O NOME DA ROSA (1986)

Após ter visto pela enésima vez este filme que me fascina desde a infância, tenho uma pergunta: como é que NINGUÉM me disse que saiu uma adaptação em série ano passado com o Turturro fazendo de William de Baskerville? NINGUÉM?

THEATER OF LIFE (2016)

Belo documentário sobre o Refettorio Ambrosiano de Massimo Bottura, um restaurante para os necessitados focado em acabar com o desperdício de alimentos e que, por isso, aproveita ingredientes que iriam para o lixo. O filme não esquece Bottura e os seus muitos chefs convidados (o Ducasse!, o Redzepi!, o pessoal da Gastromotiva!), mas inteligentemente dá o protagonismo aos moradores de rua, aposentadas e refugiadas que visitam o lugar à procura de companhia e (excelente) comida. Memorável.

THE SERPENT AND THE RAINBOW (1988)

É preciso dizer já que Wes Craven era um autor dos pés à cabeça, e quem tiver dúvidas que veja o extraordinário "Wes Craven's New Nightmare". A sua estética elaborada está aqui presente, desde a sua característica de marcar a divisão entre o real e o sonho até nomear as suas presumíveis influências nos sobrenomes das personagens: Durand (o mitólogo que estudei no mestrado e que, em algum momento, me fez levar as mãos à cabeça), Duchamp, Mozart, Celine, Peytraud... Porém, fiquei muito dividido com este filme. Por um lado, é de admirar a coragem de quem foi filmar no Haiti logo após a queda de Baby Doc e tentou captar o que seria um pedaço da vida real no país, além de recorrer a um elenco maioritariamente negro numa década de representatividade diminuta no cinema de terror . Por outro, reproduzem-se clichês raciais que já não valem para nada hoje: os EUA da ciência vs o Haiti da magia, o branco salvador, o negro sacrificial, etc. Também se pisa um terreno perigoso de apropriação cultural do vodu haitiano, ainda que seja notório o esforço de Craven para não ser vago e desrespeituoso. Resumiria assim: no que acerta, o filme continua a acertar muito.

REMASTERED: TRICKY DICK & THE MAN IN BLACK (2018)

Há uns meses, vi o documentário do Victor Jara da coleção Remastered do Netflix. Gostei muito, e este sobre Johnny Cash não lhe fica atrás. A grande sacada dele é não fazer uma perspectiva geral da vida do cantor e focar num evento específico: o convite de Nixon a Cash para este tocar na Casa Branca e o que aconteceu no concerto. Evita a repetição, mantém o nosso interesse e mostra, mais uma vez, como Cash foi dos sujeitos mais porrreiros que já viveram.

MYSTIFY: MICHAEL HUTCHENCE (2019)

O vocalista dos INXS foi dos homens mais bonitos que o rock teve, mas a vida dele teve complicações e tristezas na mesma medida da beleza. Um pouco hagiográfico, mas com bom arquivo e um respeitável rol de entrevistados. Vê-se bem e ainda dá para cantarolar as músicas..

LIGUE DJÁ: O LENDÁRIO WALTER MERCADO (2020)

Se o império de Walter Mercado chegou a Portugal, sinceramente passou-me ao lado, mas o entusiasmo que correu os meus grupos de Whatsapp esta semana só demonstrou a popularidade que ele teve no Brasil. O documentário perde força a partir do momento em que revela o seu gancho inicial (o motivo por que Mercado desapareceu subitamente da televisão), mas vale pelo apelo à nostalgia.

SEARCH PARTY (s03, 2020)

A série mais millennial que conheço e, ao mesmo tempo, a sátira mais mordaz da cultura e dos valores millennials que já vi. Confesso que pouco mais do que espreitei as duas primeiras temporadas enquanto a Cyntia via, mas tenho prestado mais atenção à terceira muito por causa desta atriz. Arrisco (com confiança considerável) que toda a equipe de gravação esperava ansiosamente as cenas com Shalita Grant. A sua composição da personagem é magistral e o seu controlo do ritmo é perfeito — o que é só uma forma rebuscada de dizer que a mulher é muito engraçada!

