito curiosa (repetiu-a numa entrevista ao Jorge Leitão Ramos): quando estava em pré-produção para o Aqui d'El Rei!, obra de grande orçamento para a época, o Paulo Rocha disse que era preciso impedi-lo porque esse filme destruiria «o equilíbrio ecológico do cinema português». Às vezes, quando leio o que se escreve sobre quem fez algo bem e com proveito, penso se o mundo não andará é cheio de ecologistas.

Os anos do fermento

Durante as quarentenas da pandemia, fui daqueles que tentaram aprender a fazer pão, mas não consegui fazer crescer nenhum fermento. Não sabia do que estava atrás, não entendia os tempos e ritmos da coisa e 99,9% dos pães saíram-me solados.

Mas as tentativas frustradas aguçaram-me o jeito para mexer na farinha. Aprendi a fazer massa para pizzas, calzones, tortillas, empanadas. Fiz-me amigo do fermento seco, muito mais rápido e menos caprichoso do que o natural. Há uns meses, comecei a fazer uma receita de pão turco e percebi como a massa era versátil. Adaptei-a para farinha integral e, desde então, quase não comemos pão aqui em casa que não seja feito por mim.

Porém, os levains falhados sempre me tinham ficado na memória. Uma daquelas chatices no fundo da mente, a rirem-se e a dizerem "ahah, não conseguiste". Então, este mês, com os dias mais quentes, voltei à carga.

Na primeira tentativa, armei-me em esperto. Encontrei uma receita famosa de levain que pedia suco de abacaxi, mas não me apeteceu ir comprar um e substituí-o por mel. Resultado: não funcionou. Uma semana depois, o fermento não mostrava atividade nenhuma.

Continuava a não ter vontade de ir atrás de um abacaxi, então procurei uma nova receita. Encontrei a da Marina Leão, que começa a cultura com maçã fermentada e usa relativamente pouca farinha ao longo do processo.

Experimentei. Depois de deixar a maçã cortada em água durante uma semana, juntei o líquido à farinha e comecei a espera. Nos primeiros dias, as bactérias frescas que sobraram da fruta mexeram-se bem, mas a memória dos falhanços anteriores levou-me a introduzir uma variação no processo: em vez de depender de um único fermento, aproveitei o que seria o descarte de um dia para criar uma segunda cultura. As duas ficavam cobertas com um pano e fechadas na panela de ferro durante a noite. No dia seguinte, descartava a cultura que tivesse subido menos, dividia a mais poderosa em duas e assim por diante. Em suma, fiz a seleção natural trabalhar por mim.

Mesmo assim, uma semana depois, pareceu-me que o fermento subia bem menos do que deveria. Dobrar de tamanho, então, nem vê-lo. Ontem de manhã, as culturas estavam tristemente como as tinha deixado na noite anterior.

"Mais um fracasso. Tudo bem, ano que vem experimento de novo. Vou deixar isto aqui e logo à noite deito fora".

Não sei se foi porque as bactérias ainda estavam a batalhar pela supremacia ou porque o frio inesperado deste Carnaval as atrapalhou, mas, quando abri de novo a panela de ferro à noite, os dois fermentos tinham subido até sujar o pano que os cobria. Não conseguia acreditar.

Seria só um estertor desesperado antes da morte? Para ter certeza, de novo dividi o fermento que parecia mais robusto, alimentei-o e fechei-o na panela. Hoje de manhã, estava alto, borbulhante, em formato de teia. Enfim, um levain.

Não sei ainda se vou conseguir sacar um pão bom disto. Prevejo muitos erros e acertos até conseguir acertar a receita. De qualquer forma, a lição que fica é clara: tudo se aprende e todos somos capazes de fazer qualquer coisa. Pode demorar alguns anos, mas tempo há sempre; a paciência é que não pode faltar.

Tempo, narrativa e Sex and The City

Só agora assisti And Just Like That, a continuação de Sex and The City de final de 2021. Curiosamente, enquanto a via, dei por mim a pensar no tempo. Explico-me.

O tempo, em si mesmo, não existe fora da invenção humana. Falo dos relojoeiros do século XVI, dos assírios sexagesimais mas, principalmente, falo da nossa capacidade enquanto espécie para produzir os conceitos de antes, agora e depois. 

