Estudo para personagem

Eu não moro aqui, eu moro na vila ao lado. Eu sou designer de vidro. Não podia fazer outra coisa. O vidro é transparente, moldável, maleável. É material, sensorial. E frágil.

Eu sou como o vidro.

O que eu gosto no vidro é que ele não mente. Se ele está de bem comigo, as coisas correm bem. Se ele está de mal, eu corto-me. Eu posso andar por cima de vidro descalça e não me cortar. Mas também posso fazê-lo e cortar-me toda. Tudo depende de ele estar zangado ou não. Mas às vezes eu ando por cima dele e, a olho, faço peças que ficam magníficas. Tudo depende dele.

Eu penso muita coisa. Mas a pergunta é sempre a mesma: onde é que eu posso divulgar as minhas coisas? Eu moro aqui, trabalho na vila ao lado. Onde é que eu mostro o meu vidro, diz-me?

A semana dos Social Smokers

Se os grevistas da CP tiverem pena de mim, conseguirei chegar a Lisboa para amanhã, 3a feira, estar na Galeria Monumental, no Campo dos Mártires da Pátria 101, às 19h, actuando com os Social Smokers na abertura da exposição de fotografia Magnetic Poetry. João Silveira Ramos, que nos fotografou para o nosso primeiro álbum, expõe aqui as imagens criadas à volta do seu conceito, que inaugura assim o ciclo Poesia Monumental.

Já agora, como moro lá perto, não terei que me preocupar por haver greves nos transportes públicos que me impeçam de chegar ao concerto que os Social Smokers vão dar no mesmo espaço às 21h30 de Sábado, dia 9.

E para os mais impacientes não ficarem tristes (ou os mais tristes não ficarem impacientes), o Clube da Palavra do Canal Q fez-nos o favor de incluir mais uma participação nossa num programa. Começa aos 11m22s do vídeo aqui em baixo. Espero que gostem.
http://rd3.videos.sapo.pt/play?file=http://rd3.videos.sapo.pt/dzfUAnlliNtI8SSiLe64/mov/1

Dos clássicos

Quando Vatsyayana explica no Kama Sutra que há pessoas que já têm um conhecimento prático do Kama Shastra (ou seja, da tradição escrita sobre o prazer sensual), ele escreve as seguintes linhas
Todos sabemos, por experiência própria, que certas mulheres, tais como as filhas dos príncipes e dos seus ministros, assim como as mulheres públicas, são efectivamente versadas na Kama Shastra.
Um país em crise só pode encontrar conforto nelas.

O anúncio do bolinho de bacalhau do Habib's

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=iMp4lVBOHco&w=480&h=390]
Amigos brasileiros, vamos lá a ver se nos entendemos: eu acho que este anúncio está engraçado e, sendo estereotipado, não é preconceituoso. Tudo bem, ri-me e tudo, sim senhor. Mas...

1. Em Portugal, ninguém com menos de 60 anos usa camisas e coletes como este "Manuel", a menos que seja um estudante de Design de Moda com espírito saudosista.

2. Ao longo da minha vida, eu (e só porque cresci no norte de PT, e não em Lisboa, como diz o anúncio) devo ter conhecido meia dúzia de pessoas que diziam "óito" em vez de "ôito" e provavelmente já estarão todas mortas de velhice.

3. O que, eu já percebi, é impossível que vocês entendam é: se querem mesmo imitar o sotaque português, aprendam a modular as vogais. Nós não as fechamos ao ponto de dizer "belinhos", "becalhau", "fela". Definitivamente não as abrimos como vocês, por isso também não dizemos "mais", "restauranti", "piádista". Esta é sempre a grande armadilha em que caem os brasileiros que querem imitar o sotaque português. Aprendam, que eu não duro sempre.

4. Ambos os lugares são muito bonitos. Mas Lisboa não é Olinda, ou Salvador, ou seja lá qual for o centro histórico em que aquelas mulheres estão. Vê-se logo. E, aliás, se elas morassem numa casa daquelas em Lisboa, elas não estariam secando a roupa na varanda, porque teriam um batalhão de domésticos que as secariam com os próprios hálitos.

5. Ninguém ouve vira em Portugal. Para ouvir vira, é preciso ir a um baile de uma aldeia do Norte no Verão e, mesmo assim, ainda vai ser mais fácil ouvirem uma versão de um forró qualquer do que vira. Por isso, parem com o vira. Tipo, acabou. Ok? Ok. Beijos.

O butelo


Um amigo meu, português, mas que passou os últimos meses comigo no Brasil, regressou ao solo luso na semana passada e fez aquilo que, pelos vistos, está inscrito no nosso ADN: comer todas as comidas que, por dificuldade de execução ou por falta de ingredientes, lhes estiveram vedadas na estadia no exterior. Foi o mesmo instinto que me levou a devorar uma chamuça meia hora depois de ter chegado; a comer uma francesinha em cada uma das vezes que parei no Porto; e o levou ontem a perseguir um butelo.