ENTRE TINIEBLAS (1983)

Uma cantora vê o seu namorado morrer com uma overdose de heroína e refugia-se num convento por entre freiras com nomes humilhantes (Sor Ratazana, Sor Esterco, Sor Víbora), onde o consumo de drogas leves e pesadas é constante e a busca por dinheiro é imperiosa. Dizer o quê dos filmes do Almodóvar do início dos anos 80? Talvez isto: poucas vezes alguém tão livre filmou tão bem filmes tão divertidos e tão blasfemos.

CANDYMAN (1992)

Enquanto lia o excelente livro "Horror Noire", apercebi-me que nunca vira "Candyman". A história, adaptada de Clive Barker, é atravessada pelo tema da culpa, da individual até à histórica. Pareceu-me mesmo uma grande alegoria sobre a "white guilt", construída com aquela maestria narrativa em que cada desenvolvimento é uma complexificação ou nuance do pensamento. Nem um único segundo sem tensão. Que grande filme..

BROADCHURCH (s03, 2017)

Chego atrasado à terceira temporada desta série britânica influenciada pelo "nordic noir". Os ingredientes do costume continuam, felizmente, mas o deleite especial é ver esta mulher, Julie Hesmondhalgh, representar uma vítima de estupro. Sempre que ela apartece, há um pormenor da personagem que se revela da forma mais sutil e natural possível. Que grande atriz..

NADIE SABE QUE ESTOY AQUI (2020)

Tem um toque de realismo mágico e trabalha bem os seus símbolos: a água que rodeia a fazenda anuncia a inacessibilidade do protagonista, a obesidade deste representa o peso moral que carrega, o seu silêncio revela a dor de quem teve a sua voz roubada. Não é um filme pesado, antes tem aquele agridoce de sorriso triste bem latino-americano.

GHOST STORIES (2017)

As histórias de fantasmas têm uma estrutura muito semelhante à da comédia, com sequências cujo objetivo é acumular tensão até ao punch final, em que a assombração é revelada. É um processo eminentemente cinematográfico, que trabalha o som e a edição para ser eficaz. Durante a 1ª hora, o filme faz isto muito bem, além de conseguir manter a atenção com uma estrutura narrativa original, que mistura a antologia de histórias com um enredo guarda-chuva. Esperava-se um ato final em que tudo se enlaçasse, mas, em vez disso, o filme dá-nos uma desilusão. Desmonta tudo o que construiu antes e, pior, parece convencido de que faz muito bem. Zanguei-me.

EUROVISION SONG CONTEST: THE STORY OF FIRE SAGA (2020)

É claro que, sendo europeu, a minha memória afetiva da Eurovisão é tão grande e irrazoável quanto a que um brasileiro tem de carne louca. A Eurovisão é um lugar estranho: todos sabemos que aquilo é piroso e o espetáculo mais artificial que pode haver, mas, em algum momento, todos entramos numa discussão sobre qual deve ser a canção escolhida. Há algo de muito comunitário nesse ritual, e o filme soube captar isso muito bem, talvez porque o Will Ferrell, ao que parece, tem esposa sueca e acompanha o festival há anos. As aparições de verdadeiros vencedores da Eurovisão (incluindo o Salvador Sobral) devem ser lidas por aí. O filme é uma homenagem simpática a este universo, com purpurina, luzes, cores e a exaltação das emoções desbragadas. Mais do que rir, faz-nos sorrir — mas sorrimos muito..

THE INVITATION (2015)

Pessoas com 25-45 anos juntam-se para um jantar. Por alguma razão, o ambiente é estranho e desconfortável. Verdades incómodas são reveladas, e a catarse final corresponde fundamentalmente à queda das máscaras com que a classe média se constrói. Poderia ser a sinopse de muitos títulos de mumblecore, e é a sinopse deste filme. Sou ambivalente em relação a esse movimento. Por um lado, atraem-me filmes feitos com orçamento baixo, concentrados na mesma locação, com poucos atores. Por outro, acho que o mumblecore não prima por olhar para pessoas interessantes. Este filme pareceu-me tão vazio quanto as suas personagens, sem a sabedoria de adicionar um pormenor que lhe desse sal, como o si-fi de Coherence (2013).