Antes dos relógios e dos calendários, antes de definirmos o segundo como «a duração de 9 192 631 770 períodos da radiação correspondente à transição entre os dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133», o que nós tínhamos, e temos, é a narrativa. "Isto aconteceu a tal pessoa, ela reagiu assim e tudo acabou assado": antes, durante e depois.  Ao articular eventos numa sequência temporal, criamos aquilo a que Ricœur chamava "tempo humano".

Ricœur também dizia que, «em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal». Eu vou fazer uma leitura enviesada desta frase e propor que retiremos dela não só que as histórias criam o seu próprio tempo (o narrativo), mas também algo mais prosaico: que elas enformam o modo como vivemos o tempo que vivemos.

Antes do nosso primeiro beijo, quantos vimos na televisão e no cinema? Antes de perdermos alguém pela primeira vez, quantas vezes já tínhamos ensaiado mentalmente a experiência de perda, de Bambi a ET passando pela Capucinho Vermelho? 

No seu "Story", o Robert McKee cita Kenneth Burke para nos dizer que as histórias são «equipamento para viver». Isso encaixa com a etimologia de "narrativa": do sânscrito “gnâ” até aos latinos “narro” e “gnarus”, a palavra carrega consigo o "conhecer" e o "saber". De livros, filmes e séries até um cochicho ouvido de um colega de trabalho, histórias são pequenas lições que nos dizem "vive isto desta maneira". Aristóteles dizia que as pessoas “gostam de ver as imagens porque, olhando-as, têm oportunidade de aprender e de raciocinar sobre cada um dos elementos”. As histórias servem como uma espécie de vacina emocional e intelectual, que nos permite experimentar situações antes de as vivermos e refletir sobre como nos devemos comportar se e quando elas acontecerem. 

Os manuais de escrita para audiovisual seguiram a tendência da nova "Golden Age of Television" e disseram-nos que a narrativa televisiva não fica atrás da cinematográfica. Talvez por isso esta particularidade não costuma ser abordada neles, mas acho que, em termos daquilo que ela tem a oferecer ao público, a série de televisão possui uma aptidão particular. 

Como se prolonga no tempo, a série enreda-se na nossa vida. A sua contemporaneidade pode sugerir-nos como viver o cotidiano ao mesmo tempo que se enrosca nele. Está mais próxima do cochicho do colega de trabalho do que da epopeia, e este lado prosaico não é menos importante por sê-lo. Sex and The City podia não ter a importância ou a ambição de Romeu e Julieta, mas o que é mais provável nesta vida: que uma pessoa não goste do rabo do namorado novo ou que viva um amor trágico que leva ao suicídio?

Em "Homens Difíceis", um dos melhores livros que se escreveu sobre a televisão do século XXI, Brett Martin não tem grandes elogios para Sex and the City, mas até ele reconhece que as personagens da série «conversavam mais abertamente, sem dúvida sobre coisas do corpo, mas também sobre seus desejos e insatisfações fora do quarto, do que as mulheres jamais tinham falado na TV até então».

Essa, parece-me, é a razão por que Sex and The City foi melhor série do que alguma vez foi filme. O cinema pede que as suas afirmações sejam definitivas. Mesmo que um filme tenha um final em aberto, os significados que ele implica devem ficar claros para o espectador. Porém, é bem possível que o tema principal de Sex and The City seja precisamente a conversa. 

Da Lisístrata de Aristófanes até ao mais recente filme de Sarah Polley, Women Talking, 2500 anos de representações mostram-nos que o simples encontro de mulheres para conversar pode ser um ato profundamente subversivo. Consideremos que, quando Sex and the City estreou em 1998, ainda não passara um século desde a conquista do direito ao voto pelas sufragistas dos EUA. Para ocupar um lugar relevante na cultura popular, Sex and the City não precisou mais do que mostrar um grupo de amigas solteiras e independentes compartilhando a sua experiência afetiva e sexual na cidade contemporânea. Até as futilidades - os vestidos, os restaurantes, os cosmopolitans - eram as futilidades delas

Mas essa conversa precisava do tempo do cotidiano - o tempo da série - para se afirmar. Sem ele, os filmes acabaram focando nas histórias de amor, principalmente na de Carrie com Big. Não há nada de intrinsecamente mau em comédias românticas, mas, no cinema, Sex and the City perdeu força; virou menos Monólogos da Vagina e mais Cinderela. 

