O que também tenho visto


SOUL (2020). O último da Pixar tem tanto de divertido quanto de comovente e ensina duas lições importantes: os adultos devem aproveitar mais a vida e as crianças devem aprender a gostar de jazz. 

DRUK ("Another Round", 2020). O vencedor dos European Film Awards é marcado pela tragédia pessoal do diretor Vinterberg: a sua filha Ida, que seria atriz no filme, morreu no início das gravações. Talvez por isso, é um filme sobre pessoas que se perdem das outras e também de si mesmas, desde as personagens que seguimos até toda a Dinamarca. É um "coming of age" da meia idade que nalguns momentos nos lembra "Idioterne" de von Trier e noutros "I Vitelloni" de Fellini e que nunca, nem mesmo no seu final aparentemente iluminado, larga inequivocamente a dor que o motivou. É como se o filme nos dissesse que, na vida, segue-se em frente, sim, mas carregado de cicatrizes.

LONG STRANGE TRIP (2017). Na Amazon Prime. De Grateful Dead só conheço a fama, as histórias e a "Dark Star", mas se há uma coisa certa nesta vida é que os documentários sobre músicos produzidos pelo Scorsese entretêm. 

SPOORLOOS (1988). Aparece muito em listas de terror, mas isso é enganoso. "Spoorlos" é, na verdade, um ótimo suspense, apesar das marcas do tempo, como aqueles sintetizadores chatos que de vez em quando se fazem ouvir na trilha. No final, lembra Haneke: o destino das personagens é consequência tanto das suas ações quanto da vontade insaciável do espectador "voyeur" e cruel, que quer saber mais e mais independentemente do que acontecer. 

MONOS (2019). Um filme colombiano sobre um grupo paramilitar de adolescentes que é uma mistura de "Lord of the Flies" com "Apocalypse Now" e que deve ser visto considerando a história do país com as FARC. Fantasioso e com locações incríveis, é um filme poderoso, que nos surpreende constantemente e que parece dizer que a violência é bem menos fluida do que o género.

O que vi no Natal

O Natal longe da família teve momentos de melancolia, por isso, comecei-o revendo filmes. "The Money Pit" (1986) continua a ser uma ótima comédia, que nos faz rir com o "slapstick" e ainda pode ser usada por professores para explicar o que é uma metáfora (a casa = o relacionamento).  "Die Hard" (1988) continua a ser o filme que tirou os músculos do herói de ação e para o bem e para o mal, mostrou que pessoas normais também podem eliminar terroristas. 

Depois entrei numa sequência Bill Murray. Nunca vira "A Very Murray Christmas" (2015), na Netflix, um filminho muito querido. Passei para "The Bill Murray Stories" (2018), documentário sobre as aparições do ator em locais e situações inesperadas (festas privadas, bares, e por aí adiante) que só mostra que ele é um sujeito que parece saber viver bem a vida. Terminei com "Scrooged" (1988), adaptação de "A Christmas Carol" que melhora com os anos passados, mesmo que eu não esteja muito certo se são os anos do filme ou os meus.

"Scrooged" levou-me a uma vibração mais classicamente natalina, então fui atrás de filmes com o Pai Natal. "Santa's Slay" (2005) é uma comédia "trash" divertidíssima com um Pai Natal assassino que é filho de Satanás e uma virgem chamada Erica. Já o finlandês "Rare Exports" (2010) não é exatamente uma comédia e parece sofrer com a falta de dinheiro para efeitos visuais mais impressionantes, mas é atravessado do início ao fim por um humor muito ácido que o sustenta bem.

O período de festas terminou com "The Shawshank Redemption" (1994). A minha mulher nunca o tinha visto, por isso, tive um pretexto para revê-lo pela enésima vez. Para quem não viu, poderíamos dizer que é um filme sobre não perder a esperança de que tudo acabe numa praia paradisíaca. Adequadíssimo aos nossos tempos, portanto.

HOW TO WITH JOHN WILSON (2020)

Uma série intrigante e inusitada. Foi produzida por Nathan Fielder, então, já se esperaria a mistura entre documentário e comédia, mas aqui vai-se mais longe. É uma espécie de videoensaio com cenas do cotidiano que fica entre o riso e a melancolia, entre a inconsequência e a genialidade, entre o hipster e o atemporal. Tem momentos que nos fazem rir descontroladamente, outros que nos deixam em absoluto estado de constrangimento e outros que nos comovem. São seis episódios bem curtinhos e recomendo vê-los em sequência: o final é inesperado e muito, muito bonito.

