Objetos do Brasil: o Programa Sílvio Santos


O Programa Sílvio Santos assenta num pressuposto curioso, que também já justificou coisas em Portugal como o "Agora ou Nunca": toda a gente quer dinheiro e está disposta a tudo para o conseguir. No entanto, ele fá-lo da forma mais despudorada que alguma vez se viu:
SÍLVIO SANTOS - Quem quer dinheirooooo?
AUDIÊNCIA COMPOSTA INTEIRAMENTE POR MULHERES - Eeeeeeeeeeeeeu!
SÍLVIO SANTOS - Quem quer dinheiroooooooooooooooooo?!
AUDIÊNCIA COMPOSTA INTEIRAMENTE POR MULHERES - Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeu!
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=FXnGNEnUR5Y&fs=1&hl=pt_PT]
Enquanto grita estas palavras de ordem, Sílvio Santos vai percorrendo à sua vontade um corredor entre duas colunas de espectadoras que parecem mais selvagens do que qualquer audiência que a Oprah consiga angariar. Quando quer perguntar alguma coisa a alguém, ele escolhe a pessoa que mais lhe agrada no momento. Há sempre um microfone a aparecer-lhe miraculosamente na mão, que ele aponta só para a interlocutora - sim, porque ele tem um microfone só para ele, que traz sempre fixo e em riste por baixo do pescoço, preso com uma coisa metálica que, por esta altura, já lhe deve entrar pela pele adentro. Se ELE OPINAR que a resposta da mulher está certa (e basta OPINAR, mas tem que ser ELE), tira um maço de notas do casaco e dá-lho. Sílvio Santos tem os bolsos mais bem recheados de toda a televisão mundal, mas nunca ganhar dinheiro foi tão humilhante em toda a história das atividades económicas. Ele ri-se e troça da ignorância das concorrentes de ocasião e, com requintes de crueldade próprios de um padastro num conto de fadas, ele humilha a Maísa, uma criança que se tornou uma figura televisiva precisamente por ser humilhada por ele e, de vez em quando, replicar (se bem que isso só sirva para que ele a humilhe mais um pouco).
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=wCK7aZmNMjQ&fs=1&hl=pt_PT]
No Programa Sílvio Santos, a audiência aplaude vídeos com homens a assobiar, anúncios de produtos de maquilhagem produzidos pelo próprio Sílvio Santos, travestis a cantar e desfilar, dinheiro, dinheiro e dinheiro. É um momento televisivo em que tudo pode acontecer, porque, desde que cumpra os requisitos de beleza e/ou de riqueza, nada é de tão mau gosto que nele não se possa ver. É pura poesia pop, arte contemporânea trash, um programa "larger than life" que ultrapassará sempre qualquer ficção imaginável. E, além disso, contém um subtexto sexual intrigante: Sílvio Santos, um homem de microfone em riste, a atirar maços de dinheiro ao calhas para uma audiência de mulheres ávidas, que se atropelam e empurram para conseguirem pagar as compras da semana. Ou seja, Sílvio Santos conseguiu o que muita gente sonhou e não alcançou: ele ejacula dinheiro. E, no final, ainda se ri. Com dentes cirurgicamente brancos, evidentemente.

Para o que me deu

Estou a fazer algo que não fazia há muito tempo: ler blogs. Foi uma constante diária desde 2003, quanto entrei no "meio" com A Peste - literalmente no meio; a moda tinha começado uns 2, 3 anos antes, e na silly season desse ano fora notícia, mas eu esperei até novembro para ter a certeza que não ia fazer merda - e depois ainda mais com o PF News, que obrigava a manter-me constantemente atualizado sobre novidades boas e más dos meios culturais, literários, audiovisuais e outros que tais. Em 2010, quando vim para o Brasil e deixei de escrever o PF News, deixei de ler blogs. E, não fosse ele, tê-lo-ia feito antes.

Em 2003-2004, havia uma discussão interessante sobre aquilo que se poderia escrever no blog. Este era o meio natural para se escrever sobre o quê, com que estilo, etc. Mas, uns 5 anos depois, com milhares de pessoas a produzirem diariamente milhares de carateres de forma espontânea numa espécie de esfera paralela a todas as restantes publicações que se faziam no mundo, parecia que os blogs já tinham tocado em tudo de todas as formas. Adolescentes a escreverem sobre política e pastilha elástica, políticos a escreverem sobre adolescentes e pastilha elástica, jovens guionistas a escrever sobre pastilhas elásticas e políticos e adolescentes. As possibilidades foram incontáveis; em 2008 pareceram já esgotadas.