And Just Like That parece ter entendido que isso aconteceu e talvez por isso a comunicação seja um dos seus assuntos principais. Podcasts, ligações perdidas, amigas distantes, "como eu devo dizer isto para o meu marido?", "a minha filha não quer conversar comigo". As personagens principais chegaram à meia-idade e descobrem novas formas de conversar umas com as outras. Enquanto isso, a experiência feminina do tempo urbano volta a ganhar destaque em relação às histórias de amor. 

É injusto louvar a passagem dos anos no Boyhood do Linklater e não fazer o mesmo com And Just Like That. Seria ainda mais injusto não reconhecer que esta continuação reaproxima a história de Carrie e suas amigas do que ela nunca deveria ter deixado de ser: equipamento para a vida.

CINEMEMÓRIAS #2: El Secreto De Sus Ojos

São Paulo, 2010.

Terá sido o primeiro filme argentino que vi no cinema? É bem possível, mas não é por isso que ele está aqui. Aliás, não o achei assim tão memorável (exceção feita ao plano-sequência do estádio, claro; também não sou maluco). Mas lembro bem de quando o vi. Estava sozinho e era uma sessão bem tardia, quase de meia noite, bem do jeito que gosto. Desci a Augusta, comprei o bilhete, tomei um expresso num cafezinho bem agradável com quadros do Fellini e, quando já estava quase na hora, subi uma escada apertada até uma sala bem escura e pequenina. 

O filme não foi memorável, mas a sessão sim. Aquele lugar, àquela hora, estava cheio do mistério que o cinema às vezes tem. Há muita diversão à noite, muitos convites e possibilidades. Quem vai ao cinema à meia-noite renuncia. O público não se fala, mas sabe-se cúmplice e igual. Toda a gente ali era bicho de filme, uma mariposa hipnotizada por uma luz que brilha no escuro. É nesses momentos que o cinema nos dá a sua transcendência. Uma missa laica que se parece com os nossos sonhos.

El Secreto De Sus Ojos foi o primeiro filme que vi no Anexo do Itaú da Augusta, que acabou de fechar para dar lugar a um empreendimento imobiliário, provavelmente mais um prédio igual a todos os que têm pipocado por esta cidade, com muitas áreas comuns e muitos apartamentos de 35 a 45m². 

Depois dos 40 anos, já não tenho grandes pretensões em virar um magnata, mas, se virasse, sei o que faria: compraria empreendimentos imobiliários e transformá-los-ia em cinemas.

CINEMEMÓRIAS #1: Rain Man

Vila Praia de Âncora, 1989

— Não sei se vamos conseguir.
Eu e a minha mãe estávamos na varandinha da casa que alugamos naquele verão. O cineteatro dos bombeiros era alguns números mais à frente, e a fila para a bilheteria saía pela porta. Nunca vira isso nas poucas vezes que fora ao cinema.
— Vamos tentar. Queria muito ver o Rain Man, mas só tenho 8 anos. Não me vão deixar entrar sozinho.
Eu ainda não sabia do que a minha mãe falava: da pequena tragédia de uma sala vender todos os bilhetes e não conseguirmos entrar. Como assim, não conseguirmos entrar? No máximo, sentamo-nos no chão, não? 
A minha mãe sorriu.
— Vamos lá. 
Descemos a rua e enfrentamos a fila durante o que me pareceu horas (devem ter sido 30 minutos). Era lenta, mas andava.  
— Talvez nos safemos, disse a minha mãe.
O vidro da bilheteira estava cada vez mais próximo. Não havia mais sessões: era aquela ou esperar o filme passar na televisão. Para uma criança de 8 anos em Monção, ir ao clube de vídeo não era muito prático. Nem lembro se a minha pequena terra o tinha na época; se sim, também nada garantia que o filme estivesse lá.
A nossa vez finalmente chegou, e tudo parecia bem. "Ganhamos", pensei. Mas, antes que a minha mãe conseguisse pedir os bilhetes, o funcionário pendurou um letreiro no vidro: LOTAÇÃO ESGOTADA. 
Não era justo. Tanta gente lá dentro que certamente não queria ver o filme tanto quanto eu: por que eles podiam entrar e eu não? Naquela noite, eu criança aprendi algo sobre como o mundo funciona.
Anos depois, o filme passou na televisão e, desde então, vi-o muitas vezes.
Na última, já adulto, veio-me um pensamento: "será que eu vejo tantos filmes porque estou sempre tentando entrar no Rain Man?".
O certo é que nunca mais esqueci aquele maldito letreiro.

