HEATHERS (1989)

Winona Ryder tinha 17 anos, Christian Slater 19. É uma comédia de adolescentes perigosamente inadequada (ou seja, muito adequada) para adolescentes. Um roteiro em ponto de bala, com frases antológicas (um exemplo: «I rarely listen to Neanderthals like Kurt Kelly, but he said that he and Ram had a nice little sword fight in your mouth last night»). Nada de sensibilidade existencial à "The Breakfast Club". Nada de putaria com moralismo cor-de-rosa à "American Pie". Isto é humor "screwball" no nível de acidez extrema que não fica a dever nada a "Arsenic and Old Lace". Uma grande comédia, que merece todo o seu atual estatuto de culto.
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MANHUNTER (1986)

O primeiro filme com Hannibal Lecter mostra bem as fixações de Michael Mann: há muito homem, muita gente sozinha e muita coisa que acontece à noite. Tive um sentimento curioso enquanto via: um estranhamento pelos anos 80, da decoração ao bigode de Dennis Farina. A primeira década em que vivi parece hoje um lugar estranho e inatural.

PORTRAIT DE LA JEUNE FILLE EN FEU (2019)

Em Março, quando Polanski ganhou o César de melhor Diretor, a atriz Adèle Haenel foi a primeira a abandonar a sala, sendo seguida pelo resto da equipe. Fê-lo pela homenagem a um homem acusado de abuso sexual de menor, mas poderia perfeitamente tê-lo feito por o prêmio não ter ido para a sua diretora, Céline Sciamma. "Portrait" é um filme belíssimo, em que cada plano é uma conquista. Mais do que "Barry Lyndon", lembra-me de "Mr. Turner", de Mike Leigh, pelo trabalho dos silêncios e pelo constante diálogo com a pintura. Uma grande história de amor e um filme absolutamente maravilhoso.

THE CRAFT (1996)

Se ainda não perceberam, eu estou a aproveitar estes dias para ver filmes que nunca vira. Entre eles, estão alguns que deveria ter consumido na adolescência. Em "The Craft", mulheres são protagonistas, vilãs e as principais coadjuvantes, o que parece muito refrescante para um género que fora tão acostumado a ser articulador da masculinidade. O filme perde força e complexidade na segunda metade, mas é divertido de assistir nem que seja pela nostalgia de um tempo em que os filmes para adolescentes tinham Portishead, Elastica e covers de Smiths. E, sim, Neve Campbell foi a namorada imaginária de muito boa gente nascida nos 80s.

THE NAME OF THE ROSE (2019)

Há dias, queixei-me aqui de ninguém me ter falado sobre esta série do ano passado, adaptação do livro do Umberto Eco. Após ter visto alguns episódios, quero dizer que, na verdade, agradeço não o terem feito. Enquanto reconstituição histórica medieval, ainda a achei mais interessante do que, por exemplo, "Knightfall", mas tem uma falha grande: ao investir nos subenredos, perde espaço para criar uma atmosfera malsã de loucura e mistério que prenda como a do filme de Jean-Jacques Annaud. Algo me diz que, se ela tivesse 3 ou 4 episódios a menos, talvez as coisas fossem diferentes. Uma peninha.

REMASTERED: WHO SHOT THE SHERIFF? (2018)

Imaginem que o Queiroz visita a vossa casa e descarrega a pistola, acertando na vossa esposa e no vosso manager e deixando-vos uma bala alojada no braço. Imaginem ainda que, tempos depois, vocês fazem um concerto em que convidam o Haddad e o Bolsonaro a subir ao palco e os fazem dar as mãos. Foi mais ou menos o que Bob Marley fez certa ocasião na Jamaica. Gosto muito desta série "ReMastered" do Netflix e do modo como ela refresca a arte perdida do documentário televisivo de 1h. A forma como ela foca num detalhe ou momento da vida do biografado (ou da morte, no exemplo de Victor Jara) é muito inteligente e confere-lhe a possibilidade de dizer algo novo e original sobre pessoas cujo percurso é conhecido por todos.