Um butelo é o enchido que se exibe aqui em cima, típico de Bragança e confeccionado com pedaços de carne de porco com osso. Confesso que nunca tinha ouvido falar de tal coisa até que ele me enviou um e-mail dizendo "vou malhar um butelinho com cascas, simplesmente o melhor prato da gastronomia mundial". Disse-lhe que não sabia o que era um butelo. Ele respondeu dizendo que o meu conhecimento da alta culinária tradicional portuguesa era medíocre - eu, que até comia a crista do galo cozida quando a minha avó fazia cozido! audácia! - e anexava a receita. Relatei-a com muito interesse à senhora minha mãe, que reagiu da seguinte forma: "Grande coisa! O butelo dele é o nosso pedro!". Ao que parece, o mesmo enchido era executado aqui no noroeste, também usando o bucho e, como variante, a bexiga do porco, mas o nome diferia. Portanto, um pedro do Minho é um butelo de Trás-os-Montes. Dada a incidência de emigração da região trasmontana para o Brasil, percebe-se porque há tantos nomes estranhos naquela terra.



Do que tenho visto, já não se faz o pedro pelo Minho, mas os trasmontanos não desistem do butelo nem do seu acompanhamento predilecto, as "cascas" ou "casulas", ou seja, vagens de feijão. Parece interessante e revela bem o poder de decisão do povo nordestino. Um minhoto levanta-se à noite com insónia e pensa "o que me apetece é um leitinho e uma fatia de broa com presunto". Um trasmontano levanta-se à noite e pensa "o que me apetece é encher uma barriga de porco com carne e osso, deixá-la a defumar vinte dias, cozê-la duas vezes durante três horas e comê-la com vagens que ficaram um dia de molho antes de serem cozidas e alouradas". Poder-se-ia chamar-lhe teimosia. Eu chamo-lhe resiliência.

Seja como for, um abraço e muita força para o meu amigo. Fico ansioso por provar essa iguaria um dia e espero sinceramente que ninguém lhe chame preguiçoso por decidir comer as cascas com os feijões ainda dentro.

Estudo para personagem

Eu gostaria muito de te ter aqui, mas há uma força que nos obriga a andar.

Dantes, para as vacas ganharem força para puxar pedra e assim, dava-se-lhes vinho por uma garrafa. Mas tinha que se ter cuidado, senão a vaca mordia e partia a garrafa. O meu pai chegava-lhes com o dedo, punha-lho na boca para lhes apartar a pele e punha-se a garrafa de lado enquanto outro lhes agarrava o focinho para elas beberem. Mas o meu pai não lhes dava vinho, dava-lhes urina de homem. E farinha, milha.

Eu tenho uma uma coisa, sonho muito. Sonho que estou nalgum lugar, depois acordo. Mas dantes desesperava, agora não. É o que Deus quer, é assim.

Tinha na Bela e aqui muitos campos, que era uma coisa que gostava muito. Agora não os vejo.

Eu estou a pensar uma coisa, que tenho sonhado muito com eles. Ó Jorge, levas pressa? Quero-te perguntar, tens comido nuns campos lá em cima? Tu e a São... Não? Devem ser sonhos.

Quando fui para a tropa, levei presunto, cozido e lampreia seca fumada. Cozia-se a lampreia com presunto, passava-se em açúcar e enrolava-se. Depois ficámos lá todos a comer.

Fiz a tropa no Porto. Pesava 120 quilos quando me pesei na balança. Estive lá 12 dias. Quando nos mandavam encerar o chão, espalhávamos a cera, pegávamos numa passadeira, um deitava-se no fundo e os outros puxavam. Eu era sempre o que ia para o fundo.

Quando me quis ir embora, o meu tio pagou ao Sargento Vasconcelos, que era de Valença. Como não era tempo de guerra... Tinha de se ir a uma Junta. Na Junta estava um coronel, um tenente-coronel e um major e quem mandava naquilo era o major. Mas o sargento tinha-os na mão. Perguntaram-me "de que se queixa?". Eu respondi "da veia da urina". Fui-me embora ter com o meu tio.

Depois disso é que fui tirar a carta a Lisboa para começar a conduzir camiões. O teste foi na Graça. Eles queriam-me passar a perna e puseram-me num lugar difícil para dar a volta, mas eu fiz a manobra só com um braço.

Quando eu estava em Lisboa, uma vez estava com fome lá pelo Areeiro. Entrei num café, viro-me para o homem que lá estava e digo "dê-me um trigo com presunto, se faz favor". O homem virou-se para mim e disse "você deve ser lá de cima, de Coura, Monção, por aí". E eu "sou de Monção, como soube?". "Porque aqui não se diz 'trigo'. Se falar assim ainda se riem de si". E eu "ai os filhos da puta".

Hoje já vai ser um dia de sonhos.

Objetos do Brasil: o chuveiro elétrico


Ao contrário de alguns visitantes desprevenidos das terras de Vera Cruz, nunca tive nenhum problema com o chuveiro elétrico, que considero até muito eficiente. Na generalidade dos países que conheci (ou seja, em todos menos o Brasil), juntar as ideias de água e eletricidade não era coisa muito recomendável. Isto, reconheço agora, é medíocre e limitador. Afinal, sempre permitiria adiantar algumas tarefas matinais. Enviar um e-mail ao mesmo tempo que nos ensaboamos. Secar o cabelo da nuca enquanto ainda lavamos o da frente. Pôr as torradas a tostar enquanto nos esfoliamos.

