Sonho

Tenho reparado que às vezes os meus sonhos vêm em série, com episódios mais ou menos contínuos.

Hoje consegui lembrar um desses sonhos depois de acordar. A série passa-se num festival de cinema. Como é normal nestas coisas, o protagonista sou eu. 

Uma das contrapartidas para eu estar no festival era gravar vídeos com os convidados. Enquanto gravava uma conversa muito interessante com uma idosa e veneranda cineasta, a câmara enguiçou. Deixei que a cineasta terminasse a resposta, agradeci e fui ver se estava tudo bem. Percebi então que todas as gravações que fizera durante o festival tinham sido apagadas do cartão de memória, e ainda tinha a terrível impressão de que não copiara nenhum material para o computador. Perdera tudo.

Sentei-me estarrecido na primeira fila. O filme era uma animação; os desenhos eram em 2D e estilo realista, mas com um efeito gráfico que deixava a imagem ligeiramente desfocada, como o mundo visto por um astigmático sem óculos. No filme, um grupo de personagens aparentemente sem conexão entre si enchia a tela. Elas falavam todas ao mesmo tempo, como uma calçada na cidade momentaneamente ocupada por monologuistas. Seria impossível distinguir as frases individuais no meio do burburinho, mas cada personagem tinha uma legenda na altura do peito com a sua fala. Achei uma solução engenhosa.

O incómodo das gravações perdidas não me deixava tranquilo. Por um segundo, esqueci-me completamente que estava num lugar fechado e acendi um cigarro. Só percebi o erro depois de dois tragos. Apaguei o cigarro no encosto de braço e coloquei a bituca na mochila. Tentei concentrar-me no filme, mas a história não fazia sentido e eu não estava com cabeça para o encontrar. Então, o pessoal do festival começou a abrir as grandes janelas que ocupavam toda a parede lateral da sala. Estranho. Nunca vi isto acontecer num cinema.... Ah! É por causa do fumo do meu cigarro. A noite lá fora não incomodava a projeção, mas não consegui mais prestar atenção ao filme, só à espera que alguém viesse para me expulsar do festival. 

Se estivesse acordado, tinha-me ido embora.

(foto: Radio City Music Hall, New York, 1978, de Hiroshi Sugimoto)

Fui ao ato da CUT e vi o Lula

Já era tarde. O discurso do Lula chegava ao fim quando pisei no fundo da praça Charles Miller, no mesmo lugar onde às vezes me sentara para comer o pastel da Maria na feira do Pacaembu. Quando foi a última vez que o comi? Nem me lembro mais. Certamente antes da pandemia, esse antes e depois elástico que todos entendemos.

Algumas pessoas, também membras do clube de retardatários, apressavam-se para a praça para conseguirem ouvir as últimas frases de Lula. Os jornais disseram que falou sobre reforma trabalhista, sobre os polícias, sobre Bolsonaro. É o que se esperava. Não foi um discurso como os das primeiras greves do ABC que afrontaram a ditadura, nem como o que fez em São Bernardo do Campo antes de ir para a prisão em Brasília e se transformar, de político preso, em preso político. Mas um discurso do Lula continua a ser o discurso duma das maiores personalidades do século XXI, e as pessoas correm para ouvi-lo. Porém, desta vez os retardatários não tiveram sorte: Lula despediu-se e saiu do palco.


Os Francisco, el Hombre iam começar a tocar dali a pouco. Fui tirando umas fotografias enquanto subia a praça. Sorrisos, camisetas vermelhas, bandeiras sindicais. A minha mãe foi sindicalista a minha vida inteira: eu sei quem são estas pessoas, e gosto delas. Também gosto dos Francisco, el Hombre. Pensei em esperar um pouco e ver o show. Sempre daria para abanar o quadril habituado demais à posição sentada.




Reparei então que, do lado direito, algumas dezenas de pessoas esperavam encostadas numa grade. Havia uma abertura entre os tapumes que protegiam os bastidores, logo abaixo da escada de acesso ao palco. Lula estava no topo da escada e acenou para a multidão, que lhe respondeu com entusiasmo. Não consegui tirar a câmara a tempo, mas as pessoas continuaram por ali. Gritavam "Lula, guerreiro do povo brasileiro" com os punhos cerrados e esperavam para vê-lo de perto.



Seria uma daquelas alucinações coletivas a que às vezes as multidões se entregam? Sabe-se que é fácil o engano de alguns tornar-se a ilusão de muitos. Porém, ninguém arredava pé, mesmo enquanto os Francisco, el Hombre tocavam as primeiras músicas. Um homem de cabelo grisalho aproximou-se e perguntou-me se o Lula iria sair por ali. Respondi que, pelo menos, todo mundo esperava que sim. Ele falou «não, ele já saiu! Foi por trás. Tem segurança, aqui é muita gente, não vai sair, não». Encolhi os ombros, sem saber o que dizer perante tanta certeza, mas questionei as palavras do grisalho quando, uns minutos depois, percebi que até ele se juntara à multidão. 