A forma como a partidarização avançou também teve algo a ver com isto perder a graça. Por exemplo, quando o Aspirina B responde a João Galamba com a notícia "Portugal é o país da UE com mais progressos na educação", toda uma série de dúvidas surge: como é que isto surge neste contexto de esgrima política?, como é que a notícia foi criada, quem foi a fonte?, com base em que estatísticas?, que confiança podemos depositar nessas estatísticas, nós, que sabemos que as contas oficiais são alteradas desde clubes de futebol de 3a divisão até aos governos que têm que se haver com os parceiros europeus?

O mundo onde os blogs eram o meio de comunicação sincero e fora do sistema por excelência voltou a ser aquele onde não temos nada em que acreditar. No 11 de Setembro, foram a solução. Hoje, são só mais uma parte do problema. E, ainda assim, estou a fazer algo que já não fazia há muito tempo: ler blogs. Louco, não?

Chegar

Recém chegado a São Paulo, uma coisa me saltou logo à vista, ou melhor, às glândulas sudoríparas: está calor. Bastante calor. Não tanto como esperavam aqueles que me diziam "mas no Brasil está sempre quente" e não sabiam que eu cheguei a andar com um cachecol amarrado na cabeça em Julho. Ainda assim, está bem quentinho. O que significa que, como eu saí ontem de casa com uma mochila, cheguei ao trabalho com uma mancha de suor muito bonita desenhada nas costas. Felizmente, como estou com jet lag e o meu cérebro está quatro horas adiantado em relação ao horário local, cheguei cedo demais, ainda não estava ninguém no escritório e pude ir para a varanda deixar que as costas me secassem ao sol. Sim, havia sol, até chegar o final da tarde com o seu smog anestésico, mas antes ainda conheci o novo estagiário da produtora, que me disse que em Portugal já não havia dinheiro. Eu ri-me e disse "é verdade", mas tinha percebido mal: ele tinha dito que em Portugal não havia "gelo", e alguém soltou um "porquê?" e ele respondeu "porque a senhora que fazia perdeu a receita". Por isso, como eu sou uma pessoa cruel e sem coração, mandei-o logo fotocopiar-me um livro. Mentira, ele até é bom rapaz. Respondi só com a piada de brasileiros que me contaram ainda em PT, da senhora que quer registar a filha com o nome "Arquibancada do Corinthians" e, perante a recusa do homem do registro, exclama "ué, mas meu vizinho registrou o filho como Geraldo Santos!". Ele não se riu muito, por isso, mandei-o mesmo fotocopiar-me um livro.

Estudo para personagem

Eu não gosto de falar disto. Não é adequado ao momento. Sou fisioterapeuta, mas tenho a minha clínica própria. Sou uma mulher de negócios, uma empresária também. Tenho um sucesso moderado.

Eu não faço publicidade. Os pacientes que falem. Se gostarem, gostam. Têm gostado.

Eu não sou santa. Eu bebo, eu fumo. Porque é que as pessoas julgam que sou santa? Elas depositam esperanças em mim que não deveriam. Eu faço o que é preciso fazer. Às vezes vai resultar mais do que penso, outras menos. Mas eu não sou santa. Porque esperam que seja santa?

Uma vez, tive um paciente que sofrera um erro médico. Quando me chegou, só conseguia estar deitado. E eu pu-lo a andar.

Tenho uma mão XS. É mesmo muito pequena. Pedem-me muitas vezes que ensine coisas sobre massagens. Que conheça pontos milagrosos no corpo. Não sei ensinar nada. Se queres aprender, tira um curso.

Há mulheres que têm dores na nona vértebra. É a que fica no meio das costelas. Quem tem dores na nona vértebra ou não chora ou não tem orgasmos.

Eu choro muito.

O cheiro nocturno

Ontem foi mais um concerto dos Social Smokers, o último que dei em Portugal com a banda completa antes de voltar a São Paulo - o que não quer dizer que possam perder a performance que eu, o Silva o Sentinela e o Biru vamos dar amanhã no Clube da Palavra Ao Vivo, no Teatro São Luiz. Seja como for, como estas coisas cansam (ao contrário do que poderão pensar as minhas amigas que vêm do Brasil com a pica toda de rainhas da noite e que me mandam mensagens às 4h e meia perguntando porque não estou no Musicbox). Portanto, era tranquilamente que subia a rua para o meu prédio quando ouço uma voz atrás de mim dizendo "olhe, por favor!".

