Tempo, narrativa e Sex and The City

Só agora assisti And Just Like That, a continuação de Sex and The City de final de 2021. Curiosamente, enquanto a via, dei por mim a pensar no tempo. Explico-me.

O tempo, em si mesmo, não existe fora da invenção humana. Falo dos relojoeiros do século XVI, dos assírios sexagesimais mas, principalmente, falo da nossa capacidade enquanto espécie para produzir os conceitos de antes, agora e depois. 

Antes dos relógios e dos calendários, antes de definirmos o segundo como «a duração de 9 192 631 770 períodos da radiação correspondente à transição entre os dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133», o que nós tínhamos, e temos, é a narrativa. "Isto aconteceu a tal pessoa, ela reagiu assim e tudo acabou assado": antes, durante e depois.  Ao articular eventos numa sequência temporal, criamos aquilo a que Ricœur chamava "tempo humano".

Ricœur também dizia que, «em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal». Eu vou fazer uma leitura enviesada desta frase e propor que retiremos dela não só que as histórias criam o seu próprio tempo (o narrativo), mas também algo mais prosaico: que elas enformam o modo como vivemos o tempo que vivemos.

Antes do nosso primeiro beijo, quantos vimos na televisão e no cinema? Antes de perdermos alguém pela primeira vez, quantas vezes já tínhamos ensaiado mentalmente a experiência de perda, de Bambi a ET passando pela Capucinho Vermelho? 

No seu "Story", o Robert McKee cita Kenneth Burke para nos dizer que as histórias são «equipamento para viver». Isso encaixa com a etimologia de "narrativa": do sânscrito “gnâ” até aos latinos “narro” e “gnarus”, a palavra carrega consigo o "conhecer" e o "saber". De livros, filmes e séries até um cochicho ouvido de um colega de trabalho, histórias são pequenas lições que nos dizem "vive isto desta maneira". Aristóteles dizia que as pessoas “gostam de ver as imagens porque, olhando-as, têm oportunidade de aprender e de raciocinar sobre cada um dos elementos”. As histórias servem como uma espécie de vacina emocional e intelectual, que nos permite experimentar situações antes de as vivermos e refletir sobre como nos devemos comportar se e quando elas acontecerem. 

Os manuais de escrita para audiovisual seguiram a tendência da nova "Golden Age of Television" e disseram-nos que a narrativa televisiva não fica atrás da cinematográfica. Talvez por isso esta particularidade não costuma ser abordada neles, mas acho que, em termos daquilo que ela tem a oferecer ao público, a série de televisão possui uma aptidão particular. 

Como se prolonga no tempo, a série enreda-se na nossa vida. A sua contemporaneidade pode sugerir-nos como viver o cotidiano ao mesmo tempo que se enrosca nele. Está mais próxima do cochicho do colega de trabalho do que da epopeia, e este lado prosaico não é menos importante por sê-lo. Sex and The City podia não ter a importância ou a ambição de Romeu e Julieta, mas o que é mais provável nesta vida: que uma pessoa não goste do rabo do namorado novo ou que viva um amor trágico que leva ao suicídio?

Em "Homens Difíceis", um dos melhores livros que se escreveu sobre a televisão do século XXI, Brett Martin não tem grandes elogios para Sex and the City, mas até ele reconhece que as personagens da série «conversavam mais abertamente, sem dúvida sobre coisas do corpo, mas também sobre seus desejos e insatisfações fora do quarto, do que as mulheres jamais tinham falado na TV até então».

Essa, parece-me, é a razão por que Sex and The City foi melhor série do que alguma vez foi filme. O cinema pede que as suas afirmações sejam definitivas. Mesmo que um filme tenha um final em aberto, os significados que ele implica devem ficar claros para o espectador. Porém, é bem possível que o tema principal de Sex and The City seja precisamente a conversa. 

Da Lisístrata de Aristófanes até ao mais recente filme de Sarah Polley, Women Talking, 2500 anos de representações mostram-nos que o simples encontro de mulheres para conversar pode ser um ato profundamente subversivo. Consideremos que, quando Sex and the City estreou em 1998, ainda não passara um século desde a conquista do direito ao voto pelas sufragistas dos EUA. Para ocupar um lugar relevante na cultura popular, Sex and the City não precisou mais do que mostrar um grupo de amigas solteiras e independentes compartilhando a sua experiência afetiva e sexual na cidade contemporânea. Até as futilidades - os vestidos, os restaurantes, os cosmopolitans - eram as futilidades delas

Mas essa conversa precisava do tempo do cotidiano - o tempo da série - para se afirmar. Sem ele, os filmes acabaram focando nas histórias de amor, principalmente na de Carrie com Big. Não há nada de intrinsecamente mau em comédias românticas, mas, no cinema, Sex and the City perdeu força; virou menos Monólogos da Vagina e mais Cinderela. 

And Just Like That parece ter entendido que isso aconteceu e talvez por isso a comunicação seja um dos seus assuntos principais. Podcasts, ligações perdidas, amigas distantes, "como eu devo dizer isto para o meu marido?", "a minha filha não quer conversar comigo". As personagens principais chegaram à meia-idade e descobrem novas formas de conversar umas com as outras. Enquanto isso, a experiência feminina do tempo urbano volta a ganhar destaque em relação às histórias de amor. 

É injusto louvar a passagem dos anos no Boyhood do Linklater e não fazer o mesmo com And Just Like That. Seria ainda mais injusto não reconhecer que esta continuação reaproxima a história de Carrie e suas amigas do que ela nunca deveria ter deixado de ser: equipamento para a vida.