Enquanto nada acontecia, tirei umas fotos em volta. Ambulantes vendendo comida, pessoas dançando, jovens paquerando. Cadê o ódio, cadê a polarização? Lamento, aqui não havia nada disso. As pessoas da praça são todos nós. Têm a marca de quem perdeu algo não faz muito tempo; agora só querem dançar um pouco e seguir em frente.




De repente, noto um burburinho na grade. Lula finalmente se preparava para encontrar a multidão. Coloquei a lente automática na câmara e corri para lá. Ele ficou na minha frente, abraçando as pessoas e segurando as suas mãos. Uma mulher chorava enquanto o abraçava. Toda a gente ergueu o celular com uma mão e estendeu a outra, procurando o toque deste homem. Confesso que também estendi a minha. Enquanto o Suplicy observava e o Stuckert fotografava, Lula passou por toda a extensão da grade, conversou o que conseguiu e depois foi-se embora. 



É indiferente se se concorda politicamente com ele ou não. A presença de Lula parece inspirar as pessoas a quererem ser melhores do que são. A sua resiliência e a sua história levam o povo a reunir-se à sua volta, e o Brasil, esgotado depois de anos de divisões internas, precisa de pessoas que o façam reencontrar-se consigo mesmo.

Arrumei a câmara e vi um pouco do show do Francisco, el Hombre. Continuam tão incríveis quanto eram na primeira vez que os vi, bem antes de serem conhecidos. Depois, subi a escada de pedra que me levaria ao caminho de casa através de paradas de ônibus com bandeiras do PT e bares carregados com a fauna de Higienópolis. A escada estava identificada como a "saída de emergência".

União Latina?

Acho grandiosa esta visão de Lula da América Latina como um bloco autônomo de poder, para a qual o Brasil poderá estar como a Alemanha está para a UE. O contraste com a subserviência de Bolsonaro aos EUA não pode ser maior. 
É por isso também que a cobrança ao PT sobre a Venezuela sempre me pareceu sensacionalista. Não hostilizar a Venezuela hoje pode significar o Brasil liderando uma das maiores uniões econômicas amanhã — e, se a entrada nessa união implicar o cumprimento de critérios como os de Copenhaga, esta pode ser a saída para a redemocratização do país fora do quadro estadunidense e para a América do Sul acabar definitivamente com a condição de quintal do hemisfério norte.

25 de abris

25 de abris, meus países, ou fechais
os meus democratas, que elegem fascistas
disparam salvas coloridas, matam seus pretos
cravo no ar, pistola no check in
discursos e salões nobres, cifrões secretos, indultos
carnais vais, em fome chegais
livres como um elon, não
faias queimadas pagando a inflação
e vendo a rua do arsenal no jacarezinho
e as migalhas de flores na avenida noturna
e o dia, final sujo, em pedaços
e os gritos de socorro 
às margens ácidas

A guerra simples

Só esta noite, a Rússia comunicou que um dos negociadores de paz ucranianos foi executado por traição (o governo de Kiev nega) e que a Ucrânia planeia arrebentar um reator nuclear em Kharkov para depois culpar os russos. Verdade, jogo duplo, jogo triplo?

Vibramos com a bravura dos soldados ucranianos assassinados após dizerem "vá-se foder" ao navio russo que exigia a sua rendição. Dias depois, vimos as imagens deles a chegarem, rendidos, a Sebastopol. Putin diz que não faz uma guerra e, ao mesmo tempo, destrói cidades inteiras, áreas residenciais, hospitais pediátricos.

O que é verdade, mentira, simples confusão ou desinformação deliberada?

Um clichê que corre por aí de novo: na guerra, a primeira vítima é a verdade. 

Este combate é na Ucrânia, nas mesas da diplomacia e nas redes sociais. Há dias, gente ucraniana que procurava o amor percebeu que a invasão vinha aí quando começou a receber likes de soldados russos no Tinder. Hoje, o TikTok entra na onda de sanções e limitou o acesso da Rússia ao seu app. Zelensky, um ator, compreende o poder das imagens e usa-o a seu favor. Putin, outro ator, envia mensagens gravadas para o mundo como se fossem em direto e esmaga os seus próprios jornalistas.

Outro clichê que se ouve por aí: quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado. 

