CANDYMAN (1992)

Enquanto lia o excelente livro "Horror Noire", apercebi-me que nunca vira "Candyman". A história, adaptada de Clive Barker, é atravessada pelo tema da culpa, da individual até à histórica. Pareceu-me mesmo uma grande alegoria sobre a "white guilt", construída com aquela maestria narrativa em que cada desenvolvimento é uma complexificação ou nuance do pensamento. Nem um único segundo sem tensão. Que grande filme..

BROADCHURCH (s03, 2017)

Chego atrasado à terceira temporada desta série britânica influenciada pelo "nordic noir". Os ingredientes do costume continuam, felizmente, mas o deleite especial é ver esta mulher, Julie Hesmondhalgh, representar uma vítima de estupro. Sempre que ela apartece, há um pormenor da personagem que se revela da forma mais sutil e natural possível. Que grande atriz..

NADIE SABE QUE ESTOY AQUI (2020)

Tem um toque de realismo mágico e trabalha bem os seus símbolos: a água que rodeia a fazenda anuncia a inacessibilidade do protagonista, a obesidade deste representa o peso moral que carrega, o seu silêncio revela a dor de quem teve a sua voz roubada. Não é um filme pesado, antes tem aquele agridoce de sorriso triste bem latino-americano.

GHOST STORIES (2017)

As histórias de fantasmas têm uma estrutura muito semelhante à da comédia, com sequências cujo objetivo é acumular tensão até ao punch final, em que a assombração é revelada. É um processo eminentemente cinematográfico, que trabalha o som e a edição para ser eficaz. Durante a 1ª hora, o filme faz isto muito bem, além de conseguir manter a atenção com uma estrutura narrativa original, que mistura a antologia de histórias com um enredo guarda-chuva. Esperava-se um ato final em que tudo se enlaçasse, mas, em vez disso, o filme dá-nos uma desilusão. Desmonta tudo o que construiu antes e, pior, parece convencido de que faz muito bem. Zanguei-me.

EUROVISION SONG CONTEST: THE STORY OF FIRE SAGA (2020)

É claro que, sendo europeu, a minha memória afetiva da Eurovisão é tão grande e irrazoável quanto a que um brasileiro tem de carne louca. A Eurovisão é um lugar estranho: todos sabemos que aquilo é piroso e o espetáculo mais artificial que pode haver, mas, em algum momento, todos entramos numa discussão sobre qual deve ser a canção escolhida. Há algo de muito comunitário nesse ritual, e o filme soube captar isso muito bem, talvez porque o Will Ferrell, ao que parece, tem esposa sueca e acompanha o festival há anos. As aparições de verdadeiros vencedores da Eurovisão (incluindo o Salvador Sobral) devem ser lidas por aí. O filme é uma homenagem simpática a este universo, com purpurina, luzes, cores e a exaltação das emoções desbragadas. Mais do que rir, faz-nos sorrir — mas sorrimos muito..

THE INVITATION (2015)

Pessoas com 25-45 anos juntam-se para um jantar. Por alguma razão, o ambiente é estranho e desconfortável. Verdades incómodas são reveladas, e a catarse final corresponde fundamentalmente à queda das máscaras com que a classe média se constrói. Poderia ser a sinopse de muitos títulos de mumblecore, e é a sinopse deste filme. Sou ambivalente em relação a esse movimento. Por um lado, atraem-me filmes feitos com orçamento baixo, concentrados na mesma locação, com poucos atores. Por outro, acho que o mumblecore não prima por olhar para pessoas interessantes. Este filme pareceu-me tão vazio quanto as suas personagens, sem a sabedoria de adicionar um pormenor que lhe desse sal, como o si-fi de Coherence (2013).

THE FLORIDA PROJECT (2017)

É como se um guião do Ken Loach fosse filmado por um cineasta independente americano. Com exceção do grandioso Willem Dafoe, quase todos os atores são amadores ou de início de carreira. Grande parte dos figurantes são verdadeiros moradores dos motéis em que se filmou, que passavam espontaneamente durante as cenas. O orçamento era baixo, e a produção teve que incluir helicópteros no guião porque não tinha dinheiro para impedir que eles voassem. Todos gritaram de felicidade quando viram um arco-íris no céu, o que lhes permitiu poupar 50 mil dólares em CGI. Tal como Escape From Tomorrow (2013), mostra um outro lado da Disney. Porém, aqui não se trata do pesadelo que está subjacente à fantasia, mas da pobreza e da vida rude que espreitam sobre as muralhas do Walt Disney World. Melodrama neorrealista com atores infantis extraordinários. Ótimo filme.