Viro-me. Dois polícias subiam a rua a correr. Ao lado, na estrada, um carro com um colega deles subia também. Na rua vazia, a visão daqueles dois latagões a correrem era, no mínimo, caricata. Cordial, perguntei "sim, senhor guarda?" e o polícia que me tinha chamado disse "deixe-me ver uma coisa, por favor". "Com certeza", e abri os braços, pronto para, pela primeira vez na minha vida ser revistado na rua - o que não teria sido problemático, já que sempre que vou aos Smokers não levo o revólver.

Mas ele não me queria revistar. Só me queria cheirar as mãos. Cheirou uma, cheirou a outra, disse "obrigado e desculpe". O carro deu meia volta e ele e o colega também e começaram a descer. E eu, cheirado por um polícia em plena rua às 3h da manhã, senti-me usado como nunca me tinha sentido na vida. No entanto, se algum dia aquele agente quiser ascender à posição de perdigueiro, estou disposto a escrever uma recomendação. Só faltou ele ter adivinhado o que eu tinha jantado. Se o tivesse feito, até o convidava para actuar connosco no Sábado.

Poema contra a crise

Há quem diga que a poesia não resolve nada,
Há quem diga que a poesia não é prática.
Mas eu vou resolver esta crise
Com poesia matemática!

O primeiro verso vai custar-lhe mil euros!
O segundo verso vai custar-lhe dois mil euros!
O terceiro verso vai custar-lhe uma participação numa empresa sediada no off-shore da Madeira!

O quarto verso vai custar-lhe uma citação na revista Ler!
O quinto verso vai custar-lhe uma citação no Jornal de Letras!
O sexto verso vai custar-lhe uma citação pelo Tribunal de Contas para um processo que não terá quaisquer efeitos práticos!

O sétimo verso vai custar-lhe uma casa de banho no Palácio de Belém!
O oitavo verso vai custar-lhe uma casa de banho no palácio de um barão de droga colombiano!
O nono verso vai custar-lhe uma casa de banho no Ministério da Cultura de Manuel Maria Carrilho!

O décimo verso vai custar-lhe o tecido das cuequinhas de Angela Merkel!
O décimo primeiro verso vai custar-lhe a tenda que Muammar Kadhafi usou quando veio a Lisboa!
O décimo segundo verso vai custar-lhe a barraca que o FMI vai armar neste país!

O décimo terceiro verso vai custar-lhe uma linha (de coca) a grande velocidade e um aeroporto que não ota nem desota!
O décimo quarto verso vai custar-lhe o ouro do Brasil!
E o décimo quinto verso vai custar-lhe todas as derrapagens nas obras públicas nos últimos dez anos!

Há quem diga que poeta é pobre,
Há quem diga que poeta é mau,
Mas eu com este poema
Acabei de salvar Portugal!

Lido pela primeira vez no slam da iniciativa Poesia Monumental, no dia 5 de Abril na Galeria Monumental, no Campo dos Mártires da Pátria nº 101. O evento termina hoje às 22h, com o concerto dos Social Smokers.

As pastilhas elásticas portuguesas

Sempre que se regressa à terra natal, presta-se especial atenção a tudo aquilo que há de diferente ou de novo. Porém, é difícil encontrar coisas que juntem as duas características. Por exemplo, a demissão de Governos é sempre diferente - mas já não é novo. O reequilíbrio de poderes na Assembleia da República será novo - mas não diferente.

Na minha busca-expresso pelo novo e diferente da Tugalândia, acabei por encontrar um elemento que reúne as duas características a um ponto no mínimo surpreendente: as novas pastilhas elásticas. A primeira que experimentei foi a Chiclets Ice Citrus Crush.Com esta pastilha, a Cadbury Portugal (dona das marcas Chiclets e Trident) tenta o que provavelmente muitos no reino do pastilhiquismo já tentaram e nunca conseguiram: simular o sabor daqueles limões velhos e bafientos que caem para trás da arca congeladora (talvez daí o "Ice") e só se vão apanhar depois de ganharem uma camada entre o verde e o esbranquiçado e um vívido cheiro a coisa pouco saudável. Chiclets Ice Citrus Crush é diferente, sim, mas será novo? O sabor cítrico tem sido, apesar de tudo, uma constante nas pastilhas elásticas, estando só um patamar abaixo dos clássicos Spearmint e Peppermint. Porém, o elemento "Ice" aqui chama a atenção para uma tendência recente de que a nossa próxima pastilha é um exemplo perfeito.
Adoraria ter estado na reunião de marketing que decidiu o nome desta pastilha. Na generalidade, é "cocktail"; na especificidade, é "daiquiri"; e na pentelhice é "frozen". Das duas uma: ou no laboratório de sabores da Chiclets eles têm um sabor "gelo", o que me parece francamente assustador; ou eles não têm nada disso e o "frozen" é trapaça. Seja como for, não deixa de ser um sabor interessante e que chama a atenção. A ideia, afinal de contas, é meritória: substituindo os verdadeiros daiquiris, a Trident permite que os seus consumidores deixem de gastar tempo a comprar rum, açúcar e limão e o gastem no que realmente importa, como mastigar sem engolir.