O batalhão Azov, que a Rússia diz estar por trás do suposto plano de explodir um reator nuclear, é nacionalista, reconhecidamente neonazi. Foi integrado na Guarda Nacional ucraniana em 2014 e combate os separatistas em Donbass desde então. Ouvimos que guardas fronteiriços discriminam os emigrantes negros que tentam fugir. Enquanto isso, as Patrulhas do Povo, um grupo de extrema-direita anti-imigrantes, manifesta-se em Belgrado a favor de Putin, que há anos prende e assassina adversários, músicos e jornalistas.

Quem controla o presente?

As culpas parecem baratas quando se começa a escavar a História. Não é por acaso que o Estado Islâmico era obcecado com o acordo Sykes–Picot de 1916. Podemos apontar a responsabilidade pessoal imediata de quem deu a ordem que começou esta guerra. Talvez devamos. Mas também devemos saber que o primeiro dedo apontado vai levantar outro, e outro, e outro, e assim os dedos se levantarão até se perderem na escuridão do tempo e já não sobrar ninguém para quem apontar. 

No futuro, as armas que a OTAN deu para a Ucrânia se defender ficarão com o batalhão Azov? As sanções vão levar à ascensão da oposição democrática na Rússia ou o regime vai fechar-se ainda mais? A guerra vai levar a uma nova ascensão dos nacionalismos em toda a Europa, destruindo lentamente a União Europeia, ou, pelo contrário, vai levar a que ela se fortaleça?

Quem controlará o passado? Quem controlará o futuro?

O certo é que vemos os mortos e os refugiados e pensamos em nós, porque esta gente é parecida conosco. Hoje é segunda-feira: vamos trabalhar, cuidar da nossa vida. Pensamos se, daqui a uma curta semana, também teremos que encher uma mochila e caminhar até à fronteira.

Leio por aí muitas ironias com quem diz "é complexo". As ironias tanto erram quanto acertam. Não é que a situação seja simples por causa das causas históricas ou pelos enredos da política internacional. É simples porque, como diz o provérbio português, quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão. 

E, claro, nós somos o mexilhão.

Quatro séries

Depois de vê-la ganhar o Oscar com The Favourite e dos belos papéis em The Father e The Lost Daughter, é fácil esquecer que Olivia Colman foi e é uma grande atriz de comédia e uma grande atriz de televisão. Tenho visto várias séries com ela e não me canso de admirar o domínio que esta mulher tem do pormenor, do gesto ou esgar sutil que constrói e revela completamente uma personagem. 
Então, se ainda não viram Peep Show, façam-no. Se então descobrirem que a comédia inglesa do início dos anos 2000 vos agrada, partam para Look Around You, uma série que parodia os programas educacionais da BBC dos anos 80. A primeira temporada, de 2002, é desconcertante e viciante, a segunda (2005) entra a fundo pelo "nonsense" e tem um elenco surpreendente, com pessoas como Edgar Wright e Simon Pegg a fazerem "cameos".

Quem também apareceu brevemente em Look Around You foi Ed Sinclair, o marido de Colman e autor de Landscapers (2021), uma minissérie brilhante que a todo momento escancara os mecanismos ficcionais que a sustentam, ocupando um território fascinante de experimentação e de liberdade de linguagem. Aqui Colman já foi produtora executiva, e eu sou capaz de apostar que foi ela quem chamou o jovem diretor Will Sharpe, que ano passado ainda arranjou tempo para fazer The Electrical Life of Louis Wain e mostrou o seu domínio da representação da doença mental e da ternura familiar com arrojo visual. 

Em 2015, Sharpe já tinha dirigido Colman em Flowers, série criada por ele e cuja primeira temporada acabei de acabar: uma viagem impressionante que começa cheia de humor ácido, parecendo satirizar as suas personagens, e termina como uma elegia enternecedora do amor entre pais e filhos. 

Se ainda estiverem a ler e conseguirem encaixar uma recomendação que não tem nada a ver com a Olivia Colman, vejam Reservation Dogs (2021), uma série criada pelo Taika Waititi sobre jovens que vivem numa reserva indígena nos EUA. Além de ser uma lição de diversidade e representação — os atores, diretores e autores são quase todos indígenas —, é uma história incrível sobre a adolescência enquanto idade de grandiosos planos e frustrações.

A minha lista dos melhores de 2021

Entre todas as produções de 2021 que vi, estas são aquelas de que mais gostei. Não distingo entre o que é televisão e o que é filme, porque às vezes nem eu mesmo sei mais o que elas são. A ordem é mais indicativa do que rigorosa.

12. Them (Amazon)
O "americana" como território de demónios e violência, o racismo estrutural como condenação e claustrofobia que limita os corpos e fere os espíritos. Perguntar se fetichiza a violência é muito menos importante do que perguntar porque o faz.

