Feriado

Dia de tomar café na padaria, entre a classe média alta paulistana. 

Na mesa dum lado, uma velha desabafava com a garçonete. Ela acha que a sua empregada doméstica "tá roubando". Deve ter vindo falar disso na padaria porque em casa mais ninguém tem paciência para a ouvir.
 
Do outro lado, um casal. Ela queixando-se dum colega de trabalho. Ele com medo de que o sogro deixe o apartamento na praia para o cunhado no testamento.
 
Que mundo de gente pequena. Ser rico é ter segurança? Então ali é tudo pobre. "Ser livre é não ter medo" (Nina Simone).
 
A velha só tomou um café e foi-se embora. 

O casal fez um pedido enorme e ficou muito desapontado por não haver rabanada.

Joe Pera Talks With You (2018-2021)

Há uma semana exata, vi uma entrevista engraçadíssima de Joe Pera ao Seth Meyers. Ela levou-me até à série dele, Joe Pera Talks With You (originalmente do Adult Swim; no Brasil, está na HBO Max). Feita de três temporadas com episódios minúsculos, de 11 minutos, esperava que fosse só uma comédia divertida para relaxar um pouco depois de jantar, mas veio-me uma das produções de televisão mais perfeitas que alguma vez me passou pela frente. 
 
Parece um exagero, mas realmente não é. Não imagino como um episódio de televisão possa ser melhor do que, por exemplo, Joe Pera Reads You The Church Announcements, o sexto da primeira temporada, que tem uma classificação de 9,6 no IMDB. 
 
São episódios escritos com a precisão de um relógio, mas filmados e editados com tempo para respirar. O tom é carinhoso, lembra Derek e certamente influenciou Ted Lasso, mas o pé fica no chão, junto da comunidade que a inspirou e onde foi gravada, com aquela quarta parede translúcida ao jeito de P'tit Quinquin. Impressiona (ou talvez não) que uma história simultaneamente tão real e tão carinhosa, que passa o tempo a dizer-nos que os absurdos do mundo são para atravessar juntos, tenha surgido durante a presidência Trump. É um abraço em forma de série como nunca vi e não a posso recomendar mais.

Os ecologistas

Pessoas que conheço conseguiram emplacar uma série portuguesa de sucesso internacional na Netflix — e ficam já aqui os meus abraços de parabéns para todos.

Então, porque leio tantas opiniões do estilo «ah, mas a série devia ser assim e assado»? E porque o "assim e assado" parece coincidir com as características daqueles filmes portugueses que se dão por satisfeitos com 2 mil bilhetes vendidos ou daquelas séries que batalham para conquistar umas poucas centenas de milhar de espectadores?

Estou certo que quem critica não deixou passar nenhuma destas obras. Foram ver todas ao cinema e estiveram atentos sempre que um novo episódio estreou na televisão. Dito isso, eu não tenho nada contra nichos. Estou em vários, e vejo muitas dessas coisas que são pouco vistas. O que não entendo é porque neste caso a conversa é centrada na imposição de um padrão sobre a obra, a ver se encaixa, como um acetato num retroprojetor das antigas. Tenho a sensação que, nos últimos dias, li dezenas de variações da frase "a série fez sucesso, mas não é X".

O X pode ser a teoria de autor francesa, as formulações de Adorno sobre a cultura de massas ou o modelo narrativo hollywoodiano. Pode até ser outra série que se apreciou no passado e se tornou sombra da caverna de Platão particular que cada um carrega.

Outras coisas engrossam a mistura. Algumas são feias, como a inveja de quem não percebe que, em audiovisual, um sucesso é o que é preciso para puxar outros. Outras são pouco faladas, como a provável habituação do espectador a uma dose de "estrangeiro" — rostos, vozes, lugares, pensamento narrativo — na ficção.