No Brasil, ainda não se leva a torradeira para o banho. Porém, um dia alguém ligou o foda-se e disse "porque não?". São as frases que iniciam toda as grandes revoluções da vida moderna. Assim nasceu a democracia grega. Assim nasceu a revolução egípcia. E assim nasceu o chuveiro elétrico.

O chuveiro elétrico, está bom de ver, é um chuveiro que aquece a água através de uma resistência elétrica, não precisando de gás. Foi uma solução inteligente para aquecer a água a multidões e multidões que não podiam pagar a instalação de outros sistemas mais dispendiosos, incluindo esquentadores. Ou seja, uma espécie de Bolsa Família só para o momento do banho. As implicações políticas são óbvias: o chuveiro elétrico permitiu que o pobre se começasse a sentir classe média logo no quentinho do duche. Hoje, o chuveiro elétrico é transversal à sociedade brasileira. O seu uso é como comer rissóis: por muito rico e chique que se seja, de vez em quando passa-se por ele.

Lembro-me da primeira vez que usei um chuveiro elétrico como se fosse hoje. Imaginem a situação. Jorge Vaz Nande pendura a toalha na porta e, nu, fica a olhar para aquele estranho e volumoso objecto branco sobre a sua cabeça, preso à parede por um tubo e dois parafusos, do qual sai um grosso cabo elétrico que parece rir-se para ele como quem diz "ahah vou-te foder". Ele estica a mão com medo, já sentindo o frio da manhã no corpo, mas com receio de que a água demore tanto a aquecer na geringonça e o atinja com tanta crueza que ele não consiga reprimir um grito efeminado. Enche-se de coragem e roda a torneira. A água cai, de início fria... mas, em segundos, bem mais depressa do que com qualquer esquentador fajuto, ela fica quente. Nobremente quente. Regiamente quente. Jorge Vaz Nande põe-se por baixo da torrente e leva com ela na cara, logo experimentando a excitação das suas terminações nervosas. Enquanto ele pensa, rindo, em todas as vezes que um esquentador mau o deixou agarradinho a um fraquejante fiapo de mornura, ele repara que a água está a ficar demasiado quente. Ele olha para a parede, procura a torneira de água fria - mas ela não existe! Isto é um chuveiro elétrico, só tem uma torneira! O que fazer? O que fazer?! Sentindo a cara a ficar queimada, chegando-se já ligeiramente para o lado, Jorge Vaz Nande tem uma ideia- abrir ainda mais a torneira. É a única ação possível, a única que faz sentido - e funciona! A água fica, de repente, no seu ponto certo e Jorge Vaz Nande pode-se lavar, pensando que só falta inventarem chuveiros elétricos para as torneiras da cozinha, para assim ele não precisar de levar a louça suja para o banho.

Já agora, se procurarmos "chuveiro elétrico wikipedia" no Google, este remete-nos para a história dele logo no primeiro link. O segundo link é a definição de "lavagem vaginal". Apesar de o Brasil ser um país onde a higiene pessoal é muito valorizada, ainda não consideramos este um objeto do Brasil. Porém, quem sabe, talvez um dia falaremos sobre o tema.

Vida atribulada

O bom de vir a casa é que podemos encontrar revistas Maria de 1988 que contêm cartas como esta:
VIDA ATRIBULADA
Somos três amigas que vivem juntas e as nossas idades estão compreendidas entre os 15 e os 18 anos. Temos três problemas que gostaríamos que nos ajudassem a resolver. Arriscámos a fazer fotografias nuas e o fotógrafo tentou violar-nos. Estamos cheias de medo e sem saber o que fazer. Há rapazes que têm a mania que nós somos a Ninon e a Rosaly do 'Roque Santeiro', e então tentam agredir-nos. Finalmente, o último problema diz respeito à droga. Uma vez ofereceram-nos e como nós recusámos assaltaram o nosso apartamento.
Carla, M.S. - Porto

Nocturno

em são paulo olho à noite para o cruzamento da pacaembu com o minhocão enquanto ouço a paranoid android do brad mehldau e lembro-me que

em lisboa há dois anos distraía-me com o pátio quieto da academia militar a ouvir a summertime da jesca hoop e

há sete anos em coimbra olhava o ponto em que a praça da república se encontra com a sá da bandeira enquanto no bar do tagv se ouvia algo como a by this river do brian eno mas

há catorze anos olhava para uma esquina de um caminho de terra em troviscoso com a fonte mais abaixo casas em toda a volta todos se conhecendo

a tocar

eram os radiohead

a paranoid android

Objetos do Brasil: o Nextel

Ah, Brasil, Brasil. Terra de tantos e tão agradáveis sons. Os grasnares de tucanos. O zunido da moriçoca. E os "piris" dos nexteis. Um passeio pela Avenida Paulista chega para comprovar: os dois primeiros podem não ter muita expressão na selva urbana de São Paulo, mas o terceiro domina. "Piri". "Piri". Se estivéssemos em Portugal, até picava na língua.