11. It’s a Sin (Channel 4/HBO Max)
Russell T Davies, um dos grandes autores para televisão dos dias de hoje, conta-nos como foram os primeiros dias da AIDS em Londres.

Uma visita à mitologia americana do faroeste (e ao seu duplo, o western) que a desmonta através do poder do silêncio e da solidão.

9. Time (BBC)
Triste, mas esperançosa, trágica, mas sem lamúrias. Dois gigantescos atores britânicos numa das melhores histórias de prisão dos últimos tempos.

Esta série sempre foi a melhor a representar o embaraço e a introspeção adolescente, mas este episódio especial (animado, por causa da pandemia) superou tudo. Erskine e Konkle são rainhas.

Nunca me acontecera romper em lágrimas enquanto via um concerto — até ver o dueto de Mahalia Jackson com Mavis Staples neste belíssimo documentário. 

Um belo ano para o diretor Edgar Wright. 

O registo de um espetáculo fascinante, que mistura "storytelling", magia e mentalismo com um tom confessional e o objetivo de revelar alguma verdade profunda sobre o autor e também sobre todos os espectadores. 

Uma comédia ferozmente ácida sobre esta modernidade meio estúpida que a gente inventou. É romeno, mas poderia estar a falar sobre o Brasil, ou Portugal, ou (preencher com o lugar à sua escolha).

A melhor série do ano passado que ninguém viu é um ensaio visual devastador sobre civilização, colonização e aniquilação. 

Ducournau entra por territórios em que nem Cronenberg se atreveu a aventurar-se. Não ver se tiver o estômago fraco.

É o acontecimento audiovisual de 2021, e ponto final. 

Também: Katla (Netflix), Pretend It's a City (Netflix). Mare of Easttown (HBO Max). Bo Burnham: Inside (Netflix). The French Dispatch. Annette.

Até um dia, Norm MacDonald

Norm MacDonald já estava acostumado a ser conhecido como "comediante para comediantes". É injusto, porque tudo o que ele fazia tinha o grande público como destino final, mas a era do politicamente correto não lhe fez bem. O seu humor assentava na possibilidade do absurdo, na "punchline" que provocava além do que devia e nos fazia entrar no território perigoso em que se pensa "se calhar, não me devia estar a rir disto". O segredo é que ele logo nos trazia de volta, só para nos levar para o lado de lá dali a pouco, e assim por diante. Era uma viagem de pensamento, a procura por um lugar moral num mundo que talvez esteja melhor sem nós. Era comédia de temas duros, como a literatura russa que o inspirou a escrever o livro "Based on a True Story: A Memoir", mas entregue com o tom de um adolescente atrevido que parecia rir dos próprios raciocínios e um domínio absoluto do tempo. 

Um dos aspectos mais admiráveis da comédia de MacDonald era o modo como ela assentava tanto no texto quanto no contexto, satirizando os próprios formatos em que ela se fazia. Por isso é que ele foi um dos melhores convidados de talk show de sempre. Sempre que o vimos nos programas do Conan, não vimos simples entrevistas, mas performances em que MacDonald invoca a História da comédia americana. Ao contar piadas infames ou "one-liners" antigas do Rodney Dangerfield, desmontava também as regras performáticas de como uma entrevista de talk show deve ser. 

Nunca isso ficou tão claro quanto em 2008, quando ele foi convidado a participar do "roast" do seu amigo Bob Saget. MacDonald não queria enxovalhar o amigo. Então, ele teve uma ideia: pegou num livro de piadas velhas e infames e começou a contá-las, adaptando-as à situação. O público ficou confuso e, de início, não riu. Mas os comediantes em palco perceberam o que ele estava a fazer: um "roast" do próprio formato de "roast". Ao colocar-se na posição do ridículo, MacDonald usou as regras do jogo para mudar o jogo e fez aquela gente - incluindo o público, que acabou por entender a jogada - rir de si própria e do absurdo de um espetáculo fabricado para pôr as pessoas a insultarem-se umas às outras. É um dos pontos altos da Comédia do século XXI, um dos momentos em que a forma de arte se alimentou de si própria e se desmontou sem por isso se anular.  

Há anos que, quase todas as noites, eu vejo vídeos de humor no Youtube e, quase todas as noites, eu rio com vídeos do Norm MacDonald que já vi centenas de vezes. Era um mestre absoluto do que fazia e a sua falta será sentida. Até um dia, Norm!

O que vi em Agosto

Filmes no início, séries no fim, para ficar tudo arrumadinho.