ATTACK THE BLOCK (2011)

Um bando de delinquentes adolescentes que moram em um prédio de habitação social no Sul de Londres tem que lidar com uma invasão alienígena e, ao mesmo tempo, fugir da polícia. Poderia ser o mote para um filme chato ou moralizante, mas ele não é nem uma coisa nem outra: é uma grande história sobre privilégios raciais, com personagens riquíssimas. Assumo o chavão: "La Haine meets War of the Worlds".. 

KILL BILL VOL. 2 (2004)

Já perdi a conta às vezes que vi a primeira parte de Kill Bill (só no ano em que estreou, foram três), mas só vira a segunda parte uma vez. Continuo a achar o que achei: mais calmo e menos surpreendente do que o primeiro e um pouco anticlimático..

UNE FEMME MARIÉE (1964)

Nunca tinha visto este Godard, e é notório como a câmera e a edição agitadas dos primeiros anos evoluíram para um estilo em que cada plano parece extremamente ponderado, como se o tema da impossibilidade de comunicação não passasse mais para o olhar que a olha. Além disso, nota-se que, sendo sempre possível que as personagens de Godard sejam espelhos uma das outras, com traços repetidos de filme para filme, as suas mulheres denunciam um pensamento muito mais complexo do que os homens. Logo no início, Charlotte conta ao seu amante a história de uma cicatriz, e ele diz que é "como uma casa onde nunca se entrou". Fala em abstrato, sobre corpos ou intimidades, ou sobre a própria mulher na sua frente, que resiste às propostas de engravidar? Talvez fale sobre tudo, e esse parece-me o grande triunfo da Charlotte de Macha Méril. Mais do que Karina, e mais até do que Bardot, ela representa uma mulher através do seu corpo, um corpo que está em risco permanente de ser alienado, não só pelos homens com quem ela se relaciona, mas pela publicidade e pela Moda, que dizem como ele deve ser adornado e moldado, e, claro, por nós, os espectadores que têm o poder de lhe produzir o sentido quando ele nos aparece. Charlotte não é nenhuma heroína. Ela é uma mulher acomodada à sua posição social, que adora comprar roupa, se orgulha dos pequenos luxos do seu apartamento e cujo desejo é definido principalmente pelo desejo alheio. O seu drama é pequeno, de classe média, mas com ele se fez este filme absolutamente maravilhoso.

PREDESTINATION (2014)

É comum ver a identidade como tema central em histórias de viagem no tempo, mas o enfoque por que Predestination a aborda pareceu-me absurdamente original: a transição de género. Havia tempo para o último ato ser mais desenvolvido, mas, ainda assim, um belo filme.

BACK TO THE BEACH (1987)

Descobri este filme por causa do clipe da versão de "Pipeline" tocada pelo Dick Dale e o Stevie Ray Vaughan. É uma sátira dos filmes de praia dos anos 50 e 60 interpretada por duas estrelas destes, Frankie Avalon e Annette Funicello. É como se a Xuxa e o Sérgio Mallandro hoje fizessem um filme satirizando Lua de Cristal. O distanciamento cultural fez-se sentir aqui. Sem ter visto Beach Blanket Bingo ou sem saber que a senhora Anette fez muitos comerciais para manteiga de amendoim, não percebi algumas das piadas, que passaram como simples comédia "nonsense". A auto-sátira e o absurdo fizeram dele uma comédia boa para a sua época e para os EUA, tanto que ganhou dois "thumbs up" de Ebert e Siskel. Porém, 33 anos depois, perdido do seu contexto na "americana", é pouco mais do que um filme com graça por nitidamente não se levar nada a sério..

