Os poemas antigos

Para recordar tempos de masoquismo.

5 microcontos sobre o desejo

Escritos para o número 11 da revista Minguante.

O Parênteses

Um pequeno conto escrito para os leitores do meu antigo blog. Joaquim Nando ainda teve continuação.

Um microconto de Natal

A minha primeira incursão pelos terrenos da micronarrativa.

People try to put us down

Não consigo concordar com Samuel Úria, com quem partilho geração. Não seremos progressistas no futuro porque não o somos agora e metade dos adultos que conheço, à frentex para o seu tempo e parceiros de revoluções ou movidas e coisas parecidas, queixam-se dos filhos que se querem casar, perguntando quem é que se casa. Sim, quem é que se casa, a não ser um exército que cresceu a ouvir contos de fadas? Olho à volta e não vejo progresso. Nos olhos há medo, nos ânimos confusão. We know not what tomorrow will bring e, sim, pode sempre arguir-se que a necessidade aguça o engenho e, entregues a nós próprios, menos dependentes do conforto da vida persistiremos. Mas a minha geração não vai ter velhos jarretas, nem censores do restelo, nem reaccionários quadrados? Achas mesmo, Samuel? Fechamos os olhos ao presente ou devemos contar com um futuro que nos regenere?

It's just a restless feeling by my side

Fala-se de melancolia, mas perfeição é esta, a da ainda-manhã de domingo, com o lastro desarrumado da semana à minha volta e as pernas frias a sofrerem da preguiça do dono. Há dias escrevi algures a nota "começamos a entrar na idade em que as coisas se vão perdendo", mas não sei exactamente o que isso queria dizer. Isto, porém, nunca se perde: o silêncio, o prazer de um tipo se sentir solidamente consigo no meio de uma desarrumação reversível. A solidão, insuportável à noite, é apetitosa agora.

A meio, o fim

Quanto tempo demora até que tudo fique igual, ouço perguntar dentro da minha mente (o que não quer dizer, atenção, que a pergunta seja minha). De outro modo, poder-se-ia dizer que é precisamente por estes meados de Janeiro que se descobre que resoluções de ano novo valem ou caem por completo. Eu, por mim, fiz uma. Tem-se aguentado, com algum sacrifício. Se assim não fosse, o falhanço seria total. É o problema de se ser pelo fatalismo no mundo e achar que não há nada de muito sólido, ou que se desmanche no ar, ou que se chame poder transformador da mente. Quanto tempo demora até que tudo fique igual? Resposta rápida: nenhum.

O regresso

Entre viagens planeadas e viagens feitas, um tipo começa a perguntar qual é o sentido disto tudo, o que ajuda a compreender porque é que a assistência das igrejas é de faixa etária mais avançada. Aí ainda não cheguei, mas tenho de me sentar nalgum lado a esquecer-me da vida, por isso fui ao cinema comer pipocas. O Avatar do Cameron não é tão fascinante como o Avatar do Carnivale. O eyeware, ainda assim, é mais à maneira. Ainda me lembro de uma transmissão muito anunciada d'O Monstro da Lagoa Negra na televisão, aí para 1986. Até a TV Guia andara na distribuição de óculos de armações de cartolina com lentes de acetato vermelho e azul e depois não deu em nada, já não sei porquê. Ora, os do Avatar não só funcionam como são de armação de plástico de massa com lentes escurecidas. Durante aquelas horinhas, podemos fantasiar a gosto que somos o Woody Allen ou o Pinochet e optar por soprar no clarinete ou mandar entrar a caravana da morte. O problema é que o filme acaba, a Michelle Rodriguez não se dá bem e um tipo pergunta-se qual é o sentido daquilo tudo, o que implica outra viagem e, claro, um sítio diferente para se sentar.

Um clássico

Na casa natal, vi passar na televisão um Concerto de Ano Novo da Filarmónica de Viena. Chamou-me a atenção a valsa "Vinho, Mulheres e Canções", que não consigo de pensar como eufemismo de Strauss para se referir a huren und grüne wein na Viena novecentista. O meu avô é sempre o grande responsável por se deixar ficar no canal com música clássica e também descobri porquê: foi amigo do maestro Miguel de Oliveira, líder da banda musical durante vinte anos. Compôs De Cádiz a Tanger e teve um primo do meu avô na trompa. Este primo, curiosamente, chamava-se Fausto.

2010

Fui às compras para o fim-de-ano e não consegui deixar de pensar, ao ver os congelados com ar triste dentro da arca, nos lombos rubros do camarão-tigre que comi por uma ninharia no Clube Naval de Maputo há uns anos. Sou sincero, nesse momento pensei "nunca comi coisa igual". Também nunca tinha sentido na pele a coisa estranha que senti quando disse que não achava o Acordo Ortográfico maningue nice e um escritor moçambicano me respondeu que os portugueses gostam de se sentir donos da língua. Acordo Ortográfico que, por acaso, é tema de capa no Público de hoje e lá se diz que Moçambique não está a achar a cena maningue nice também, tanto que ainda não o ratificou. Quem o curte tótil é o Brasil, e o meu ano que vem vai passar muito por esse país. Por isso, bom 2010.