O NOME DA ROSA (1986)

Após ter visto pela enésima vez este filme que me fascina desde a infância, tenho uma pergunta: como é que NINGUÉM me disse que saiu uma adaptação em série ano passado com o Turturro fazendo de William de Baskerville? NINGUÉM?

THEATER OF LIFE (2016)

Belo documentário sobre o Refettorio Ambrosiano de Massimo Bottura, um restaurante para os necessitados focado em acabar com o desperdício de alimentos e que, por isso, aproveita ingredientes que iriam para o lixo. O filme não esquece Bottura e os seus muitos chefs convidados (o Ducasse!, o Redzepi!, o pessoal da Gastromotiva!), mas inteligentemente dá o protagonismo aos moradores de rua, aposentadas e refugiadas que visitam o lugar à procura de companhia e (excelente) comida. Memorável.

THE SERPENT AND THE RAINBOW (1988)

É preciso dizer já que Wes Craven era um autor dos pés à cabeça, e quem tiver dúvidas que veja o extraordinário "Wes Craven's New Nightmare". A sua estética elaborada está aqui presente, desde a sua característica de marcar a divisão entre o real e o sonho até nomear as suas presumíveis influências nos sobrenomes das personagens: Durand (o mitólogo que estudei no mestrado e que, em algum momento, me fez levar as mãos à cabeça), Duchamp, Mozart, Celine, Peytraud... Porém, fiquei muito dividido com este filme. Por um lado, é de admirar a coragem de quem foi filmar no Haiti logo após a queda de Baby Doc e tentou captar o que seria um pedaço da vida real no país, além de recorrer a um elenco maioritariamente negro numa década de representatividade diminuta no cinema de terror . Por outro, reproduzem-se clichês raciais que já não valem para nada hoje: os EUA da ciência vs o Haiti da magia, o branco salvador, o negro sacrificial, etc. Também se pisa um terreno perigoso de apropriação cultural do vodu haitiano, ainda que seja notório o esforço de Craven para não ser vago e desrespeituoso. Resumiria assim: no que acerta, o filme continua a acertar muito.

REMASTERED: TRICKY DICK & THE MAN IN BLACK (2018)

Há uns meses, vi o documentário do Victor Jara da coleção Remastered do Netflix. Gostei muito, e este sobre Johnny Cash não lhe fica atrás. A grande sacada dele é não fazer uma perspectiva geral da vida do cantor e focar num evento específico: o convite de Nixon a Cash para este tocar na Casa Branca e o que aconteceu no concerto. Evita a repetição, mantém o nosso interesse e mostra, mais uma vez, como Cash foi dos sujeitos mais porrreiros que já viveram.

MYSTIFY: MICHAEL HUTCHENCE (2019)

O vocalista dos INXS foi dos homens mais bonitos que o rock teve, mas a vida dele teve complicações e tristezas na mesma medida da beleza. Um pouco hagiográfico, mas com bom arquivo e um respeitável rol de entrevistados. Vê-se bem e ainda dá para cantarolar as músicas..

LIGUE DJÁ: O LENDÁRIO WALTER MERCADO (2020)

Se o império de Walter Mercado chegou a Portugal, sinceramente passou-me ao lado, mas o entusiasmo que correu os meus grupos de Whatsapp esta semana só demonstrou a popularidade que ele teve no Brasil. O documentário perde força a partir do momento em que revela o seu gancho inicial (o motivo por que Mercado desapareceu subitamente da televisão), mas vale pelo apelo à nostalgia.

SEARCH PARTY (s03, 2020)

A série mais millennial que conheço e, ao mesmo tempo, a sátira mais mordaz da cultura e dos valores millennials que já vi. Confesso que pouco mais do que espreitei as duas primeiras temporadas enquanto a Cyntia via, mas tenho prestado mais atenção à terceira muito por causa desta atriz. Arrisco (com confiança considerável) que toda a equipe de gravação esperava ansiosamente as cenas com Shalita Grant. A sua composição da personagem é magistral e o seu controlo do ritmo é perfeito — o que é só uma forma rebuscada de dizer que a mulher é muito engraçada!