Eu adivinho porque é que o Nextel nunca chegou à Tugalândia. Imaginem um telemóvel com a função de não pagar chamadas. Não é pagar pouco. Não é pagar mais ou menos dependendo de onde estiver a outra pessoa. É mesmo não pagar chamadas. Nunca. Mesmo que a pessoa que chamamos esteja nos Estados Unidos ou no Japão. Sim, jovens meninas adolescentes, os milagres existem. Mas nenhum operador de telecomunicações português vai querer abrir esta caixa de Pandora. Até porque, em Portugal, a expressão é "boceta de Pandora", o que chamaria as atenções indevidas de muito brasileiro. Por outro lado, como com o Nextel é fácil fazer chamadas para Tóquio, tudo fica certo.

Para além do encanto que os trocadilhos infames sempre trazem consigo, o Nextel tem para um homem o apelo de tornar qualquer um numa espécie de Schwarzenneger em pleno "O Predador". É que a função gratuita não funciona com base na rede normal de telemóvel, mas num sistema de radiotransmissão. De modo muito semelhante - ou melhor, exactamente como um walkie talkie. Daí o "piri" que se ouve quando o nosso interlocutor acaba de falar e que só faz apetecer responder coisas como copy, over, charlie, delta, tango. Como um walkie talkie, ele inclui-nos num grupo, numa quadrilha, numa irmandade. Podemos combinar negócios, planear reuniões, mas também, quem sabe, tomar o poder. Ou, pelo menos, brincar a tomar o poder. Ou seja, o Nextel permite ser profissional e imaturo ao mesmo tempo, adulto e criança. Não é por acaso que a actual presidente é uma ex-combatente: ao que parece, cada brasileiro tem em si um pequeno guerrilheiro, sempre à espera de vir ao de cima. E o Nextel apazigua-o. Roger.

Objetos do Brasil: a comanda


No Brasil, os portugueses são conhecidos como os donos de padarias. É um daqueles preconceitos que acabam por se revelar verdadeiros, como o de que as mulheres falam e pensam demais ou o de que os homens falam pouco e pensam menos ainda. Mas, é preciso que alguém o diga, uma padaria no Brasil não é só um pequeno estabelecimento com estantes que ostentam pães. Na verdade, elas estão mais próximas de um híbrido mutante de café, snack-bar e minimercado. Dependendo do estabelecimento, pode haver um balcão e uma zona com cadeiras para se provarem as iguarias requintadas que são feitas na hora e que podem ir desde meras sanduíches até refeições elaboradas. Ou um balcão com a comida que se paga a peso. Ou uma zona de estantes que exibe desde batatas fritas até vinhos importados. Ou uma prateleira refrigerada com iogurtes, bolinhos e bebidas energéticas. Assim, não é que as padarias só vendam pão - mas essa é a única coisa que todas elas parecem ter em comum. Isso, e o dono português, é claro.

Já que este tipo de espaços permite vários tipos de experiência - podemos tirar um suco da geladeira, mas também podemos pedir um ao empregado; podemos fazer o prato a nosso gosto, mas também podemos pedir uma refeição - e o Brasil é especialista em facilitar a vida ao cliente, foi por aqui inventado um poderoso auxiliar de consumo: a comanda. A comanda é uma ajuda metafísica à experiência de consumo. Cada pessoa tem uma alma, um espírito, uma personalidade. Ora, num ambiente comercial, esta precisa de se traduzir comercialmente. E daí nasce a comanda. A comanda é a personalidade de cada um aplicada à experiência de consumir.

A comanda varia em forma e estilo. Há-as em papel. Há as que são a face visível de um maquiavélico sistema de tecnologia sem fios. Há as que incluem uma listagem do que se consumiu e as que se compõem só de um número. Há-as coloridas, a preto e branco, quadriculadas, redondas, para escrever, para furar. Já me deparei com uma que era apenas um pedaço de papel com um número escrito. E, não, não importa nada que se chegue à caixa, o empregado não tenha apontado nada daquilo que consumimos ou o sistema não funcione e se acabe com a moça da caixa a perguntar quem nos serviu e o quê. Isso de nenhuma forma põe em causa a existência da comanda. A comanda comanda.

Esse é o momento em que nos perguntamos: então, para que serve a comanda? Porque não vão registando o consumo da mesa e no final pagamos a conta ao empregado ou na caixa? Porque a comanda coisifica-nos com ela. No final, somos todos democraticamente só um número, independentemente de sermos brancos, morenos, índios, japoneses, baixos, altos, gordos, magros. Só se formos bolivianos é que não, até porque, se formos bolivianos, passamos o dia a trabalhar numa sweat shop e depois nem dinheiro temos para cigarros, quanto mais para ir à padaria de um sovina de um português que nem o chorinho vai oferecer. Não é?