Jorge Vaz Nande

Nasci no Minho, moro pelo Minhocão.
Ganho a vida escrevendo.
Gosto de histórias, de palavras e de imagens.
@ nas redes (quase) todas: jvnande.

mensagem

Sempre que o fazes pões-te em causa. Não há como não acontecer. Se corre bem, vais conseguir fazê-lo para sempre. Serás adorado por isso, vão pedir-te que repitas uma e outra vez. Se correr mal, não vais saber repentinamente onde estás ou quem és. Vais pensar que vais sempre falhar e que não estás no caminho certo. Vais achar que precisas de reformular a vida toda, que algures pelo caminho baralhaste as prioridades e agora, quê?, agora não tens mais a fazer do que seguir em frente, aproveitar o balanço da onda e esperar que não pare de repente, que te continue a levar por terras que não conheces sem que tenhas de dar aos pés. E, de repente, um dia, pam!, caíste e vais ter de descobrir o melhor lugar para dar o primeiro passo, para te voltares a erguer, para olhares o céu, contar as estrelas e aprender tudo outra vez. É mesmo assim, alguém te vai dizer. E é mesmo.

Simiolitude

Precisamente no dia em que A Origem das Espécies fez 150 anos, no eléctrico vi ser lido um paper de título Genes e Ambiente: Um Modelo Evolutivo da Linguagem. E o mais extraordinário é que quem lia era um macaco.

Diz-me onde entroncas

Mais do que pelos legumes gigantes e avistamentos de ovnis, o Entroncamento fascina pelo nome. Não tem qualidade orográfica como Monsanto, religiosa como São Bento da Porta Aberta, política como Vila Real. Não tem nada a ver coma História dos Comportamentos, como Odivelas (onde o rei ia às putas - "ir de vê-las") ou Freixo de Espada à Cinta (terra do famoso esgrimista José Freixo). O Entroncamento tem nome por cruzar ferrovias. Podia chamar-se Ramal, Carril ou Pouso de Pica-Bilhetes. Só me lembro de um caso semelhante, um lugar pouco antes da estação de Ermesinde que se chama Travagem - e juro que não estou a inventar. Era giro que houvesse mais destas coisas por aí. Sítios com grande circulação automóvel podiam chamar-se Engarrafamento. Por esse país fora, espalhar-se-iam as vilas chamadas Rotunda. Poderíamos ter uma Lomba mesmo antes de um Semáforo. E porque não passarmos dos transportes para os afectos? Se em Alfama há um Largo das Pichas Murchas, o que impede que haja uma Praça do Desgosto? Uma Avenida do Matrimónio? Um Beco da Má Queca? Talvez isso ajudasse as gentes do Entroncamento a sacudir a sensação de que a terra deles é só o que nasceu à volta da linha de comboio. Afinal, à volta de qualquer coisa se fez tudo. Este texto também é só o que apareceu à volta duma conhecida crónica de um conhecido escritor. Daí o seu nome.

Uma mulher que vende o exclusivo do seu implante mamário a uma revista NÃO ESTÁ "a envelhecer bem"

Há pouco, no Chiado, vinha do jantar de aniversário da Susana e cruzei-me com um actor nocturno enquanto ia para o metro. O monólogo dele consistia em "A minha mãe dizia para eu mijar no penico. Eu perguntava 'qual penico?' e ela dizia 'o que tens debaixo da cama'." Quero acreditar que esta história tem algum significado profundo, como "debaixo de cada cama há o penico que a mãe deixou", mas, antes de aí chegar, quero lembrar aquele homem que, há dez anos, ainda eu andava de expresso no sobe-e-desce de Coimbra-Monção, vi na estação do Porto a mijar para um canto (com a casa de banho a 3 metros), a andar desorientado, a entrar no primeiro autocarro que viu e a cair no primeiro lugar que encontrou. Adormeceu profundamente, a respiração a fazer-lhe subir e descer a generosa farripa de cabelo que lhe caía sobre a testa. Então o autocarro arrancou e eu pensei, algo aflito, "aquele homem não vai ter bilhete! Vão acordá-lo, ele ainda vai estar bêbedo, não vai ter bilhete, vão expulsá-lo e ele vai morrer enregelado e bêbedo!". Não soube de mais nada, mas o que lhe aconteceu nunca vai ser tão interessante como o que lhe podia ter acontecido. E isto é tudo o que se pode dizer sobre a Maya.