Em vez do "vi e não gostei" (sempre legítimo, expectável, sem novidade), acho mais interessante perguntar porque finalmente uma série portuguesa se deu bem. «Ah, porque foi feita para o grande público». E qual série não é? Em Portugal ou fora dele, quantos filmes "feitos para o grande público" não afundaram na bilheteira e quantos filmes "de arte" não se deram bem? A divisão entre arte e público está tão gasta quanto o monóculo do Fritz Lang.

É preciso firmar a noção de que há diferentes modos de ver e que, em si mesmos, eles não são necessariamente maus ou bons. O mesmo raciocínio vale para o exemplo da poesia: não é porque chegamos a Mallarmé que não conseguiremos mais apreciar António Aleixo. A verdadeira conquista da literacia, mais do que o entendimento do complexo, é essa sensibilidade versátil. Não vale a pena dizer "Pacifiction é bom, mas não é MCU", tal como não faria sentido o contrário. Aliás, eu já não sei muito bem se "bom" e "mau" são conceitos que façam muito sentido nestas coisas. Identificar o modo de ver adequado para determinada obra e se ela é interessante nele parece mais acertado.

É verdade que o êxito e o fracasso dependem de muita coisa. Caprichos de programação ou distribuição, notícias de mexericos coladas à estreia, catástrofes que desviam a atenção do público. Abstraindo destes, formulo a seguinte hipótese: uma obra audiovisual tem sucesso quando é eficaz a provocar o gozo.

O gozo pode vir da história interessante ou do elenco carismático, do conhecimento de uma realidade nova ou duma catarse poderosa, do prazer estético provocado pela imagem ou da cadência dos diálogos. É um intangível, uma equação e um mistério que se resolve artisticamente (mesmo em obras feitas para o "grande público") e que depende do acerto de múltiplos olhares.

Vai do olhar de quem faz o casting ao de quem maquia os atores. Do de quem desenha a produção ao do motorista que um dia andou um bocado mais depressa só para a diária não atrasar. Do de quem inventou uma forma de escrever um mundo ao de quem decide como montar um enquadramento.

As coisas vão-se encaixando e, às vezes, encaixam com o público. Rabo de Peixe encaixou com o público da Netflix. Uma história de crime interessante, inspirada em fatos reais curiosos, com um elenco bonito e empático, num cenário belo e cruel que combina com o tema aspiracional.

Teve sorte de não ter rivalizado na mesma semana com uma grande estreia na plataforma? Talvez, mas, como se diz por aí, sorte é o encontro da preparação com a oportunidade. É uma obra que conseguiu provocar o gozo dos seus espectadores. Bravo!

Uma vez, vi uma palestra do António-Pedro Vasconcelos em que ele contou uma história muito curiosa (repetiu-a numa entrevista ao Jorge Leitão Ramos): quando estava em pré-produção para o Aqui d'El Rei!, obra de grande orçamento para a época, o Paulo Rocha disse que era preciso impedi-lo porque esse filme destruiria «o equilíbrio ecológico do cinema português». Às vezes, quando leio o que se escreve sobre quem fez algo bem e com proveito, penso se o mundo não andará é cheio de ecologistas.

Os anos do fermento

Durante as quarentenas da pandemia, fui daqueles que tentaram aprender a fazer pão, mas não consegui fazer crescer nenhum fermento. Não sabia do que estava atrás, não entendia os tempos e ritmos da coisa e 99,9% dos pães saíram-me solados.

Mas as tentativas frustradas aguçaram-me o jeito para mexer na farinha. Aprendi a fazer massa para pizzas, calzones, tortillas, empanadas. Fiz-me amigo do fermento seco, muito mais rápido e menos caprichoso do que o natural. Há uns meses, comecei a fazer uma receita de pão turco e percebi como a massa era versátil. Adaptei-a para farinha integral e, desde então, quase não comemos pão aqui em casa que não seja feito por mim.

Porém, os levains falhados sempre me tinham ficado na memória. Uma daquelas chatices no fundo da mente, a rirem-se e a dizerem "ahah, não conseguiste". Então, este mês, com os dias mais quentes, voltei à carga.