ENTRE TINIEBLAS (1983)

Uma cantora vê o seu namorado morrer com uma overdose de heroína e refugia-se num convento por entre freiras com nomes humilhantes (Sor Ratazana, Sor Esterco, Sor Víbora), onde o consumo de drogas leves e pesadas é constante e a busca por dinheiro é imperiosa. Dizer o quê dos filmes do Almodóvar do início dos anos 80? Talvez isto: poucas vezes alguém tão livre filmou tão bem filmes tão divertidos e tão blasfemos.

CANDYMAN (1992)

Enquanto lia o excelente livro "Horror Noire", apercebi-me que nunca vira "Candyman". A história, adaptada de Clive Barker, é atravessada pelo tema da culpa, da individual até à histórica. Pareceu-me mesmo uma grande alegoria sobre a "white guilt", construída com aquela maestria narrativa em que cada desenvolvimento é uma complexificação ou nuance do pensamento. Nem um único segundo sem tensão. Que grande filme..

BROADCHURCH (s03, 2017)

Chego atrasado à terceira temporada desta série britânica influenciada pelo "nordic noir". Os ingredientes do costume continuam, felizmente, mas o deleite especial é ver esta mulher, Julie Hesmondhalgh, representar uma vítima de estupro. Sempre que ela apartece, há um pormenor da personagem que se revela da forma mais sutil e natural possível. Que grande atriz..

NADIE SABE QUE ESTOY AQUI (2020)

Tem um toque de realismo mágico e trabalha bem os seus símbolos: a água que rodeia a fazenda anuncia a inacessibilidade do protagonista, a obesidade deste representa o peso moral que carrega, o seu silêncio revela a dor de quem teve a sua voz roubada. Não é um filme pesado, antes tem aquele agridoce de sorriso triste bem latino-americano.

GHOST STORIES (2017)

As histórias de fantasmas têm uma estrutura muito semelhante à da comédia, com sequências cujo objetivo é acumular tensão até ao punch final, em que a assombração é revelada. É um processo eminentemente cinematográfico, que trabalha o som e a edição para ser eficaz. Durante a 1ª hora, o filme faz isto muito bem, além de conseguir manter a atenção com uma estrutura narrativa original, que mistura a antologia de histórias com um enredo guarda-chuva. Esperava-se um ato final em que tudo se enlaçasse, mas, em vez disso, o filme dá-nos uma desilusão. Desmonta tudo o que construiu antes e, pior, parece convencido de que faz muito bem. Zanguei-me.

EUROVISION SONG CONTEST: THE STORY OF FIRE SAGA (2020)

É claro que, sendo europeu, a minha memória afetiva da Eurovisão é tão grande e irrazoável quanto a que um brasileiro tem de carne louca. A Eurovisão é um lugar estranho: todos sabemos que aquilo é piroso e o espetáculo mais artificial que pode haver, mas, em algum momento, todos entramos numa discussão sobre qual deve ser a canção escolhida. Há algo de muito comunitário nesse ritual, e o filme soube captar isso muito bem, talvez porque o Will Ferrell, ao que parece, tem esposa sueca e acompanha o festival há anos. As aparições de verdadeiros vencedores da Eurovisão (incluindo o Salvador Sobral) devem ser lidas por aí. O filme é uma homenagem simpática a este universo, com purpurina, luzes, cores e a exaltação das emoções desbragadas. Mais do que rir, faz-nos sorrir — mas sorrimos muito..

THE INVITATION (2015)

Pessoas com 25-45 anos juntam-se para um jantar. Por alguma razão, o ambiente é estranho e desconfortável. Verdades incómodas são reveladas, e a catarse final corresponde fundamentalmente à queda das máscaras com que a classe média se constrói. Poderia ser a sinopse de muitos títulos de mumblecore, e é a sinopse deste filme. Sou ambivalente em relação a esse movimento. Por um lado, atraem-me filmes feitos com orçamento baixo, concentrados na mesma locação, com poucos atores. Por outro, acho que o mumblecore não prima por olhar para pessoas interessantes. Este filme pareceu-me tão vazio quanto as suas personagens, sem a sabedoria de adicionar um pormenor que lhe desse sal, como o si-fi de Coherence (2013).