But I’m a Cheerleader (1999). Um pouco de John Waters misturado com uma pitada de Tim Burton e outra de Heathers. Uma comédia mais cáustica do que a soda e que certamente influenciou toda a carreira posterior de Natasha Lyonne.

Born in Flames (1983). Nuns EUA que passaram recentemente por uma revolução socialista, as mulheres negras continuam a ter que lutar para terem os seus direitos reconhecidos. Um "mockumentary" raiz e uma sátira seríssima.

Marjorie Prime (2017) e Tesla (2020). Michael Almereyda faz filmes "arthouse" baratos, com uma ênfase teatral, centrado nos atores e uma liberdade de olhar que sempre me lembra o Caravaggio e o Wittgenstein de Derek Jarman. É um talento como outro qualquer, e não adianta reclamar. Tesla é, sim, um pouco incoerente e promete mais do que entrega, mas Marjorie Prime, cuja premissa parece a dum episódio de Black Mirror, é uma obra silenciosa e sensível sobre a passagem do tempo e a forma como ela define a nossa relação com as imagens.

The Human Voice (2020). Mais uma prova dum dos aspectos mais incríveis da obra de Almodóvar: a forma como, de cineasta "punk" e do escândalo, ele virou um esteta com extremo bom gosto.

Drag Me to Hell (2009). Espíritos malignos , mortes horríveis, vísceras e sangue, muito sangue. "Ai, é mau gosto". É Sam Raimi. Não gosta, não vê.

Vredens dag (1943). Luz e sombra. Silêncio e ruído. Mulheres e homens. Vida e morte. Pecado e expiação. Os elementos como castigo (o vento, igual ao de Béla Tarr).

Psycho (1998). A melhor coisa que li sobre este filme está na página da Wikipedia dele: «One favorable take on the film came from an LA Weekly retrospective article published in 2013, in which writer Vern stated that the film was misunderstood as a commercially motivated film when it was in fact an "experiment" and this was the reason for the poor reception. Vern concluded that "Experiments don't always have to work to be worth doing."»

Fahrenheit 9/11 (2004). Para refrescar a memória depois da retirada americana do Afeganistão. Levou-me a procurar no Facebook a entrevistada que perde o filho e mandar-lhe uma mensagem de solidariedade.

An Evening with Beverly Luff Linn (2018). É como se David Lynch fizesse uma comédia "brat pack". Original, mas, preso numa prisão de estilo, perde a força pelo meio.

The World’s End (2013). O mais divertido da cinefilia de Edgar Wright é a forma como ele faz o Cinema trabalhar para ele, e não o contrário. Aqui, ele cita e retorce os géneros do filme de assalto, do "buddy movie" e da ficção científica, sempre com um sorriso, sempre com diversão. Os filmes dele são, ao mesmo tempo, inteligentes e pândegos, e isso não é nada fácil.

Antiporno (2016). Kyoko é personagem, mulher, japonesa. Como personagem, é um objeto submisso ao olhar e desejo masculinos. Como mulher, vive com a fixação sobre em qual estereótipo sexual se deveria encaixar. Como japonesa, é testemunha e vítima do sexismo contido na suposta liberdade de expressão do país. Sion Sono nunca deixou de me surpreender, mas isto é do mais incrível que vi dele.

Love Story (1970). É um filme estranho, contraditório. Tem um roteiro robusto à anos 70, que entra na história sem medo, mas entrega reviravoltas arbitrárias. As personagens são caracterizadas com detalhe, mas agem futilmente. Ryan O'Neal é limitado, mas, como em Barry Lyndon, correto. Ali MacGraw é péssima, mas também carismática. Oscila entre o cru e o pateta, entre a tragédia e o folhetim, entre o kitsch e o despojamento, e deixa-nos entre o desconcerto e a indiferença.

This Filthy World (2006). Em palco, John Waters conta histórias divertidíssimas da sua vida e trabalho para pessoas que gostam dele. Se não gosta, nem vale a pena ver!

Le Corbeau (1943). Adoro filmes sobre um monte de gente que não vale nada. Mais de 70 anos depois, é bom não termos de cancelar este filme pelo colaboracionismo na sua produção, porque isto é uma obra-prima ranzinza sobre a hipocrisia.

Sexy Beast (2000). Elenco irrepreensível, edição musical, uma história que está sempre a brincar e a frustrar as convenções de género. É um filme de assalto, uma comédia ácida, uma história de gângster, tudo isso e também outra coisa qualquer além disso. Ótimo.

Los Enchiladas! (1999). Não importa muito se é bom ou ruim. É o filme inacabado que Mitch Hedberg fez com os amigos, e chega.

Evil Dead (2013). No Ash, no fun.