Augusta, graças a Deus, entre você e a Angélica eu encontrei o Décio Pignatari

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=WvWBvAiGReU&w=500&h=195]
Aconteceu que no Sábado eu estive na festa do Santo Forte e, logo na primeira vez que ia sair para refrescar a cara daquele lugar diabólico sem ar condicionado e com falta de bebidas, começou a tocar a "Angélica, Augusta e Consolação" do Tom Zé e não consegui sair enquanto não acabou. No Domingo, enquanto procurava uma pulseira de couro na Paulista, dei um salto à Cultura e descobri um livro que até parece uma justificação teórica do que fazemos nos Smokers, "o que é comunicação poética", de um senhor chamado Décio Pignatari. Hoje, no trabalho, apeteceu-me ouvir de novo a canção e comecei a ler sobre a "Angélica, Augusta e Consolação", principalmente sobre o álbum onde apareceu, "Todos os Olhos". Este álbum tem uma capa bem famosa, com uma fotografia do que seria um cu com um berlinde enfiado lá dentro, simulando um olho. E, fuçando, fuçando, descobri que a ideia para essa capa foi do próprio Décio Pignatari, que com certeza já estaria a executar as ideias sobre as quais mais tarde escreveria. É que se isso não é comunicação poética não sei o que é.

Canção do Asilo (a partir de Gonçalves Dias)

Minha terra não tem palmeiras
Lá não canta o sabiá
Não tem esfiha nem coxinha
Maniçoba ou vatapá

"É assim" é nosso "então"
O "OK" é "entendi"
A saudade que lá existe
É a mesma que existe aqui

Não encontro prazer lá
E não sei se o há aqui
Minha terra é um sonho em pó
Acordei, logo esqueci

Se esta terra tem primores,
Parabéns, mostrem-mos lá.
Não me falem "ora pois"
Nem me falem do que não há
Não sabemos o que é viver
Não aqui e nunca lá

Não tem Deus que traga a conta
Do consumo de maná
Não tem pai que nos corrija
Do erro que a gente fará
Não sabemos o que é viver
Não aqui e nunca lá

NOTA: Disse este poema no dia 21 de Novembro no espectáculo dos Social Smokers no SESC Pompéia. É a (in)versão possível de um português a viver em São Paulo no século XXI da famosa "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias, um brasileiro que estudava Direito em Coimbra no século XIX.

Objetos do Brasil: a raquete elétrica


Fazer uma viagem é como levar um pobre num rodízio: não abdica de nada. Uma das coisas de que não abdiquei foi as vacinas. Não fui ao costumeiro centro de saúde, mas ao próprio Instituto de Higiene e Medicina Tropical, talvez porque tenho um fraquinho por qualquer instituição médica que já teve o seu boletim citado na série "House".

A Medicina Tropical é engraçada, porque é a única que não existiria sem medo. Não medo à doença ou à morte, mas ao próprio ser humano, desde que seja exótico. Sim, porque a Medicina Tropical olha para os trópicos com um medo que se pela. A comida pode ser perigosa, os insetos podem ser pestilentos, a doença pode sempre chegar - e, não tenha dúvidas, mais cedo ou mais tarde ela vai chegar. Por isso tudo, é sempre razoável tomar muitas mais vacinas do que aquelas de que precisaríamos, como que justificando na receita que nos passam a receita que lhes damos. Dentro desta paranóia toda, um pequeno actor surge: o mosquito, transmissor de tantas e tão boas doenças como o dengue ou a malária. Para quem não sabe, os mosquitos que pegam o dengue voam de dia e os que pegam a malária de noite. Ou seja, se se for um sujeito com muito azar, pode-se pegar o dengue e a malária no mesmo dia. Também pode ser que o mosquito do dengue goste tanto do que chupou que diga ao da malária onde é que a pessoa se encontra para este ir lá chupar também. Neste caso, o sujeito é na mesma azarado, mas, pelo menos, tem o conforto de ser muito apetitoso.

Para resolver este problema, o brasileiro adoptou um objecto muito peculiar, que junta o útil ao agradável e transforma em jogo a actividade de se manter saudável e livre de chupões de muriçocas: a raquete elétrica. A raquete elétrica torna portáteis aquelas armadilhas, presentes em todo o restaurante com pelo menos um prato na ementa a custar menos de 5€, que chamam os insectos com a sua cor arroxeada e os electrocutam mal eles pousam nelas. Mesmo que sejam borboletas. Doces e inocentes borboletas. Por isso é que, apesar de ela também ser vendida em Portugal, foi no Brasil que ela arrancou: porque, sendo o brasileiro sensível e atento às belezas do mundo, ele acha que a matança de animais voadores não deve ser indiscriminada, mas antes ficar ao critério do próprio sujeito matador. Assim, muniu este de uma raquete com a qual, qual Federer dos infernos, pode aplicar uma descarga eléctrica que fulmina o desgraçado e potencialmente letal bicho. É o mais próximo que uma pessoa normal pode chegar do serial-killer sem arriscar prisão: a raquete elétrica garante a repetição da alegria da matança. Por outras palavras, uma versão adulta do famoso jogo infantil "queimar moscas".

