MICHELLE WOLF: JOKE SHOW (2019)

O show da Ilana Glazer foi tão chatinho que achei que merecia algo melhor. Apostei que o especial da Michelle Wolf para o Netflix não me iria decepcionar, e ganhei a aposta. Foi até interessante ver os dois na sequência para perceber o porquê. Wolf fala exatamente sobre os mesmos temas que Glazer — menstruação, feminismo, sexualidade — e vai mais longe, abordando o cancelamento, o estupro e até o aborto que ela fez no passado. A diferença entre as duas comediantes consiste num ponto muito simples: em nenhum momento Glazer põe algo em causa. Ela é um dado adquirido e o mundo não é um problema complexo a ser resolvido, mas um simples pretexto para ela dar a sua opinião. Ora, o show de Wolf é exatamente o oposto. Ela e o mundo aparecem como lugares complexos, onde nada é adquirido e onde é possível fazer punchlines com frases como «as mulheres brancas são as vítimas mais privilegiadas» ou «quando fiz o meu aborto, senti-me poderosa». Como qualquer grande comediante, Wolf deixa-nos pensativos depois de passar 1 hora a fazer-nos sentir o perigo que as palavras podem conter.

STARSHIP TROOPERS (1997)

Se há alguém que se pode queixar de ter sido mal entendido, essa pessoa é Paul Verhoeven. Lembro-me bem de quando este filme estreou e de todas as acusações que o realizador ouviu: efeitos digitais maus e a mais, violência gratuita, elogio ao totalitarismo, e por aí adiante. A grande injustiça é que a ironia de Verhoeven não é tão difícil de compreender. A artificialidade dos efeitos, da história e das personagens e a forma como a nação, a ordem, o militarismo e o ódio ao inimigo são exaltados em excertos de noticiários (como ele já tinha feito em "Robocop") diz-nos outra coisa: «este filme é fascista porque ele faz parte de um sistema de imaginário — o cinema, a informação, as imagens que vocês veem — que é fascista». Torcemos pelos heróis de Verhoeven, porque queremos que o herói vença, mas, ao mesmo tempo, reconhecemos o absurdo do imperialismo militarista de que eles fazem parte porque o realizador deixa evidente que o meio audiovisual é um elemento fundamental para a construção desse imperialismo. Verhoeven foi castigado por ter colocado o género e o espectador moralmente em causa, e isso não se lhe podia permitir.

ILANA GLAZER: THE PLANET IS BURNING (2020)

Gostava muito de "Broad City", principalmente das primeiras temporadas. Por isso, quando vi este especial de stand-up da Ilana Glazer no catálogo da Amazon Prime, não resisti, mas antes tivesse resistido. Glazer tem um grande problema que nunca consegue resolver (apesar de começar o "set" falando sobre ele): a distância entre a sua personagem na série e ela própria. O seu "delivery" do texto é preguiçoso, como se ela não tivesse conseguido dominar o tempo específico do stand-up, e, enquanto fala sobre menstruação e sexualidade, não diz nada de novo ou de particularmente engraçado. Além disso, o público não ajuda. Aquelas pessoas estão lá mais para ver Glazer, rainha dessa espécie em vias de extinção que é o hipster de Brooklyn, do que para ouvir o seu número. É só ela gritar «xana!» ou «gosto 60% de homens e 40% de mulheres» que toda a gente irrompe numa saraivada de aplausos e vivas. Muito, muito fraquinho.

THE HATER (2020)

Conhecido no Brasil como "Rede do Ódio", é um filme que vem a calhar para estes tempos de divisões e que mostra bem como as redes sociais — surgidas como promessa de uma comunicação sem obstáculos entre as pessoas — são espaços de manipulação e distorção com consequências terríveis no mundo. Uma espécie de "Nightcrawler" (2014) do mundo digital, não resiste a alguns clichês, mas é interessante na sua crítica ao jogo político, da esquerda caviar à direita nacionalista, e termina com uma moral curiosa: num mundo de imagens, quem se esconde é rei.

MA LOUTE (2016)

Foi-me recomendado este filme que o Bruno Dumont filmou entre Quinquin e Coincoin. Há algo em Dumont que me lembra o saudoso João César Monteiro: a capacidade subversiva de impor um ritmo lento, que intriga e faz com que nos surpreendamos ainda mais quando algum absurdo aparece. Pensamos outra e outra vez "peraí, eu vi mesmo aquilo que penso que vi?" enquanto Dumont nos vai atirando realismo mágico, canibalismo, uma aristocracia podre e incestuosa, referências cinéfilas (Laurel & Hardy, "O Atalante") e assassinatos mil. Como nas suas séries, a história é um pretexto que serve para nos presentear com tudo isso e que não precisa de um fim convencional. Divertidíssimo.