A rima

Foi há umas semanas. Eu, a Ana, a Francisca e o António voltávamos para os carros depois do pequeno-almoço de Domingo em Campo de Ourique. Eles iam voltar para Coimbra, nós íamos voltar para a Estefânea. A Marilyne e a Diana ficaram-se pela Estrela, mas não é disso que quero falar. Eu quero falar de: ao voltarmos para os carros, vimos um homem estático à frente do Pingo Doce, olhando para um cão que estava amarrado a um poste pela trela. Este, gozado e sem lhe conseguir chegar com o focinho para arrancar uma boa dentada, rosnava-lhe naquele tom irritantemente almodovariano (i.e., desesperadamente à beira de um ataque de nervos) que só alguns cães conseguem fazer. O homem estava todo vestido de preto e depois disseram-nos que era "sacerdote". Pois bem, há dias, quando subia dos Anjos para a Estefânea, vi um homem ladrar. Não estou a mentir: um ser humano, na rua, ladrava a plenos pulmões como se fosse a sua primeira língua. Não tinha o rigor de vestuário do outro e não sei se havia um cão estático à frente dele. É possível que o homem estivesse amarrado a um poste por uma trela, até que essa fosse a sua forma particular de rezar. É possível. Neste mundo não se sabe nada e a noite, as vezes, é escura demais.

Ontem, hoje e amanhã

As horas estão a acabar a ouvir Gotta Serve Somebody do Dylan e a descobrir que o Lennon escreveu Serve Yourself em resposta. Sobre a mesa, tenho três livros de teatro, um copo e uma tigela, cada uma com a sua colher, muito papel e o dvd do filme do Paulo Vicente, que ele fez o favor de mo enviar. Ao meu lado, pendurado por dois pionaises no fundo do quadro de cortiça, está o poster do Taking Woodstock. Não sei muito bem porque o tenho, para além de ter sido grátis. Na outra parede, já fora do escritório, está a fotografia autografada do Bogosian. Disseram-me há semanas que eu lembrava ele, é mentira, eu gostei. Depois do McKee, achei que a minha vida precisava de um hambúrguer. Fui ao McDonald's de Roma, que por acaso fica ao lado do Londres, apanhei molha, mas comi o hambúrguer. O mobiliário está mudado, ninguém ao meu lado pediu o McRoyal Deluxe e ainda tenho de cortar as unhas contra o tempo. Amanhã vai chegar e quero unhas cortadas para não o magoar sem querer. Gotta serve somebody: serve yourself.

Conversa de Anas

Estou tão cansado que pondero cometer o acto vergonhoso de me deitar à meia-noite, mas antes quero partilhar o diálogo que clandestinamente cresceu na minha folha de papel durante a oficina de escrita de canções do mestre Gimba:
Aná-Fora e Ana Diplose encontram-se.

ANÁ-FORA
Ana quem?
Ana sou eu!

ANA DIPLOSE
Eu é que sou a Ana,
Ana, e mais ninguém.
Eu disse que estava cansado. Saudações.

O hipopótamo e a avestruz

Foi há dias, na hora do almoço, que a Popota apareceu a cantar Buraka. Na conversa que se seguiu, defendendo o grupo contra algo que já não interessa, disse que o kuduro, o funk carioca e o dancehall jamaicano não são assim tão diferentes, o que faz pensar que, muito provavelmente, quando se está "em vias de desenvolvimento" o desenvolvimento se faz pelo cu do povo, que, portanto, o tem de abanar sob risco de atrofia. Seja como for, a verdade é que, se este ano a Popota descobriu as ancas, a Leopoldina descobriu as mamas, o que não deixa de ser deprimente: a hipopótama pôs-se a dançar, mas a avestruz pôs silicone. Triste, muito triste.

No reino

Hoje subi e desci a Avenida (mentira, só subi). Tive de tratar de um assunto de trabalho e revelou-se a melhor opção para apanhar depois o autocarro. Por acaso, trabalho na área de entretenimento e, também por um natural e perspicaz acaso, o assunto tratou-se perto da Faculdade de Ciências Médicas, onde, a certas horas do dia, não se disfarça o cheiro acre que me entrou pela primeira vez nas narinas quando vi a autópsia de um homem que morrera atropelado e que fora desmontado e voltado a montar tantas vezes que, para o abrir, bastou puxar o fio que lhe unia o peito cortado ao meio. A vida, já se sabe, é uma merda: há por aí animais perdidos a chamar pelos filhotes mortos, há mães e pais sem censura a quem o acaso rouba as crianças para sempre. Por mais que subisse e descesse a avenida, o cheiro ficou-me entranhado outra vez. Se o quiserem reconhecer, pensem em algo proibido, cujo simples pressentimento vos faça mais próximos da perversão. No Reino de von Trier um anatomista compara o medo à intimidade com o medo aos mortos, talvez por isso mesmo: aquele cheiro diz para não estar perto dele a menos que queiramos que a morte nos invada. É um dos casos em que as narinas, e não os olhos, são a entrada para a alma.