O modelo na imagem é o de uma raquete corrente. Reparem no centro da mesma: tem um raio, igual aos raios que Zeus atirava aos mortais. Ou seja, a raquete aproxima quem a usa das divindades gregas, o que faz todo o sentido, pois, como toda a gente sabe, Deus é brasileiro. E, tal como Deus, a raquete elétrica é omnipresente - pelo menos no Brasil.

Objetos do Brasil: a catraca


Uma das coisas mais fáceis de acontecer no Brasil é multidões. Pois se há coisa que o Brasil tem são pessoas, 190 milhões delas, sempre prontas a juntar-se e fazer coisas disparatadas, como eleger palhaços para altos cargos de governação. Mas deixemos de falar da Dilma e do Serra e falemos do que realmente importa aqui. Mesmo para o observador mais desprevenido, não deixa de surpreender o magnífico sentido de ordem que os brasileiros têm, principalmente os paulistas, que se colocam em fila seja lá para o que for. Mesmo que estejam a apanhar um avião em Frankfurt. E não seja preciso fazer fila. Mas eles fazem, e isso só é de louvar. A menos, é claro, que se seja de Goiânia, como um amigo meu, que tem vontade de dar um tiro a alguém sempre que vai no supermercado. Isso para não falar que, sempre que percebem que sou português, uma das primeiras coisas que qualquer pessoa me pergunta é se em PT usamos mesmo a palavra "bicha" para dizer "fila". Nesse momento, procuro o meu amigo de Goiânia e começo a carregar a carabina.

Para que essas filas não saiam fora do controlo, há um objeto conhecido muito singelamente por "catraca". A função da catraca é tornar lenta uma fila que sem catraca seria rápida. Encontram-se nos ônibus, no metrô e em qualquer outro tipo de transportes, com a vantagem que, se se apanhar o ônibus num terminal, é preciso passar por uma catraca para entrar no terminal e outra dentro do ônibus. Sim, cada ônibus tem uma catraca, para além de um cobrador, que tem como função garantir que o número de voltas à catraca coincide com o dinheiro em caixa no final do dia. Ou seja, nos ônibus não só se paga como ainda é preciso passar por uma máquina que impede que se chegue àquilo por que se paga. Claro que muita gente tem o Cartão Único, o que significa que não precisam de dinheiro, passam o cartão numa máquina e giram elas próprias a catraca. Nesses casos, o cobrador não tem nada para fazer e, por isso, pode adormecer tranquilamente no seu banquinho no embalo do ônibus. Cobrador de ônibus é, aliás, a segunda profissão que conheço onde é aceitável que se durma durante a jornada de trabalho, mas os deputados da Assembleia da República Portuguesa sempre têm a desculpa de não terem uma catraca por que olhar.

Já passei por catracas para ir a concertos, casas nocturnas, para ver jogos de futebol na praia, para ir ao teatro. No meio disto tudo, porém, tem uma coisa boa: ao contrário do Metro lisboeta, em que é preciso passar o passe novamente no leitor da catraca para se poder sair, o Metrô paulista só requer que se empurre a catraca do lado de dentro. Isso realmente ajuda a que a fila, que sem catraca seria rápida, não seja tão lenta como poderia ser - a menos, é claro, que se seja homem, se vá com pressa e se esbarre com as jóias da família na porra da catraca. Nesse caso, a fila fica lenta de novo.

A tartaruga tuga

Uma tartaruga chamada Calantha, que não via o mar há 30 anos, saiu do Aquário Vasco da Gama e nadou durante 332 dias até chegar às Caraíbas. Os biólogos dizem que é "uma das maiores migrações" de tartarugas de que têm conhecimento.

É preciso tecer algumas considerações sobre isto. Primeiro, se é só uma tartaruga a nadar, não é uma migração, é uma viagem. Em 2003 eu viajei pela Europa toda com a mochila às costas e fazia interrail; porque é que uma tartaruga de carapaça é logo migrante? Tem visto de trabalho, é? Vai aguentar uns anos para mandar vir a família também? Por favor.

Segundo, eu posso estar longe, mas tenho acompanhado as notícias, e não me espanta nada que qualquer ser que seja solto em Portugal por estes dias se queira pôr a milhas o mais depressa possível. Aliás, quem é que o Aquário Vasco da Gama quer enganar? Mantiveram a tartaruga com eles durante 30 anos e agora deixam-na ir embora? Podem chamar-lhe "migração" à vontade - eu chamo-lhe despedimento sem justa causa. A tartaruga não precisa de atenção, ela precisa é de um subsídio.

Terceiro, analisemos bem as ações da Calantha. Chegou ao Vasco da Gama nos anos 70, tem à volta de 40 anos, esteve cinco anos em recuperação para reaprender a "capturar o seu alimento" e que "os humanos não são amigos". 40 anos, acha que os humanos não são amigos e à primeira oportunidade raspa-se para as Caraíbas? Não nos enganemos, meus amigos - esta tartaruga é uma divorciada. Arranjem-lhe um mulatinho e uma margarita e não se preocupem mais com ela.

