O que vi de Maio até agora

Nestas últimas semanas, vi séries tão boas que os filmes pareceram ficar para segundo plano.
 
Exterminate All the Brutes (2021). Não é um simples documentário, é um ensaio visual devastador que revela o mundo de hoje como o resultado de um longo processo histórico com três pilares: civilização, colonização e aniquilação. Ler as obras em que se inspira e que, no fundo, são a sua bibliografia: Exterminate All the Brutes, de Sven Lindqvist, An Indigenous Peoples' History of the United States, de Roxanne Dunbar-Ortiz, e Silencing the Past de Michel-Rolph Trouillot.

Elvis Presley: The Searcher (2018). Ótimo documentário na Netflix. Põe em relevo, não as fofocas ou a fama, mas a música de Elvis enquanto somatório e encontro da música americana e, por extensão, do próprio país. 

Devs (2020). Recomendaram-ma depois de ter dito que não era o maior fã de Alex Garland. Fizeram bem. Misteriosa, viciante e com um roteiro impecável. Alison Pill mostra mais uma vez que é uma coadjuvante que adiciona ainda mais valor a qualquer coisa onde entra. 

Mare of Easttown (2021). Já se disse tudo sobre ela. Semanas depois de a ter visto, retenho a força imensa do primeiro episódio, que nos faz pairar sobre as personagens como se realmente fôssemos recém-chegados a uma cidade — entendendo mais ou menos quem é quem, mas só o suficiente para nos deixar curiosos para saber mais — e o tom de "nordic noir" aplicado a um retrato realista da classe média americana. 

Garth Marenghi's Darkplace (2004). Acho que a tentava verhá uns 15 anos e finalmente consegui. Mirabolante e divertidíssima. Impressiona ver como Richard Ayoade e Matt Berry,  aqui ainda nos seus vinte anos, sempre foram brilhantes.

The Comedy Store (2020). A história deste clube de comédia lendário de Los Angeles, repleto com os testemunhos das estrelas que o fizeram e que se fizeram nele.

Servant (2019). Ao contrário de muita gente, não tenho nada contra M. Night Shyamalan, mas Servant tem um problema: é tão competente a construir tensão que se nota o seu enredo muito fino. Terror psicológico não é só atmosfera.

What We Do In The Shadows (2019- ). Nunca pensei que pudesse ser ainda mais divertida do que o filme de Taika Waititi e Jemaine Clement, mas é isso mesmo que ela é. Atores e personagens apuradíssimos e episódios muito bem construídos mostram que o "mockumentary" ainda continua vivo e muito bem.

Master of None (s04). Das ruas de Nova Iorque aos interiores de Ingmar Bergman: a mudança de rumo estético e narrativo nesta temporada é inusitado, mas funciona e mostra de novo que Aziz Ansari não tem medo de correr riscos. Porém, será que ele está consciente do tanto que parece imitar a trajetória artística de Woody Allen?

Vi três minisséries inglesas que recomendo a qualquer pessoa. The Cry (2018) manipula constantemente a atenção do espectador, como um prestidigitador fazendo um truque de magia. Nunca esquecerei o prólogo do primeiro episódio, que, em poucos minutos e quase sem diálogo, consegue fazer-nos entender perfeitamente a história que vamos ver e, ao mesmo tempo, não revela quase nada sobre ela. Já The Virtues (2019) é triste e melodramática — talvez até um pouco exagerada. As suas ótimas personagens de classe trabalhadora dão-nos a sensação de estarmos a ver algo feito pelo Ken Loach, mas ela parece perder-se um pouco nos seus próprios labirintos. E Time (2021) é triste, mas esperançosa, trágica, mas sem lamúrias. Tem umas meras 3 horinhas e é uma das melhores histórias de prisão que vi nos últimos tempos, com personagens que vão além do clichê. Sean Bean está incrível e Stephen Graham é um monstro, um dos melhores atores ingleses em atividade hoje.