Séries:
The White Lotus (2021). Não senti o entusiasmo que tanta gente sentiu ao ver esta série. Não que ela não seja perfeitamente escrita e interpretada, com personagens deliciosas e contraditórias. Ela é. As minhas reservas têm mais a ver com a visão geral que está por trás dela (poderia até usar um palavrão e dizer que são reservas ideológicas). Pareceu-me que a sua sátira é "de nós para nós", feita para rirmos sem problematizarmos (outro palavrão). No fundo, o que quero dizer é isto: gostaria que ela fosse menos O Jardim das Cerejeiras de Tchekhov e mais O Anjo Exterminador de Buñuel.

Ragnarok s02 (2021). Gostei bem mais da segunda temporada do que da primeira, talvez porque provavelmente tiveram mais dinheiro, e esta é uma série que pede dinheiro para ser bem feita. Porém, apesar das batalhas e dos efeitos especiais, a grande sacada de Ragnarok é a forma como a vida familiar das personagens parece protegida de tudo o resto. "Lá fora posso ser um deus, mas em casa tenho que me portar bem" é uma metáfora brilhante para a vida de adolescente.

Mark Kermode's Secrets of Cinema (2018-2021). Mark Kermode é dos críticos de cinema que mais sigo hoje, porque acho-o despretensioso sem ser simplista e, acima de tudo, um conhecedor e apaixonado por filmes, dos mais populares aos mais nichados. Para encontrar todos os episódios desta série da BBC em que ele faz uma historiografia do Cinema a partir das convenções de género, tive que executar um corso inimaginável para qualquer "zennial" do pós-Kazaa, mas consegui e devorei-os. Um regalo.

Des (2020). Apenas mais uma série inglesa com David Tennant que vem para provar que David Tennant é um génio.

Barbarians Rising (2016). Às vezes, tudo o que uma pessoa quer é ver uma minissérie de documentário ficcional sobre os bárbaros que, ao longo dos séculos, combateram e resistiram à invasão pelo império romano. E, se uma pessoa quer isso, não há nada melhor do que esta.

The Chair (2021). Um monte de gente com bom pedigree faz uma comédia sobre professores universitários. Talvez não interesse a muitas pessoas além das que têm ou tiveram a universidade como parte importante da vida, mas é simpática.

O que vi em Julho

Bo Burnham: Inside (2021). A dado momento do State and Main de David Mamet, uma personagem diz que «temos que fazer a nossa própria diversão, senão não é diversão: é entretenimento». Enquanto Burnham canta e dança, ele vai além duma comédia sobre a pandemia e o isolamento social: ele faz uma sátira dos formatos que inventamos para participar do capitalismo de comunicação de massas, ou seja, sobre a forma como a Internet nos levou a nos entretermos mais e nos divertirmos menos.

1971: The Year That Music Changed Everything (2021). Uma ótima série documental que lembra muito os filmes do Martin Scorsese sobre música. O talento de Asif Kapadia para trabalhar o arquivo continua admirável.

Summer of Soul (…or, When the Revolution Could Not Be Televised) (2021). Para quem viu 1971: The Year That Music Changed Everything, é o acompanhamento perfeito. Para quem não viu, é um documentário brilhante sobre um festival de música negra no Harlem cuja história (e gravações) foram ignoradas até hoje. O dueto da Mahalia Jackson e da Mavis Staples é tão incrível que dei por mim a limpar as lágrimas no fim.

Burden of Dreams (1982). Toda gravação tem os seus desafios particulares, mas, depois deste filme, acho pacífico afirmar que Werner Herzog não gostava de facilitar a própria vida.

Relic (2020). A demência, monstro. A casa, memória. O tempo, insuportável. A carne, maldição. A sororidade, imprescindível. Os labirintos psicológicos de "The Haunting" encontram os corpos impossíveis de Cronenberg e, na sua estreia em longas, Natalie Erika James já se junta à conterrânea Jennifer Kent no pódio das diretoras mais interessantes da atualidade.

Minamata (2020). Não é um grande filme, mas é um filme correto e importante. Correto, porque acerta em detalhes a que estará atenta qualquer pessoa que lidou com fotografia ainda na época do analógico. Importante, porque histórias sobre pessoas que se juntam para corrigir as injustiças que lhe são impostas por indústrias e políticos são cada vez mais necessárias. Além disso, consegue escapar de moralismos desnecessários.

The Sparks Brothers (2021). Um trabalho de amor de Edgar Wright sobre uma banda cultuada por muita mais gente além dele próprio. A certo momento, parece longo, mas entende-se: Wright tenta compensar o tempo perdido, dando aos irmãos a homenagem definitiva à obra que criaram ao longo de uma vida. É um filme que parece dar alento a qualquer criador, como se dissesse «aguentem aí, que isto vai dar certo». 