Pau e brasil

Não deixa de ser curioso que a primeira vez que ouvi o hino brasileiro tenha sido no início da parada gay - momento, aliás, devidamente documentado para a posteridade. Em Portugal, o brasileiro é visto como animado, divertido e irremediavelmente liberal e folgado. No Brasil compreende-se, no entanto, que, se em Portugal a lei anda à frente da sociedade, no Brasil a sociedade está à frente da lei. Não é possível abortar, não é possível andar na rua com drogas leves ou pesadas (ainda que em doses para consumo individual), os homossexuais não se podem casar. Ao mesmo tempo, basta um passeio normal pela Avenida Paulista ou uma saída nocturna sem grandes espalhafato para encontrar casais homossexuais beijando-se sem vergonha, as prostitutas da Consolação - curiosa coincidência toponímica - esperam os clientes sem se esconderem na sombra ou no anonimato da estrada, a cocaína circula aos montes e a maconha aos fardos. Uma ressalva no afirmado anteriormente: a sociedade está à frente da lei no comportamento, porque a mentalidade, estranha, masoquista, mantém-se apertada, mesmo no seio de grupos que se imaginava serem mais progressistas. Apesar de tudo, o brasileiro é bem comportado e de um estranho conservadorismo relaxado: não gosta de ruptura e leva a mal que se aponte falhas. A ditadura militar será explicação para parte deste comportamento, o comportamento será parte da explicação da ditadura militar. Enfim, "o brasileiro", "basta um passeio" e "a sociedade" são sempre aquelas generalizações bacocas e com quota-parte de perigo. Ainda assim, confesso que senti algum orgulho quando, assistindo à parada gay, me lembrei que o meu país acabara de promulgar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nesse momento, o hino do Brasil cantado de modo bem divertido por um travesti começou a enfraquecer nos meus ouvidos. E, contente, ouvi, claro e distinto, como se estivesse ao meu lado e não a um oceano de distância, o som ainda mais divertido de Cavaco Silva a engolir um enorme, indiscreto e liberalíssimo sapo.

Tenho uma casa para olhar

Ao que parece, Vinicius de Moraes fez o seu apontamento na guerra Sampa-Rio quando disse que o samba vinha a São Paulo para morrer. Até certo ponto, dá para entender. O brasileiro tão musical que é tão conhecido em Portugal é, na verdade, o carioca. Com as vogais ainda mais abertas do que o costume e o "jeitinho" a borbulhar, o Rio é terra de samba e lugar onde personagens como Wilson Simonal ou Leon Eliachar são naturais. Voltaremos a eles noutro dia. São Paulo, por outro lado, cidade de ética de trabalho férrea, sem praia, sem calor, terra de garoa, de lazer e dor, não tem muito a ver com garotas de Ipanema. Dizia uma das últimas Piauí que a afirmação de Vinicius era contradita por um homem, um italiano de nome original João Rubinato e que acabaria por se tornar conhecido como ator, personalidade propagandística (da Antártica) e sambista melancólico sob o nome de Adoniran Barbosa. Com uma voz rouca, das profundezas, o homem, que às vezes parece deixar o coro cantar os agudos para depois lhe vir contramarcar o desvairo, é, mais do que um letrista, um verdadeiro cronista. "Trem das Onze" é uma canção certeira num lugar onde a especulação imobiliária leva a que vários filhos continuem a viver com os pais até uma idade adulta, "Tiro ao Álvaro" é uma canção de amor em sotaque dos italianos do Brás, "Despejo na Favela" é uma melopeia de pobres. A melancolia profunda de Adoniran marca bem a diferença entre as duas cidades. Nela estão os paulistas a acusarem os cariocas de preguiçosos e os cariocas a acusarem os paulistas de obsessão com trabalho e dinheiro, os meus amigos atores a queixarem-se de que no Rio se fazem intervalos de 30 minutos no teatro e no fim é preciso ir buscar o público ao bar da esquina, os meus amigos cariocas a rirem-se do modo como em SP se continua a trabalhar depois dos jogos da Copa mesmo que o jogo seja de manhã. O samba alegre encontra a cidade triste de Adoniran e fica mais alegre, a cidade mais triste fica.

O “POLITIQUÊS” E O PODER DA AUTO-CLASSIFICAÇÃO, ou As Variações Pachecoldberg

(a partir de PP)

Olhando para os encontros dos políticos que venceram os cidadãos, encontramos um dos mundos menos conhecidos e escrutinados da vida pública portuguesa. Porém, existe uma relação directa entre a ausência de escrutínio do seu trabalho e a capacidade que têm de influenciar os media a favor das suas causas, quer porque o seu lugar é central em certas "indústrias da comunicação", a que os media estão associados, quer pelo preconceito da intangibilidade da "administração", da "governação", da "política".

Este mundo funciona em circuito fechado, e desconhece-se que critérios presidem ao seu funcionamento e como são verificados os resultados dessa aplicação do dinheiro dos contribuintes. Sabe-se que não é pelo interesse dos cidadãos, visto que estes ramos de "administração" e "política" abominam tal critério vulgar, de serem avaliados, entre outras coisas, pelo interesse que suscita o seu trabalho pelo comum dos portugueses.