Friends: The Reunion (2021). Este especial é como a série era: bem-humorado, emotivo, lamechas qb. É um "divertissement", um pacote de Doritos que se come para enganar a fome. No caso, a fome é o saudosismo, aquele sentimento enganador que nos confunde entre o mundo que existiu e aquela outra pessoa que fomos nele.

The Fresh Prince of Bel-Air Reunion Special (2020). Comparado com o do Friends, parece mais arejado e mais disposto a enfrentar os elefantes na sala, como o encontro de Will Smith com Janet Hubert, a primeira "tia Vivian" que saiu em desgraça da série. Esse, que é o momento principal, parece dar-nos uma lição importante: as pessoas cometem erros, arrependem-se e mudam em função deles, mas não somos grande coisa se não tentarmos escutar o outro. Moralista, mas importante.

Mistress America (2015). Personagens que são simultaneamente ridículas e simpáticas: uma comédia "mumblecore" que mostra como todos os filmes "mumblecore" deveriam ser.

Irresistible (2020). Dirigido pelo Jon Stewart, é, no fundo, uma versão em filme daquilo que ele representa desde os tempos do Daily Show: um pensador satírico dos EUA, um explorador incansável das absurdas contradições do seu sistema político enquanto combustível cómico e um manipulador hábil das expectativas do público.

The Amusement Park (2019). Não é o filme mais assustador de George Romero, como já vi escrito por aí, mas certamente é um dos filmes corporativos mais divertidos de sempre.

Santiago, Italia (2018). Uma obra de denúncia de Nanni Moretti e mais um documento importante sobre as atrocidades do absurdo regime de Pinochet. 

…And Justice for All (1979). Um filme bem anos 70: masculino, denso, com personagens fortes e surradas que tentam cavar um caminho através da confusão. Talvez tenha um pouco de confusão a mais, no entanto: às vezes parece disperso.

O What We Do In The Shadows levou-me a revisitar os filmes de Taika Waititi. Em Boy (2010),  ele mostra as pessoas e a cultura da sua comunidade maori de forma muito bonita e sempre muito engraçada, além de deixar saliente uma característica central da sua obra: a forma como as crianças parecem muito mais sensatas do que os adultos. São estes que, perdidos em interesses e pulsões pouco nobres, perturbam as vidas até então equilibradas daquelas. A maestria de Waititi para trabalhar com crianças também se vê no lindíssimo Hunt for the Wilderpeople (2016). Acho que o seu olhar combina com o sentido de aventura, magia e ternura infantil, além de se notar o amor pelos estranhos e deslocados que já mostrara em Eagle vs Shark (2007).

Heavenly Creatures (1994). É curioso perceber como Peter Jackson revela neste drama temas das obras de terror "gore" que tinha feito até então: o fantástico como escape do cotidiano familiar, o poder do amor tanto para condenar quanto para salvar as personagens, a obsessão. E Kate Winslet já era ótima logo no início da sua carreira no cinema.

Queen & Slim (2019). Em Abril, Daniel Kaluuya ganhou o Oscar por Judas and the Black Messiah. Acho que houve nessa vitória um reconhecimento, não só do grande ator que ele é, mas também do fato de, desde Get Out, ele protagonizar algumas das narrativas que melhor revelam a consciência da população negra americana perante a encruzilhada de injustiças e desigualdade de que é alvo. Este filme é uma dessas narrativas.

Stardust (2020). Mais do que um filme mau, é um filme estranho. É um filme sobre o David Bowie sem músicas do David Bowie e com atores que lembram muito pouco as pessoas reais. No fundo, parece usar a ideia mítica de Bowie enquanto personagem de si mesmo para invocar o seu conjuro, mas tanto Bowie quanto outros filmes, como Velvet Goldmine, o fizeram muito melhor e de forma muito mais memorável. 

Old School (2003). É interessante pensar como Todd Phillips, desde esta comédia até Joker passando pelos Hangover, se especializou em dirigir filmes sobre homens adultos que batalham para aceitar e reformular a sua maturidade. É uma obra fundamental para entender a crise da masculinidade no século XXI, e ainda tem o Will Ferrell.

Spring (2014). Uma história de amor num universo de terror. Interessante e original, mas a força da premissa acaba por se perder.