Confrontados com as inovações de marketing dos comparsas da Chiclets, os senhores da Trident foram obrigados a deitar a toalha ao chão e reconhecer que chegáramos ao abismo, ao verdadeiro "fim da história" fukuyamaico do pastilhiquismo. A situação era grave: não havia mais sabores. Já tudo fora vendido, já tudo fora anunciado. Nenhum fruto tropical desconhecido teria poder suficiente para vender, nenhuma nova mistura de sabores seduziria um público saturado. Como resolver isto? E então uma mente revoltada e cansada por estar a ter ideias até às 4h da manhã sem poder ir para casa genialmente disse: "passamos a vida a dizer ao consumidor o que vai provar. E se por uma vez, e se só por uma vez não disséssemos nada?!" E toda a gente aplaudiu. Assim se criou a Trident Senses Mega Mystery.

Há quem diga que os sabores são laranja e piña colada. Outros dizem que começa por saber a lima, no meio é morango e no fim é ananás. A mim parece-me haver algo de tangerina por ali. Mas a verdade, a grande verdade, é que isso não importa mesmo muito. As Trident Senses Mega Mystery provam algo que toda a gente sabe, mas tem vergonha de dizer: pastilhas elásticas, refrigerantes, rebuçados, o objectivo de tudo isso é meter o máximo de açúcar possível dentro do consumidor. E, ainda que a Trident o substitua por aspartamo, com este golpe eles enviaram uma mensagem muito directa: "o sabor? Que se lixe o sabor!". Obrigado, Trident. Graças a ti, o mundo é um bocadinho menos hipócrita.

Social Smokers a gostarem deles próprios

http://vimeo.com/22044935
http://vimeo.com/22045093
Ontem, disse dois poemas do universo Social Smokers para o canal A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria. Final de tarde no Parque Eduardo VII: O "Liberdade" não podia ter sido em melhor lugar...

A melhor tentativa de engate falhada de sempre...

...foi a que ouvi hoje, emanada da boca de um rapaz encorpado e moreno, suado apesar da t-shirt e das bermudas, que gritou para as profundezas do grupo de mulheres que andava à frente dele "Ò loira!" e que, vendo como ela olhou de relance, mas as mais trigueiras companheiras também, decidiu acrescentar "Era só para a loira! Era só para a loira! Não era para as morenas!", o que fez com que o grupo de mulheres acelerasse a marcha como quem não quer molhar os pés numa onda de parvoíces. Ele, vendo que já ninguém lhe ligava, não quis deixar que elas se fossem embora sem estarem bem cientes da posição dele sobre o mundo e a vida e todas as coisas e gritou com veemência "A gente só gosta de loiras! Só loiras! Viva as loiras! Viva as loiras!". E, curiosamente, foi poucas horas depois de eu ter ouvido isto junto ao Banco de Portugal que José Sócrates anunciou que o FMI vai voltar a fazer turismo em Portugal, perpetuando uma sina de loiros nos virem dizer o que fazer à vida, como já aconteceu nos anos 80, no tratado de Methuen, no Napoleão, nos romanos e até com os Afonsinhos. Por acaso, as vezes em que tivemos outras pessoas que não loiros a mandar em nós foram os espanhóis e os árabes e, do que se ouve dizer por aí, até não correu assim tão mal. Porquê então, de novo, o FMI e não Bin-Laden, por exemplo? Por enquanto, os loiros venceram de novo. Vivam eles, então.

Estudo para personagem

Eu não moro aqui, eu moro na vila ao lado. Eu sou designer de vidro. Não podia fazer outra coisa. O vidro é transparente, moldável, maleável. É material, sensorial. E frágil.

Eu sou como o vidro.

O que eu gosto no vidro é que ele não mente. Se ele está de bem comigo, as coisas correm bem. Se ele está de mal, eu corto-me. Eu posso andar por cima de vidro descalça e não me cortar. Mas também posso fazê-lo e cortar-me toda. Tudo depende de ele estar zangado ou não. Mas às vezes eu ando por cima dele e, a olho, faço peças que ficam magníficas. Tudo depende dele.

Eu penso muita coisa. Mas a pergunta é sempre a mesma: onde é que eu posso divulgar as minhas coisas? Eu moro aqui, trabalho na vila ao lado. Onde é que eu mostro o meu vidro, diz-me?