DARK (s03, 2020)

Ainda não vi a última temporada de Dark por inteiro. Porém, há um pensamento que me tem inquietado durante estes novos episódios. No género da viagem no tempo, há, digamos, um eixo de complexidade. Quando é baixo, consiste em simplesmente definir um conjunto de regras básicas e apostar na narrativa, à Back From The Future (ou à Bill & Ted). Quando é alto, a ciência e os paradoxos temporais acabam por dominar a história, à Primer. Eu sei que viagens no tempo que apostam na complexidade alta são boas para gerar "fandom", mas sempre me parece que elas correm um risco grande de entrar em contradição: por um lado, elas têm que formular uma hipótese racional sobre como a viagem no tempo poderá funcionar e, por outro, precisam manter a ambiguidade narrativa, acabando assim por colocar um espectador perante um resultado que parece tão aleatório como seria aquele em que a ciência não estivesse presente. Ao longo das suas temporadas, eu diria que Dark foi subindo nesse eixo, complexificando o seu universo num jogo de duplos e espelhos com ressonâncias místicas e religiosas, e multiplicando as suas personagens em diferentes encarnações históricas. Nestes novos episódios, parece-me várias vezes que é demais: há tempos demais, pessoas demais, enredos demais, e, em vez de as regras deste universo nos serem explicadas pouco a pouco, parece que novas regras são constantemente inventadas para lidar com a montanha de possibilidades que se levantou. Isto parece-me muito prejudicial para aquilo que é uma das principais qualidades da série: o tom e ambiente admiráveis, com um suspense de cortar à faca. Se tudo é possível, nada é fatal, e a tensão não será então mais do que um elaborado joguinho de luz e som.

Após terminar: foi um final muito bonito para uma série extremamente truqueira.
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GHOST IN THE SHELL (1995)

Nunca assisti muita animação, muito menos mangá, mas conheço tanta gente que gosta tanto deste filme que eu tinha que vê-lo em algum momento. 25 anos depois, ainda impressiona e ainda surpreende, nem que seja por perceber o quanto as Wachowski roubaram dele para colocar no Matrix. Porém, como a criatividade funciona como um belo sistema de trocas, é notório também o modo como ele pegou ambientes e tons do Blade Runner, então, tudo certo. Acima de tudo, um universo extremamente envolvente e persuasivo.

THE PRINCESS BRIDE (1987)

Hoje vi dois clássicos que me faltavam. Tenho lido tantas menções a The Princess Bride em artigos e posts que não resisti à curiosidade. Dá a sensação que o Rob Reiner disse "ei, já que estamos aqui um monte de lendas da comédia, mais umas tantas pessoas que virão a ser grandes estrelas, porque não fazemos esta fantasia infantil sem medo de sermos engraçados?". Bom ver que, um dia, já houve filmes divertidos e realmente para toda a família que não precisavam seguir um padrão homogéneo (estou a olhar para vós, Disney/Pixar). Mais: se para um roteirista é sempre inspirador ver uma obra de William Goldman, para qualquer pessoa será curiosíssimo ver Robin Wright quando tinha uns míseros 20 anos.

THE VAST OF NIGHT (2019)

Sci-fi retrô, com imaginário e reconstituição dos anos 50, inspirado por Twilight Zone e com um toque teatral graças a travellings longos e muitos diálogos e monólogos. Um belo filminho.

HORROR NOIRE: A HISTORY OF BLACK HORROR (2019)

Ontem falei aqui sobre um trabalho que fiz para o mestrado. Mais especificamente, era sobre o imaginário do "Us", de Jordan Peele, o que me levou a pesquisar fontes sobre a representatividade negra no cinema de Terror. O livro "Horror Noire", da professora Robin R. Means Coleman, foi essencial e, para minha felicidade, descobri que ele foi adaptado para documentário no ano passado. Interessantíssimo, necessário e com entrevistas divertidíssimas com alguns atores que fizeram História..

LE PETIT SOLDAT (1963)

Foi o segundo longa que Godard gravou, mas o quarto que ele lançou, porque a censura francesa não gostou das cenas de tortura e deixou o filme na prateleira durante dois anos até que passasse a guerra da Argélia. É um thriller de espionagem, um comentário político pesado e, ao mesmo tempo, uma mensagem de amor à ainda coadjuvante Anna Karina, por quem a câmera está claramente apaixonada. O diretor também estava: ela e Godard casaram-se logo após a filmagem. Curiosamente, no ano da estreia, a relação deles já estava tão tremida que Godard trocou-a por Brigitte Bardot para o papel principal em "Le Mépris". Enfim, escolhas.