A minha lista dos melhores de 2022

Este ano, decidi fazer isto de forma um pouco diferente: o critério que escolhi foi «quais filmes e séries deste ano não me saem da cabeça e por quê?». Aviso que sou liberal em relação às datas: se eu vi este ano e estrearam em algum lugar este ano (mesmo que não em estreia mundial), entram.

15. COMPETENCIA OFICIAL e THE OFFER
O primeiro é uma comédia ácida sobre o processo de construção de um filme por dois atores egocêntricos e uma diretora caprichosa. O segundo é uma série que conta a história da produção de "The Godfather". 
À sua maneira, ambos mostram na perfeição as alegrias, tristezas e loucuras do trabalho no audiovisual.

14. SWAN SONG e BRIAN AND CHARLES
Duas comédias melancólicas sobre solidão. "Swan Song" é a celebração merecida do grandioso Udo Kier no papel de um cabeleireiro e ex "drag queen" idoso. A cena em que, de um banco de jardim, ele contempla um casal de homens passeando com os seus filhos e diz «eu não saberia mais como ser gay» é inesquecível. 
"Brian and Charles" é um "mockumentary" sobre um homem na Inglaterra rural que constrói um robô para o ajudar nas tarefas de casa e acaba por mudar a sua vida além do que esperava. Muito gervaisiano e muito bonito.

13. WHITE LOTUS, TEMPORADA 2
Coloco-a aqui principalmente por causa de Jennifer Coolidge. Ela já tinha relançado a carreira com a primeira temporada, mas os episódios deste ano mostraram o seu brilhantismo, até porque, pareceu-me, a sua personagem Tanya não estava tão bem escrita quanto em 2021. Coolidge poderia ter interpretado Tanya como simplesmente mais uma mulher rica e fútil, mas ela consegue transformar a futilidade e a apatia na ponta visível de um gigantesco iceberg emocional, uma dor que passeia pelo mundo com vestidos caros e maquiagem pesada num rosto que às vezes parece a máscara clássica da Comédia e, no minuto seguinte, a da Tragédia. Não consegui cansar-me de vê-la.

12. RESURRECTION e BLONDE
Dois filmes que falam de violência contra mulheres de formas pouco óbvias. "Resurrection" retrata uma relação de dominação e submissão de uma forma que nunca vi em cinema, principalmente porque livre do folclore do "bondage" e outras ideias feitas sobre BDSM. 
"Blonde", mais do que um "biopic", é uma leitura da figura de Marilyn Monroe a partir do seu corpo: um corpo do qual a verdadeira Marilyn nunca poderia dispor porque, no imaginário popular e no mundo real, ele existia para ser violado.

11. ORANGES SANGUINES
Uma mistura de "Relatos Selvagens" com "Happiness". Uma comédia tão ácida que só lhe falta espremer as suas personagens para o nosso bel-prazer. 

10. BARDO, FALSA CRÓNICA DE UNAS CUANTAS VERDADES
«Pretensioso» é uma crítica que se ouve muito por aí, por exemplo, quando um filme leva as suas aspirações artísticas muito longe. Eu não gosto dela, porque diz muito pouco. Exatamente a partir de que momento é que algo é pretensioso? De quem é a sensibilidade definitiva que diz se se foi longe demais ou não? "Bardo" poderia facilmente ser chamado de pretensioso. Porém, são muito raros os filmes que, sempre que um plano começa, deixam o espectador em pulgas para ver como vai acabar. Iñarritu rouba inspirações de Fellini aos Radiohead, e ainda bem que o fez: se este filme fosse uma praça, caberiam nele muito mais do que três culturas.