Na primeira tentativa, armei-me em esperto. Encontrei uma receita famosa de levain que pedia suco de abacaxi, mas não me apeteceu ir comprar um e substituí-o por mel. Resultado: não funcionou. Uma semana depois, o fermento não mostrava atividade nenhuma.

Continuava a não ter vontade de ir atrás de um abacaxi, então procurei uma nova receita. Encontrei a da Marina Leão, que começa a cultura com maçã fermentada e usa relativamente pouca farinha ao longo do processo.

Experimentei. Depois de deixar a maçã cortada em água durante uma semana, juntei o líquido à farinha e comecei a espera. Nos primeiros dias, as bactérias frescas que sobraram da fruta mexeram-se bem, mas a memória dos falhanços anteriores levou-me a introduzir uma variação no processo: em vez de depender de um único fermento, aproveitei o que seria o descarte de um dia para criar uma segunda cultura. As duas ficavam cobertas com um pano e fechadas na panela de ferro durante a noite. No dia seguinte, descartava a cultura que tivesse subido menos, dividia a mais poderosa em duas e assim por diante. Em suma, fiz a seleção natural trabalhar por mim.

Mesmo assim, uma semana depois, pareceu-me que o fermento subia bem menos do que deveria. Dobrar de tamanho, então, nem vê-lo. Ontem de manhã, as culturas estavam tristemente como as tinha deixado na noite anterior.

"Mais um fracasso. Tudo bem, ano que vem experimento de novo. Vou deixar isto aqui e logo à noite deito fora".

Não sei se foi porque as bactérias ainda estavam a batalhar pela supremacia ou porque o frio inesperado deste Carnaval as atrapalhou, mas, quando abri de novo a panela de ferro à noite, os dois fermentos tinham subido até sujar o pano que os cobria. Não conseguia acreditar.

Seria só um estertor desesperado antes da morte? Para ter certeza, de novo dividi o fermento que parecia mais robusto, alimentei-o e fechei-o na panela. Hoje de manhã, estava alto, borbulhante, em formato de teia. Enfim, um levain.

Não sei ainda se vou conseguir sacar um pão bom disto. Prevejo muitos erros e acertos até conseguir acertar a receita. De qualquer forma, a lição que fica é clara: tudo se aprende e todos somos capazes de fazer qualquer coisa. Pode demorar alguns anos, mas tempo há sempre; a paciência é que não pode faltar.

Tempo, narrativa e Sex and The City

Só agora assisti And Just Like That, a continuação de Sex and The City de final de 2021. Curiosamente, enquanto a via, dei por mim a pensar no tempo. Explico-me.

O tempo, em si mesmo, não existe fora da invenção humana. Falo dos relojoeiros do século XVI, dos assírios sexagesimais mas, principalmente, falo da nossa capacidade enquanto espécie para produzir os conceitos de antes, agora e depois. 

Antes dos relógios e dos calendários, antes de definirmos o segundo como «a duração de 9 192 631 770 períodos da radiação correspondente à transição entre os dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133», o que nós tínhamos, e temos, é a narrativa. "Isto aconteceu a tal pessoa, ela reagiu assim e tudo acabou assado": antes, durante e depois.  Ao articular eventos numa sequência temporal, criamos aquilo a que Ricœur chamava "tempo humano".

Ricœur também dizia que, «em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal». Eu vou fazer uma leitura enviesada desta frase e propor que retiremos dela não só que as histórias criam o seu próprio tempo (o narrativo), mas também algo mais prosaico: que elas enformam o modo como vivemos o tempo que vivemos.

Antes do nosso primeiro beijo, quantos vimos na televisão e no cinema? Antes de perdermos alguém pela primeira vez, quantas vezes já tínhamos ensaiado mentalmente a experiência de perda, de Bambi a ET passando pela Capucinho Vermelho? 

