União Latina?

Acho grandiosa esta visão de Lula da América Latina como um bloco autônomo de poder, para a qual o Brasil poderá estar como a Alemanha está para a UE. O contraste com a subserviência de Bolsonaro aos EUA não pode ser maior. 
É por isso também que a cobrança ao PT sobre a Venezuela sempre me pareceu sensacionalista. Não hostilizar a Venezuela hoje pode significar o Brasil liderando uma das maiores uniões econômicas amanhã — e, se a entrada nessa união implicar o cumprimento de critérios como os de Copenhaga, esta pode ser a saída para a redemocratização do país fora do quadro estadunidense e para a América do Sul acabar definitivamente com a condição de quintal do hemisfério norte.

25 de abris

25 de abris, meus países, ou fechais
os meus democratas, que elegem fascistas
disparam salvas coloridas, matam seus pretos
cravo no ar, pistola no check in
discursos e salões nobres, cifrões secretos, indultos
carnais vais, em fome chegais
livres como um elon, não
faias queimadas pagando a inflação
e vendo a rua do arsenal no jacarezinho
e as migalhas de flores na avenida noturna
e o dia, final sujo, em pedaços
e os gritos de socorro 
às margens ácidas

A guerra simples

Só esta noite, a Rússia comunicou que um dos negociadores de paz ucranianos foi executado por traição (o governo de Kiev nega) e que a Ucrânia planeia arrebentar um reator nuclear em Kharkov para depois culpar os russos. Verdade, jogo duplo, jogo triplo?

Vibramos com a bravura dos soldados ucranianos assassinados após dizerem "vá-se foder" ao navio russo que exigia a sua rendição. Dias depois, vimos as imagens deles a chegarem, rendidos, a Sebastopol. Putin diz que não faz uma guerra e, ao mesmo tempo, destrói cidades inteiras, áreas residenciais, hospitais pediátricos.

O que é verdade, mentira, simples confusão ou desinformação deliberada?

Um clichê que corre por aí de novo: na guerra, a primeira vítima é a verdade. 

Este combate é na Ucrânia, nas mesas da diplomacia e nas redes sociais. Há dias, gente ucraniana que procurava o amor percebeu que a invasão vinha aí quando começou a receber likes de soldados russos no Tinder. Hoje, o TikTok entra na onda de sanções e limitou o acesso da Rússia ao seu app. Zelensky, um ator, compreende o poder das imagens e usa-o a seu favor. Putin, outro ator, envia mensagens gravadas para o mundo como se fossem em direto e esmaga os seus próprios jornalistas.

Outro clichê que se ouve por aí: quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado. 

O batalhão Azov, que a Rússia diz estar por trás do suposto plano de explodir um reator nuclear, é nacionalista, reconhecidamente neonazi. Foi integrado na Guarda Nacional ucraniana em 2014 e combate os separatistas em Donbass desde então. Ouvimos que guardas fronteiriços discriminam os emigrantes negros que tentam fugir. Enquanto isso, as Patrulhas do Povo, um grupo de extrema-direita anti-imigrantes, manifesta-se em Belgrado a favor de Putin, que há anos prende e assassina adversários, músicos e jornalistas.

Quem controla o presente?

As culpas parecem baratas quando se começa a escavar a História. Não é por acaso que o Estado Islâmico era obcecado com o acordo Sykes–Picot de 1916. Podemos apontar a responsabilidade pessoal imediata de quem deu a ordem que começou esta guerra. Talvez devamos. Mas também devemos saber que o primeiro dedo apontado vai levantar outro, e outro, e outro, e assim os dedos se levantarão até se perderem na escuridão do tempo e já não sobrar ninguém para quem apontar. 

No futuro, as armas que a OTAN deu para a Ucrânia se defender ficarão com o batalhão Azov? As sanções vão levar à ascensão da oposição democrática na Rússia ou o regime vai fechar-se ainda mais? A guerra vai levar a uma nova ascensão dos nacionalismos em toda a Europa, destruindo lentamente a União Europeia, ou, pelo contrário, vai levar a que ela se fortaleça?

Quem controlará o passado? Quem controlará o futuro?

O certo é que vemos os mortos e os refugiados e pensamos em nós, porque esta gente é parecida conosco. Hoje é segunda-feira: vamos trabalhar, cuidar da nossa vida. Pensamos se, daqui a uma curta semana, também teremos que encher uma mochila e caminhar até à fronteira.

Leio por aí muitas ironias com quem diz "é complexo". As ironias tanto erram quanto acertam. Não é que a situação seja simples por causa das causas históricas ou pelos enredos da política internacional. É simples porque, como diz o provérbio português, quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão. 