9. SEVERANCE
Uma temporada construída ao pormenor e com a precisão de um relógio até chegar a um episódio final que me fez sentir o coração bater dentro do peito. Ao ensinar sobre suspense na universidade, fale-se de Hitchcock, mas fale-se também de "Severance".

8. THE BANSHEES OF INISHERIN
Sou daqueles que acham que qualquer obra do Martin McDonagh deve ser celebrada. Esta, com pessoas a discutirem por insignificâncias e a recusarem conversar umas com as outras — tudo isso enquanto uma guerra está a acontecer — pareceu-me uma metáfora perfeita para uma época em que as formas de socializar e comunicar foram irremediavelmente afetadas pelos vícios das redes sociais.

7. THE SOUVENIR: PART II
Acho que é preciso ver esta segunda parte para entender bem o jogo de espelhos no díptico da diretora Joanna Hogg. Hogg faz um filme autobiográfico sobre uma diretora que faz um filme autobiográfico: um curta-metragem de fim de curso. Ora, este filme é uma adaptação do curta-metragem de fim de curso de Hogg, "Caprice", que foi protagonizado por Tilda Swinton, sua amiga há décadas. Na vida real, Swinton é mãe da atriz principal de "The Souvenir" e, por acaso, também interpreta a sua mãe ficcional (só que, no caso, esta seria a mãe de Hogg). Ou seja, mais do que um filme que expõe uma cronologia, Hogg trouxe a sua vida para dentro do seu cinema, ligando os dois inextricavelmente. 

6. YOU WON’T BE ALONE
É o melhor filme de terror que vi esse ano e, ao mesmo tempo, é uma pena dizer isso, porque vai afastar muita gente que rejeita o gênero. Esta história de uma moça que se torna bruxa contra a sua vontade fala sobre identidade de gênero, sororidade e crescimento de maneira muito sensível e bela. 

5. TRIANGLE OF SADNESS
Os filmes de Ruben Östlund não são apenas extremamente bem feitos: são também um desafio muito estimulante para o espectador. É divertido que um dos cineastas mais celebrados do cinema europeu atual seja também um dos seus maiores provocadores.

4. RIGET: EXODUS
Lars von Trier termina a sua série 25 anos depois do final suspenso da segunda temporada. Gosto muito dos projetos mais dinamarqueses do von Trier, porque parece-me que, sem a pressão dum público internacional, ele fica solto e mais disposto a arriscar. Se "Riget" sempre teve uma grande dose de autoironia, esta terceira temporada leva-a ao delírio. É absurda, inconstante, brincalhona, assustadora e o claro produto de um gênio que, na maturidade, parece tão inquieto e iconoclasta quanto sempre.

3. EVERYTHING EVERYWHERE ALL AT ONCE
Os Daniels são criadores audiovisuais inesperados e poderosos, capazes de nos fazerem rir enquanto olhamos para duas pedras e chorar com pessoas que têm dedos de salsicha. Com este filme, eles concorrem ao lugar de Fellini do nosso tempo, criando imagens que não só parecem sonhos como parecem querer ensinar-nos a sonhar.

2. SUNDOWN
Quem é este homem silencioso, este estrangeiro camusiano que parece perder-se da vida nas praias de Acapulco? Tim Roth é um portento neste filme que surpreende a cada volta. Levou-me a ver toda a obra de Michel Franco e tenho uma certeza: Haneke mexicano ou não, é dos melhores escritores de filmes da atualidade.

1. THE REHEARSAL
É normal que alguém se pergunte «quero contar esta história: qual o melhor formato e gênero para contá-la?». Normalmente, isso implica pensar em termos de comédia ou drama, filme ou série de televisão. Porém, para Nathan Fielder, "The Rehearsal" pareceu ter implicado algo assim: «para contar uma história sobre o meu encontro com a ideia de paternidade e a relevância das projeções de mim mesmo na amálgama de coisas que me fazem, o melhor é usar a própria materialidade do gênero do reality como instrumento narrativo».