É verdade que a verba que gastam do erário público é elevada e é dinheiro dos contribuintes que têm direito de saber onde e com quem é gasta. Os grupos de "políticos", principalmente na área autárquica e da administração autónoma, empregam um número significativo de pessoas, cuja trabalho individual é desconhecido e não avaliado. São "políticos" e como se auto-classificam como tal, quase tudo lhes é permitido, e respondem com enorme arrogância a qualquer avaliação.

Organizados em vários "partidos", PCP, PS, PSD, a que se juntaram o CDS e o Bloco de Esquerda, representam uma miríade de grupos cuja existência pública é quase ignorada se exceptuarmos alguns comentadores, personalidades televisivas, arguidos judiciais e o Alberto João Jardim. O Bloco "reúne 3 partidos políticos anteriores" e o CDS "agrega cerca de alguns milhares de velhinhos, betinhos e pessoas suburbanas que já se assustaram com uma sombra na rua, maioritariamente de Cascais e das áreas das feiras". Só o PSD inclui a comunidade de filiados mais sequiosa por uma mudança de poder no país, um ou dois Governos-sombra, o Pacheco Pereira e o Pedro Santana Lopes, a Zita Seabra e a Maria José Nogueira Pinto.

Tanto"político", tanto "governante", que nós temos por metro quadrado! O modo como se apresentam tem toda a prosápia burocrática e institucional. O PS quer com ousadia "defender inequivocamente a democracia e procurar no socialismo democrático a solução dos problemas nacionais e a resposta às exigências sociopolíticas do mundo contemporâneo" para o que defende "uma economia de bem-estar, aberta à pluralidade das iniciativas e das formas económicas privadas, públicas e sociais, e regulada pelo mercado e por instituições públicas adequadas"O PCP explica-nos que na sua festa na Atalaia"pavilhões dos países socialistas, de jornais de Partidos irmãos, pavilhões dos novos países africanos com exposições sobre as conquistas dos povos que avançam decididamente na construção do socialismo, sobre a luta das forças progressistas de todo o mundo - e também bancas onde poderão ser compradas recordações e produtos de todo o mundo!". Uma coisa chamada JSD explica-nos que a dita é "uma estrutura autónoma do PSD, apresentando um posicionamento programático claramente mais à esquerda, uma voz crítica e sem tabus, mas que, com o tempo, passou a alinhar mais com a base programática do partido. Mais ao centro e abandonando a ‘irreverência esquerdista’ que a caracterizou inicialmente". E por aí adiante.

Este bla-bla do "politiquês" é como o "culturalês" e o "eduquês", mas ninguém lhe toca. Só faltava tratar os "políticos" como gente vulgar!

Insuficiências

Conheci um dono de padaria português. Na verdade, conheci vários. Confirmam-se os rumores, eles são muitos e estão por todo o lado, suprindo as necessidades do café da manhã de toda uma nação - sim, porque também conheci um que vendia o seu pão francês lá mesmo no amazónico Pará. Diz-se "pão francês", curiosamente, e não bijou, trigo, de Mafra ou de Avintes. Por Sampa, o máximo que encontrei foi um pão bem gostoso que parecia broa, assim consistente, cheiinho, mas chamavam-lhe pão italiano. Adiante.

No Rio Grande do Sul, o pão francês é o "cacetinho", ou seja, um pequeno cacete, o que em São Paulo é o mesmo que uma pilha eléctrica é em Espanha. Isso mesmo, uma pila. Ou, mais precisamente, uma pilinha. Portanto, o que não falta por aí são hordas de gaúchos a pedirem pilas em padarias. O Brasil, definitivamente, é um país divertido.

É muito normal que os portugueses das padarias tenham bigode, para além de imagens católicas (não do candomblé, não espíritas) hasteadas nos estabelecimentos. Curiosamente, o dono de padaria que conheci ontem não tinha bigode, não tinha imagens nas paredes e também não tinha um dedo, o médio direito, provavelmente porque lho exigiram na Polícia Federal para estender o visto de residência.

Sem brincadeira, a insuficiência deste senhor, jovem, bom gestor, passava bem despercebida. Ele era de Fafe, e, curiosamente, tive na Faculdade um colega de Fafe que era conhecido também por uma insuficiência que passava despercebida. Digamos só que um habitante do Rio Grande do Sul chamar-lhe-ia um pão. Seja como for, lembrei-me do homem hidrocéfalo que vi na Feira Nordestina do fim de semana que passei no Rio. Imaginem o ambiente: Alceu Valença tocando, um público apertando-se em amálgama de cores, protuberâncias e pernas, o forró rolando para uma audiência que passou o dia em praias munidas de estruturas metálicas para fazer exercícios abdominais e inchar os músculos dos braços - e um homem hidrocéfalo, com a camisa suja, passeia-se pelo meio, fumando e com cara de poucos amigos. Realmente, amigos não devia ser uma coisa fácil para ele fazer.

O Brasil é um país de gente bonita, gente feia, gente de todas as lindezas. Alguns são donos de padaria. E alguns são portugueses. E pronto.