E, claro, nós somos o mexilhão.

Quatro séries

Depois de vê-la ganhar o Oscar com The Favourite e dos belos papéis em The Father e The Lost Daughter, é fácil esquecer que Olivia Colman foi e é uma grande atriz de comédia e uma grande atriz de televisão. Tenho visto várias séries com ela e não me canso de admirar o domínio que esta mulher tem do pormenor, do gesto ou esgar sutil que constrói e revela completamente uma personagem. 
Então, se ainda não viram Peep Show, façam-no. Se então descobrirem que a comédia inglesa do início dos anos 2000 vos agrada, partam para Look Around You, uma série que parodia os programas educacionais da BBC dos anos 80. A primeira temporada, de 2002, é desconcertante e viciante, a segunda (2005) entra a fundo pelo "nonsense" e tem um elenco surpreendente, com pessoas como Edgar Wright e Simon Pegg a fazerem "cameos".

Quem também apareceu brevemente em Look Around You foi Ed Sinclair, o marido de Colman e autor de Landscapers (2021), uma minissérie brilhante que a todo momento escancara os mecanismos ficcionais que a sustentam, ocupando um território fascinante de experimentação e de liberdade de linguagem. Aqui Colman já foi produtora executiva, e eu sou capaz de apostar que foi ela quem chamou o jovem diretor Will Sharpe, que ano passado ainda arranjou tempo para fazer The Electrical Life of Louis Wain e mostrou o seu domínio da representação da doença mental e da ternura familiar com arrojo visual. 

Em 2015, Sharpe já tinha dirigido Colman em Flowers, série criada por ele e cuja primeira temporada acabei de acabar: uma viagem impressionante que começa cheia de humor ácido, parecendo satirizar as suas personagens, e termina como uma elegia enternecedora do amor entre pais e filhos. 

Se ainda estiverem a ler e conseguirem encaixar uma recomendação que não tem nada a ver com a Olivia Colman, vejam Reservation Dogs (2021), uma série criada pelo Taika Waititi sobre jovens que vivem numa reserva indígena nos EUA. Além de ser uma lição de diversidade e representação — os atores, diretores e autores são quase todos indígenas —, é uma história incrível sobre a adolescência enquanto idade de grandiosos planos e frustrações.

A minha lista dos melhores de 2021

Entre todas as produções de 2021 que vi, estas são aquelas de que mais gostei. Não distingo entre o que é televisão e o que é filme, porque às vezes nem eu mesmo sei mais o que elas são. A ordem é mais indicativa do que rigorosa.

12. Them (Amazon)
O "americana" como território de demónios e violência, o racismo estrutural como condenação e claustrofobia que limita os corpos e fere os espíritos. Perguntar se fetichiza a violência é muito menos importante do que perguntar porque o faz.

11. It’s a Sin (Channel 4/HBO Max)
Russell T Davies, um dos grandes autores para televisão dos dias de hoje, conta-nos como foram os primeiros dias da AIDS em Londres.

Uma visita à mitologia americana do faroeste (e ao seu duplo, o western) que a desmonta através do poder do silêncio e da solidão.

9. Time (BBC)
Triste, mas esperançosa, trágica, mas sem lamúrias. Dois gigantescos atores britânicos numa das melhores histórias de prisão dos últimos tempos.

Esta série sempre foi a melhor a representar o embaraço e a introspeção adolescente, mas este episódio especial (animado, por causa da pandemia) superou tudo. Erskine e Konkle são rainhas.

Nunca me acontecera romper em lágrimas enquanto via um concerto — até ver o dueto de Mahalia Jackson com Mavis Staples neste belíssimo documentário. 

Um belo ano para o diretor Edgar Wright. 

O registo de um espetáculo fascinante, que mistura "storytelling", magia e mentalismo com um tom confessional e o objetivo de revelar alguma verdade profunda sobre o autor e também sobre todos os espectadores. 

Uma comédia ferozmente ácida sobre esta modernidade meio estúpida que a gente inventou. É romeno, mas poderia estar a falar sobre o Brasil, ou Portugal, ou (preencher com o lugar à sua escolha).

A melhor série do ano passado que ninguém viu é um ensaio visual devastador sobre civilização, colonização e aniquilação. 

Ducournau entra por territórios em que nem Cronenberg se atreveu a aventurar-se. Não ver se tiver o estômago fraco.

É o acontecimento audiovisual de 2021, e ponto final. 

Também: Katla (Netflix), Pretend It's a City (Netflix). Mare of Easttown (HBO Max). Bo Burnham: Inside (Netflix). The French Dispatch. Annette.