THE HOWLING e AN AMERICAN WEREWOLF IN LONDON (1981)

Não sei se foi coisa da lua, mas os grandes Joe Dante e John Landis realizaram estes dois filmes de lobisomem no mesmo ano. Ambos têm muitas homenagens cinéfilas e usam o género criticamente ("The Howling" está ao nível de "Network" na sua sátira da televisão e o protagonista de "An American Werewolf" é um americano imbecil que recusa aceitar a responsabilidade pelo estrago que faz no estrangeiro) e mostram um avanço nos efeitos de transformação que Landis levaria a um célebre ápice no "morphing" do vídeo de "Black or White". São filmes de um tempo em que os efeitos ainda pareciam de carne e osso, e destaco a divertida cena do acidente em Piccadilly Circus de "An American Werewolf", que sempre me pareceu um prelúdio para a monumental destruição que Landis encenaria durante a sequência de perseguição em "The Blues Brothers".

SCHITT'S CREEK (2015-)

Estive a gravar em estúdio durante as últimas semanas e o trabalho pesado puxa-me a vontade de ver algo leve, descomplicado e sem compromisso. Decidi experimentar a grande vencedora dos últimos Golden Globes de Comédia, e acertei em cheio. Vê-se com um sorriso, tem um elenco ótimo (Catherine O’Hara e Eugene Levy são enormes, enormes) e principalmente as primeiras duas temporadas são uma mistura encantadora de graça com uma elegia à vida simples.

GAVIN & STACEY (2007-)

James Corden tornou-se famoso por ter sido co-autor (com Ruth Jones) desta série, uma das sitcoms mais vistas de sempre na Grã-Bretanha e que passou em Portugal na RTP2, no lendário espaço "Britcom". Quem hoje vê o ator no papel de apresentador de talk-show que, de vez em quando, convida estrelas para cantar num carro percebe que ele tem uma leve tendência para o histrionismo. Por isso, foi com alguma surpresa que percebi como "Gavin & Stacey" é uma série profundamente humana e sensível. Arrisco dizer que o é por não ser moralista e por fazer justiça às suas personagens: todas têm falhas de caráter, mas nenhuma é tonta. A comédia está toda nas situações cotidianas que aparecem (problemas de relacionamentos, filhos, gravidezes inesperadas, gravidezes impossíveis, etc.) e na forma como estas pessoas lidam com elas. É uma série sensível que não é sentimentalista, coisa rara, ainda mais em comédia.

THE INVISIBLE MAN (2020)

Representou uma mudança de direção no universo cinemático dos monstros da Universal (menos efeitos especiais, mais história e personagem) e é uma absoluta vitória. Revisita a história do Homem Invisível fortalecendo a perspectiva da personagem feminina, revelando aquela como um conto sobre relacionamento abusivo e perseguição, em sintonia com os tempos e conseguindo grandes momentos de suspense.

ENGLAND IS MINE (2017)

Esta biografia ficcional e não-autorizada de Morrissey sofre com os defeitos do próprio: é muito difícil empatizar com uma personagem tão chata e com tamanhas ilusões de grandeza.. 

DARK WATERS (2019)

Na Amazon Prime. Acho que nunca vira um filme do Todd Haynes tão abertamente de denúncia. Fiquei boquiaberto por descobrir, não só como o uso e fabrico do Teflon são nocivos para a saúde, mas também a monumentalidade da ação jurídica que foi necessária para que as suas vítimas fossem compensadas. Depois desta, as minhas frigideiras estão com os dias contados.

ROOM 2806: THE ACCUSATION (2020)

Sinceramente, eu pensava que Dominique Strauss-Kahn estava preso e, se não fosse esta série da Netflix, ainda o pensaria hoje. Ao contrário de outros documentários de "true crime", ela não tenta desenterrar novos fatos e prefere fazer algo que, arrisco, talvez seja até mais interessante: ela revela o ex-dirigente do FMI como a prova cabal de que as brechas do sistema servem para os poderosos se abrigarem. As vítimas de Strauss-Kahn são muitas, mas as do sistema somos todos nós.