Marianne & Leonard: Words of Love (2019). Um documentário tão amoroso quanto a relação de Cohen com a sua musa norueguesa. Conta essa história sem firulas, e faz bem, porque ela já é interessante que chegue.

Rubber (2010). Enganou-me. Pensei que ia ver um trash exagerado e esquecível sobre um pneu assassino e, afinal, levei com um filme de arte que homenageia a série Z dos anos 60 e 70 e constrói todo um discurso sobre a relação do espectador com a imagem. Arriscaria dizer que é brilhante.

People, Places, Things (2015). Uma comédia sensível sem ser "dramedy". Faz sorrir mais do que rir, e tudo bem, porque as personagens são simpáticas e extremamente humanas. Dura uns 80 minutos, mais ou menos a duração de Shiva Baby ou a de dois episódios de uma série dramática, e deixou-me a pensar se hoje não será este o novo formato ideal para longas-metragens.

The Incredible Jessica James (2017). Foi curioso ver este filme seguido de People, Places, Things, do mesmo diretor Jim Strouse. Apesar de divertido e ternurento, não parece tão bem conseguido quanto este último, e eu acho que isso tem a ver com um equilíbrio melhor do elenco, uma certa magia especial que é produzida tanto pelo esforço quanto pelo acaso. 

Woodstock 99: Peace, Love, and Rage (2021). Comecei a adolescência a ver as bandas do Woodstock 94 e acabei-a com as do de 99, então, lembro-me muito bem de todo o contexto e das controvérsias em volta deste festival fatídico. Habituei-me a pensar nele como o enterro do rock, o momento a partir do qual a MTV se concentraria no pop e eventualmente deixaria de ser um canal de música, o evento a partir do qual os preços de bilhetes subiriam e em que os promotores perceberam que, se o público aguentava isto, conseguia aguentar pistas VIP numa boa. O documentário deixa isso muito claro, mas pareceu-me que, a certo momento, ele tenta fazer exatamente aquilo que também diz ser impossível: apontar culpados do descalabro, quando, na verdade, o que fica a pairar como uma sentença terrível para os anos que se seguiriam — o pós-11 de Setembro, a vigilância em massa, o trumpismo — é a frase final de Michael Lang: «Quisemos fazer um Woodstock contemporâneo. E o contemporâneo era isto». Só faltou falar mais sobre a ascensão da Internet enquanto fenómeno da segunda metade dos 90, fator primordial para a epidemia de hipersexualização e frustração de que esta gente branca estadunidense (e não só) sofre até hoje.

The Adventures of Tintin (2011). Vendo-o pela primeira vez dez anos depois da estreia, diria que é um filme-charneira na obra de Spielberg. A aventura e o humor criam uma ponte com Indiana Jones, referenciando-o de uma forma ambígua, como se, ao fazê-lo, também se homenageasse Tintin enquanto herói-irmão do arqueólogo (não influência — Spielberg só o conheceu depois de ter lido uma crítica que comparava Raiders of the Lost Ark aos livros de Hergé). Por outro lado, essa referência e o uso da animação "motion capture" prenunciam esse grande compêndio da cultura popular que se chama Ready Player One.

The Kid Stays in the Picture (2002). A vida de Robert Evans, lendário produtor, entre outros, de Love StoryThe GodfatherRosemary's Baby e Chinatown, contada pelo próprio com o contentamento de quem cria o seu próprio mito. Quem gostar de histórias sobre os bastidores da velha Hollywood vai ver como se se babasse com um doce — e eu adoro.

Hacks (2021). O mundo da comédia profissional está lá, o subtexto sobre mulheres tentando colaborar para se desviarem das agressões do mundo também, mas, para mim, esta série foi resumida num artigo de forma brilhante com a expressão «boomers vs. zoomers». É o conflito geracional que a move, é ele que nos faz rir, além da magnífica Jean Smart. É uma série divertida, mas acho que lhe falta uma pontinha de audácia. Quem sabe nas próximas temporadas.

The Flight Attendant (2020). Fui vê-la por causa da nomeação ao Emmy, que acaba por ser meio enganadora, porque é mais uma série de espionagem bem-humorada do que uma comédia. É estranho dizer, achei-a, ao mesmo tempo, interessante, bem feita e irritante. Kaley Cuoco está muito bem, mas a sua personagem é como aquele amigo insuportavelmente carente que nos obriga a concentrar as atenções nele quando tudo o que nos apetece é deixá-lo estraçalhar-se por aí. Ao mesmo tempo, é uma espécie de resposta (quase literalmente uma ressaca) a uma “persona” cómica de moça festeira que foi bem popular no início dos 2010s, muito por causa de Amy Schumer. Isso, e a forma como a série constrói cuidadosamente os símbolos e os vai revelando devagar ao longo da narrativa, merece que a experimentem.