No seu "Story", o Robert McKee cita Kenneth Burke para nos dizer que as histórias são «equipamento para viver». Isso encaixa com a etimologia de "narrativa": do sânscrito “gnâ” até aos latinos “narro” e “gnarus”, a palavra carrega consigo o "conhecer" e o "saber". De livros, filmes e séries até um cochicho ouvido de um colega de trabalho, histórias são pequenas lições que nos dizem "vive isto desta maneira". Aristóteles dizia que as pessoas “gostam de ver as imagens porque, olhando-as, têm oportunidade de aprender e de raciocinar sobre cada um dos elementos”. As histórias servem como uma espécie de vacina emocional e intelectual, que nos permite experimentar situações antes de as vivermos e refletir sobre como nos devemos comportar se e quando elas acontecerem. 

Os manuais de escrita para audiovisual seguiram a tendência da nova "Golden Age of Television" e disseram-nos que a narrativa televisiva não fica atrás da cinematográfica. Talvez por isso esta particularidade não costuma ser abordada neles, mas acho que, em termos daquilo que ela tem a oferecer ao público, a série de televisão possui uma aptidão particular. 

Como se prolonga no tempo, a série enreda-se na nossa vida. A sua contemporaneidade pode sugerir-nos como viver o cotidiano ao mesmo tempo que se enrosca nele. Está mais próxima do cochicho do colega de trabalho do que da epopeia, e este lado prosaico não é menos importante por sê-lo. Sex and The City podia não ter a importância ou a ambição de Romeu e Julieta, mas o que é mais provável nesta vida: que uma pessoa não goste do rabo do namorado novo ou que viva um amor trágico que leva ao suicídio?

Em "Homens Difíceis", um dos melhores livros que se escreveu sobre a televisão do século XXI, Brett Martin não tem grandes elogios para Sex and the City, mas até ele reconhece que as personagens da série «conversavam mais abertamente, sem dúvida sobre coisas do corpo, mas também sobre seus desejos e insatisfações fora do quarto, do que as mulheres jamais tinham falado na TV até então».

Essa, parece-me, é a razão por que Sex and The City foi melhor série do que alguma vez foi filme. O cinema pede que as suas afirmações sejam definitivas. Mesmo que um filme tenha um final em aberto, os significados que ele implica devem ficar claros para o espectador. Porém, é bem possível que o tema principal de Sex and The City seja precisamente a conversa. 

Da Lisístrata de Aristófanes até ao mais recente filme de Sarah Polley, Women Talking, 2500 anos de representações mostram-nos que o simples encontro de mulheres para conversar pode ser um ato profundamente subversivo. Consideremos que, quando Sex and the City estreou em 1998, ainda não passara um século desde a conquista do direito ao voto pelas sufragistas dos EUA. Para ocupar um lugar relevante na cultura popular, Sex and the City não precisou mais do que mostrar um grupo de amigas solteiras e independentes compartilhando a sua experiência afetiva e sexual na cidade contemporânea. Até as futilidades - os vestidos, os restaurantes, os cosmopolitans - eram as futilidades delas

Mas essa conversa precisava do tempo do cotidiano - o tempo da série - para se afirmar. Sem ele, os filmes acabaram focando nas histórias de amor, principalmente na de Carrie com Big. Não há nada de intrinsecamente mau em comédias românticas, mas, no cinema, Sex and the City perdeu força; virou menos Monólogos da Vagina e mais Cinderela. 

And Just Like That parece ter entendido que isso aconteceu e talvez por isso a comunicação seja um dos seus assuntos principais. Podcasts, ligações perdidas, amigas distantes, "como eu devo dizer isto para o meu marido?", "a minha filha não quer conversar comigo". As personagens principais chegaram à meia-idade e descobrem novas formas de conversar umas com as outras. Enquanto isso, a experiência feminina do tempo urbano volta a ganhar destaque em relação às histórias de amor. 

É injusto louvar a passagem dos anos no Boyhood do Linklater e não fazer o mesmo com And Just Like That. Seria ainda mais injusto não reconhecer que esta continuação reaproxima a história de Carrie e suas amigas do que ela nunca deveria ter deixado de ser: equipamento para a vida.