O jogo com o simulacro já não existe, como em "Nathan For You", no sentido da subversão que revela o novo significado da verdade no mundo do ciclo noticioso de 24 horas e das mídias sociais. Aqui as simulações servem como ensaios de vida que acabam construindo uma viagem pessoal marcada pela autoperformatividade. E a subversão de Fielder é feita de outra forma. Primeiro, ele adota uma linguagem audiovisual popular — a do "reality" de confinamento — e resgata-a da ideia de concurso para se revelar a si mesmo enquanto personagem. Depois, ele prova que essa confusão entre realidade e ficção é o melhor caminho para contar a história da germinação da sua verdade pessoal. O "ensaio" é montado para externar uma ficção imaginada por Fielder para si mesmo e que, por isso mesmo, é tão ficção quanto realidade.

Enquanto contador de histórias, Fielder trabalha num nível narrativo diferente do normal e completamente inesperado neste contexto televisivo. É o nível em que reconhecemos o real na ficção (como naqueles momentos de um filme em que um ator não se contém e ri de uma piada) e a ficção no real (como a estrutura ficcional construída sobre o mundo por uma teoria da conspiração). Por isso, discutir se o que vemos em "The Rehearsal" é verdade ou mentira não é tão interessante quanto perceber que Fielder reconfigura os gêneros até nos fazer questionar, não só os seus limites, mas o que realmente ideias como "ficção", "realidade", "verdade" e "mentira" significam no audiovisual. É por isso que o coloco no topo da minha lista de 2022.

A rede dos desastres

Lembro-me de ter lido há anos que a Web é feita de nostalgia e imagens de gatos. Esses seriam os dois significantes principais dela, as duas coisas em que pensaríamos quando pensamos nela. Acho que o autor do texto não mencionava a pornografia, certamente porque não queria correr o risco de não ser levado a sério. Poderia também ter falado das teorias da conspiração, que andam por aqui desde os fóruns dedicados aos X-Files e ao "The Shining". 

Anos depois, as redes sociais da Web 2.0, que cresceram paralelamente à ascensão da direita autoritária pelo mundo, adicionaram à mistura a intolerância e o radicalismo. Não que eles já não andassem por aqui, mas talvez não fossem uma componente imprescindível de uma vivência on-line. Hoje, porém, qualquer pessoa se lembra da primeira vez que ensaiou uma palavra de indignação sobre Bolsonaro, ou Trump, ou Orban, ou André Ventura, e foi alvo de comentários indignados e raivosos de parentes ou conhecidos que, até então, considerava pessoas razoáveis. 

As redes sociais foram movimentadas por desastres. No 11 de Setembro de 2001, o dia em que nenhuma imagem na televisão parecia confiável, os blogueiros foram como radioamadores que descreviam com veracidade o que acontecia no Ground Zero. O Twitter foi o principal instrumento de comunicação, interna e externa, durante a Primavera Árabe. Depois que a evolução dos celulares permitiu que qualquer pessoa andasse com uma câmera viável no bolso, o Instagram e o Youtube tornaram-se canais privilegiados de denúncia de brutalidade policial. Até o Facebook tem uma ferramenta que nos permite dizer às nossas relações se estamos seguros de alguma calamidade que tenha acontecido na nossa área. 

O último desastre que movimentou as redes sociais aconteceu na noite da última quinta-feira, 17 de Novembro. Felizmente, ninguém morreu, mas várias pessoas perderam o trabalho depois de o novo dono do Twitter, Elon Musk, fazer um ultimato aos seus engenheiros após uma primeira onda de demissões: «preparem-se para serem trabalhadores "extremely hardcore" ou saiam». Tanta gente preferiu sair que a rede aparentemente ficou presa por fios. Por todo o mundo, os utilizadores tiveram medo de perderem seguidores e seguidos e foram atrás de alternativas. 

Como um martelo ou um telefone, as redes sociais são um produto tecnológico. O seu sucesso deriva da eficácia com quem conseguem facilitar ou substituir uma função da nossa vida. O Facebook, na sua raiz, procura ser um espaço para encontros de amigos. O Instagram é a versão on-line de "mostrar as fotos de viagem". O LinkedIn serve como currículo profissional e o Twitter é um "ao vivo" permanente, divulgando notícias e temas da atualidade em tempo real. 