THE FLORIDA PROJECT (2017)

É como se um guião do Ken Loach fosse filmado por um cineasta independente americano. Com exceção do grandioso Willem Dafoe, quase todos os atores são amadores ou de início de carreira. Grande parte dos figurantes são verdadeiros moradores dos motéis em que se filmou, que passavam espontaneamente durante as cenas. O orçamento era baixo, e a produção teve que incluir helicópteros no guião porque não tinha dinheiro para impedir que eles voassem. Todos gritaram de felicidade quando viram um arco-íris no céu, o que lhes permitiu poupar 50 mil dólares em CGI. Tal como Escape From Tomorrow (2013), mostra um outro lado da Disney. Porém, aqui não se trata do pesadelo que está subjacente à fantasia, mas da pobreza e da vida rude que espreitam sobre as muralhas do Walt Disney World. Melodrama neorrealista com atores infantis extraordinários. Ótimo filme.

ATTACK THE BLOCK (2011)

Um bando de delinquentes adolescentes que moram em um prédio de habitação social no Sul de Londres tem que lidar com uma invasão alienígena e, ao mesmo tempo, fugir da polícia. Poderia ser o mote para um filme chato ou moralizante, mas ele não é nem uma coisa nem outra: é uma grande história sobre privilégios raciais, com personagens riquíssimas. Assumo o chavão: "La Haine meets War of the Worlds".. 

KILL BILL VOL. 2 (2004)

Já perdi a conta às vezes que vi a primeira parte de Kill Bill (só no ano em que estreou, foram três), mas só vira a segunda parte uma vez. Continuo a achar o que achei: mais calmo e menos surpreendente do que o primeiro e um pouco anticlimático..

UNE FEMME MARIÉE (1964)

Nunca tinha visto este Godard, e é notório como a câmera e a edição agitadas dos primeiros anos evoluíram para um estilo em que cada plano parece extremamente ponderado, como se o tema da impossibilidade de comunicação não passasse mais para o olhar que a olha. Além disso, nota-se que, sendo sempre possível que as personagens de Godard sejam espelhos uma das outras, com traços repetidos de filme para filme, as suas mulheres denunciam um pensamento muito mais complexo do que os homens. Logo no início, Charlotte conta ao seu amante a história de uma cicatriz, e ele diz que é "como uma casa onde nunca se entrou". Fala em abstrato, sobre corpos ou intimidades, ou sobre a própria mulher na sua frente, que resiste às propostas de engravidar? Talvez fale sobre tudo, e esse parece-me o grande triunfo da Charlotte de Macha Méril. Mais do que Karina, e mais até do que Bardot, ela representa uma mulher através do seu corpo, um corpo que está em risco permanente de ser alienado, não só pelos homens com quem ela se relaciona, mas pela publicidade e pela Moda, que dizem como ele deve ser adornado e moldado, e, claro, por nós, os espectadores que têm o poder de lhe produzir o sentido quando ele nos aparece. Charlotte não é nenhuma heroína. Ela é uma mulher acomodada à sua posição social, que adora comprar roupa, se orgulha dos pequenos luxos do seu apartamento e cujo desejo é definido principalmente pelo desejo alheio. O seu drama é pequeno, de classe média, mas com ele se fez este filme absolutamente maravilhoso.

PREDESTINATION (2014)

É comum ver a identidade como tema central em histórias de viagem no tempo, mas o enfoque por que Predestination a aborda pareceu-me absurdamente original: a transição de género. Havia tempo para o último ato ser mais desenvolvido, mas, ainda assim, um belo filme.

BACK TO THE BEACH (1987)

Descobri este filme por causa do clipe da versão de "Pipeline" tocada pelo Dick Dale e o Stevie Ray Vaughan. É uma sátira dos filmes de praia dos anos 50 e 60 interpretada por duas estrelas destes, Frankie Avalon e Annette Funicello. É como se a Xuxa e o Sérgio Mallandro hoje fizessem um filme satirizando Lua de Cristal. O distanciamento cultural fez-se sentir aqui. Sem ter visto Beach Blanket Bingo ou sem saber que a senhora Anette fez muitos comerciais para manteiga de amendoim, não percebi algumas das piadas, que passaram como simples comédia "nonsense". A auto-sátira e o absurdo fizeram dele uma comédia boa para a sua época e para os EUA, tanto que ganhou dois "thumbs up" de Ebert e Siskel. Porém, 33 anos depois, perdido do seu contexto na "americana", é pouco mais do que um filme com graça por nitidamente não se levar nada a sério..