PEN15 (2019-). Ainda nem terminei a primeira temporada e já consigo dizer que é das comédias mais originais e divertidas que vi nos últimos tempos. Nela acompanhamos duas meninas de 13 anos enquanto enfrentam os desafios da escola, dos primeiros amores, da família, da puberdade — e que são interpretadas pelas próprias criadoras da série, Maya Erskine e Anna Konkle, já bem entradas nos seus trinta anos, enquanto todos os outros atores têm a idade das suas personagens. É uma premissa dramatúrgica extraordinária e extremamente arriscada, mas elas conseguem fazê-la funcionar. Parece que, ao interpretarem estas versões semificcionais delas mesmas, Erskine e Konkle sabem por instinto como fazer delas personagens simultaneamente com graça e dignidade. A empatia é imediata, porque, às vezes, todos fazemos o mesmo: rimos das nossas encarnações adolescentes ao mesmo tempo que lembramos esse tempo num misto de ternura, saudosismo e azedume. Parece beber um pouco de Superbad, um outro tanto de Big Mouth e é uma grandiosa representação da adolescência feminina. 

Shrill s03 (2021). No especial Talking Funny, Chris Rock revelou um dos seus lemas de trabalho, e ele pareceu-me desde então um excecional medidor de bom gosto cómico: «ri-te do que as pessoas fazem, não do que elas são». Na sua temporada final, Shrill confirmou o que sempre pareceu ser: uma série “woke” por excelência, mas que percebe que isso não é nenhum impeditivo para satirizar a cultura “millennial”, porque o que importa, lá está, é rir do que as pessoas fazem, não do que elas são. É uma série muito representativa dos nossos tempos pós-Seinfeldianos, em que se prefere o cómico de situação ao de personagem ou, melhor, em que se recusa a caricatura se esta não for conquistada com o aprofundamento das contradições da personagem. Perceber que os vilões não são assim tão vilões e os bonzinhos não são assim tão bonzinhos atrapalha a comédia? Absolutamente nada, porque nós, pessoas, somos um poço infindável de falhas, exageros e passos em falso, e a comédia está aí. O final da série — sem spoilers — é um exemplo claro disso, mostrando-a como uma história “coming of age” que celebrou a juventude e, de repente, se descobre adulta sem saber o que isso significa.

Dracula (2020). Depois de Sherlock, Gatiss e Moffat releem um outro clássico literário novecentista. O “modus operandi” deles parece o mesmo – explorar a fundo as características da personagem, usar as histórias canônicas como premissa para extrapolações – e isso acaba por traí-los no episódio final, mas, no geral, é uma bela releitura, principalmente pela forma como a personagem do Drácula é pensada para a atualidade: como um predador, uma espécie de Harvey Weinstein/stalker/psicopata/minion que suga a vida dos outros para ganhar a sua. Considerando isso, não me parece acaso que Claes Bang interprete o conde como se roubasse um pouco de cada um dos seus grandes atores (Schreck, Lugosi, Lee, Oldman), construindo um vilão fascinante e contraditório tal como Andrew Scott fez com o Moriarty dos mesmos autores. O seu Drácula é insaciável, nada romântico, sarcástico e até engraçado. Bem divertido.

Katla (2021). Já vimos as paisagens geladas da Islândia nos “nordic noir” Trapped e The Valhalla Murders e no terror psicodélico de Fortitude, mas Katla é outra coisa. Constrói um paralelismo brilhante entre espaços físicos e psicológicos talvez como nenhuma outra série nórdica antes dela, deixando-nos numa tensão constante que nunca parece dissipar-se. Isso parece ser a sua grande vitória e, ao mesmo tempo, aquilo que a torna vulnerável a críticas, porque não há nela variações de tom para aliviar um pouco o peso do espectador. Vê-la é um exercício de inquietude e de reflexão sobre o tempo, a memória e a individualidade. 

It’s a Sin (2021). Russell T Davies chegou àquele Olimpo autoral em que o seu nome chega para chamar o público, mas isso não significa que ele caia na preguiça. Esta é uma belíssima história sobre os primeiros dias da AIDS em Londres e Davies, como já tinha mostrado em Years and Years, é um mestre do tom – muitas lágrimas contrabalançadas com muitos sorrisos – e das personagens, todas cheias de contradições morais, todas com pelo menos um momento para brilhar. Os atores devem amá-lo.