O Twitter nunca teve o tamanho do gigante Facebook, mas o número de jornalistas, académicos e fazedores de opinião nele presentes fizeram dele um espaço mais incisivo. Aquilo que aparece no Twitter aparece nos jornais e na televisão. Por isso ele é tão importante para políticos, e por isso ele é um campo de batalha ideológico, onde qualquer opinião é amplificada, discutida e ressignificada frequentemente além da proporção que se intencionava. Se as redes sociais são praças públicas, o Twitter é a nossa ágora.

Até ao momento em que escrevo estas linhas, as trapalhadas de Elon Musk não derrubaram o Twitter. Se um utilizador mais distraído entrasse hoje na rede, acharia que nada tinha mudado. Mas os tuiteiros não são particularmente distraídos — e a hashtag #RIPTwitter continua alta para prová-lo. A noite de quinta-feira foi determinante para impor a dúvida sobre a capacidade do Twitter de continuar a informar, entreter e, no fundo, manter a sua importância no discurso público. O efeito foi mais grave do que o de um chilique do mercado que derruba a Bolsa após as declarações de um político: é como se o próprio contrato social que sustentava a rede tivesse sido quebrado.

Nos dias seguintes, vários artistas, jornalistas e influenciadores brasileiros jogaram pelo seguro e criaram contas no Koo, uma rede indiana que emula a de Musk. Levaram com eles milhares de seguidores. De um dia para o outro, o Brasil tornou-se o segundo país com mais utilizadores no Koo depois da Índia. Trocadilhos com o nome inundaram a Internet. 

Porém, nota-se também uma prudência: como alguns dias não chegam para reconstruir no Koo o número de seguidores que anos de Twitter juntaram, ninguém parece ter efetivamente trocado de rede, postando em simultâneo nas duas (o mesmo conteúdo ou não). A memória do Clubhouse, a rede social de áudio que foi febre em 2021 e abandonada pouco depois, ainda está presente na mente de muita gente.

De qualquer modo, o que esta "Grande Migração" está a mostrar é uma dispersão dos tuiteiros, que deixa a dúvida sobre qual será o próximo espaço privilegiado de discussão pública. Enquanto muitos abriram conta no Koo, vários simplesmente remeteram para as suas contas já existentes em outras redes, como o Facebook ou o Instagram. Outros ainda preferiram abrir conta no Mastodon, uma alternativa open-source menos ruidosa, comprometida contra o discurso de ódio e organizada em servidores moderados por pessoas físicas. 

O Mastodon foi a alternativa que eu escolhi (https://mastodon.social/@nande). Fi-lo ainda antes do 17 de Novembro, por várias razões. Nos meus quinze anos de redes sociais, aprendi como é fácil tornarmo-nos um produto vendido para anunciantes que nos disparam com publicidade a todos os momentos, e eu não estava com muita paciência para ser gado de outro algoritmo. Depois, alguns amigos abriram conta lá, criando um ambiente muito parecido com os meus primeiros tempos de Facebook, com poucas conexões, mas muito relevantes. Por fim, parece uma rede mais cordial e equilibrada, que não precisa da discórdia e do chauvinismo para sobreviver. Quando faço login no Mastodon, sinto uma sanidade que o Twitter teve que abandonar para se tornar grande e movimentado (como fica, de resto, demonstrado pela última jogada de Musk para responder à ameaça de abandono: a ressuscitação da conta de Donald Trump).

Por enquanto, entrar no Mastodon é como estar numa mesa de café com pessoas de temperamentos afins: essa é a função que ele ocupa tecnologicamente. Pelo seu design e pela sua comunidade reduzida, ele não serve (ainda?) para substituir o Twitter enquanto provedor de informação em tempo real. O Koo também não, concentrado que está na Índia e agora no Brasil. 

De qualquer forma, estas convulsões dão a sensação que os tempos de discórdia e tumulto social e político que alimentaram e foram alimentados pelas redes sociais da Web 2.0 podem estar a chegar ao fim. Porém, só saberemos em definitivo quais serão os novos protagonistas on-line quando vier o próximo grande desastre.