A rima

Foi há umas semanas. Eu, a Ana, a Francisca e o António voltávamos para os carros depois do pequeno-almoço de Domingo em Campo de Ourique. Eles iam voltar para Coimbra, nós íamos voltar para a Estefânea. A Marilyne e a Diana ficaram-se pela Estrela, mas não é disso que quero falar. Eu quero falar de: ao voltarmos para os carros, vimos um homem estático à frente do Pingo Doce, olhando para um cão que estava amarrado a um poste pela trela. Este, gozado e sem lhe conseguir chegar com o focinho para arrancar uma boa dentada, rosnava-lhe naquele tom irritantemente almodovariano (i.e., desesperadamente à beira de um ataque de nervos) que só alguns cães conseguem fazer. O homem estava todo vestido de preto e depois disseram-nos que era "sacerdote". Pois bem, há dias, quando subia dos Anjos para a Estefânea, vi um homem ladrar. Não estou a mentir: um ser humano, na rua, ladrava a plenos pulmões como se fosse a sua primeira língua. Não tinha o rigor de vestuário do outro e não sei se havia um cão estático à frente dele. É possível que o homem estivesse amarrado a um poste por uma trela, até que essa fosse a sua forma particular de rezar. É possível. Neste mundo não se sabe nada e a noite, as vezes, é escura demais.

Ontem, hoje e amanhã

As horas estão a acabar a ouvir Gotta Serve Somebody do Dylan e a descobrir que o Lennon escreveu Serve Yourself em resposta. Sobre a mesa, tenho três livros de teatro, um copo e uma tigela, cada uma com a sua colher, muito papel e o dvd do filme do Paulo Vicente, que ele fez o favor de mo enviar. Ao meu lado, pendurado por dois pionaises no fundo do quadro de cortiça, está o poster do Taking Woodstock. Não sei muito bem porque o tenho, para além de ter sido grátis. Na outra parede, já fora do escritório, está a fotografia autografada do Bogosian. Disseram-me há semanas que eu lembrava ele, é mentira, eu gostei. Depois do McKee, achei que a minha vida precisava de um hambúrguer. Fui ao McDonald's de Roma, que por acaso fica ao lado do Londres, apanhei molha, mas comi o hambúrguer. O mobiliário está mudado, ninguém ao meu lado pediu o McRoyal Deluxe e ainda tenho de cortar as unhas contra o tempo. Amanhã vai chegar e quero unhas cortadas para não o magoar sem querer. Gotta serve somebody: serve yourself.

Conversa de Anas

Estou tão cansado que pondero cometer o acto vergonhoso de me deitar à meia-noite, mas antes quero partilhar o diálogo que clandestinamente cresceu na minha folha de papel durante a oficina de escrita de canções do mestre Gimba:
Aná-Fora e Ana Diplose encontram-se.

ANÁ-FORA
Ana quem?
Ana sou eu!

ANA DIPLOSE
Eu é que sou a Ana,
Ana, e mais ninguém.
Eu disse que estava cansado. Saudações.

O hipopótamo e a avestruz

Foi há dias, na hora do almoço, que a Popota apareceu a cantar Buraka. Na conversa que se seguiu, defendendo o grupo contra algo que já não interessa, disse que o kuduro, o funk carioca e o dancehall jamaicano não são assim tão diferentes, o que faz pensar que, muito provavelmente, quando se está "em vias de desenvolvimento" o desenvolvimento se faz pelo cu do povo, que, portanto, o tem de abanar sob risco de atrofia. Seja como for, a verdade é que, se este ano a Popota descobriu as ancas, a Leopoldina descobriu as mamas, o que não deixa de ser deprimente: a hipopótama pôs-se a dançar, mas a avestruz pôs silicone. Triste, muito triste.

No reino

Hoje subi e desci a Avenida (mentira, só subi). Tive de tratar de um assunto de trabalho e revelou-se a melhor opção para apanhar depois o autocarro. Por acaso, trabalho na área de entretenimento e, também por um natural e perspicaz acaso, o assunto tratou-se perto da Faculdade de Ciências Médicas, onde, a certas horas do dia, não se disfarça o cheiro acre que me entrou pela primeira vez nas narinas quando vi a autópsia de um homem que morrera atropelado e que fora desmontado e voltado a montar tantas vezes que, para o abrir, bastou puxar o fio que lhe unia o peito cortado ao meio. A vida, já se sabe, é uma merda: há por aí animais perdidos a chamar pelos filhotes mortos, há mães e pais sem censura a quem o acaso rouba as crianças para sempre. Por mais que subisse e descesse a avenida, o cheiro ficou-me entranhado outra vez. Se o quiserem reconhecer, pensem em algo proibido, cujo simples pressentimento vos faça mais próximos da perversão. No Reino de von Trier um anatomista compara o medo à intimidade com o medo aos mortos, talvez por isso mesmo: aquele cheiro diz para não estar perto dele a menos que queiramos que a morte nos invada. É um dos casos em que as narinas, e não os olhos, são a entrada para a alma.

O espectador duplo

Hoje, o actor disse na rádio que compreendera a raiz do seu novo espectáculo quando, encostado a uma parede observando, se compreendeu espectador de algo que não precisava dele para existir. A parede em causa era a de uma cozinha, onde "chefs" se ocupavam a ser "chefs". E eu pensei: quantos momentos parecidos temos na vida, daqueles em que os outros se nos colocam à frente como páginas de um livro? Bocejos numa paragem de metro. Um diário a ser escrito numa mesa de café. Gemidos numa sala de espera das urgências. Lágrimas num funeral. Pensei naquela vez em que subi uma montanha num dia claro. Tudo tão longe, tão inacessível, as dolorosas consequências do mundo não me alcançavam. Assim os Gregos pensavam a Comédia, como dizia Julian Gough: a perspectiva dos deuses, não a de quem também pode adoecer e morrer. Grande dilema: ver de longe, como um deus, ou de perto, como um homem. E, pensando bem, sempre encostado à parede.

Das Creative Commons ao Acesso Aberto

Se reparou na data deste post, não se preocupe: não sou um viajante no tempo, apenas editei a data para coincidir com o primeiro texto que escrevi sobre as licenças Creative Commons, criadas em 2002 por Lawrence Lessig, professor de Direito em Harvard.



Na época, escrevi a seguinte afirmação, que mantenho:
O sistema Creative Commons [é] interessante, porque ele dá um passo à frente naquilo que é a concepção do direito de autor: aqui, o direito serve menos para o autor se proteger do que para permitir que novo conhecimento possa ser livremente criado a partir das suas obras.
A enorme expansão de blogs que se vivia na época, e a consequente partilha de conteúdo por autores de todo o mundo, criou o “timing” perfeito para a popularização das licenças de Lessig. Com elas, os criadores podiam deixar explícitas as suas intenções para o material que partilhavam online e dar a entender ao público quais os usos que poderia dar a esse material.

Assim, Lessig não pretendia acabar com o direito de autor, mas apontar uma incongruência cruel: o direito de autor fora criado para proteger e beneficiar a comunidade criativa mas, a partir do momento em que as obras podem ser comodificadas, as empresas que adquirem os direitos da sua utilização atuam no sentido de protegerem o seu património, limitando a sua utilização e transformação e, portanto, a criação em geral.

O debate sobre o acesso aberto ao conhecimento passa por premissas bem semelhantes. A favor, temos vários argumentos:

  • Existe hoje uma apropriação corporativa e abusiva do conhecimento;
  • A população tem o direito de aceder à produção científica que é financiada, em grande parte, com dinheiro dos seus impostos;
  • O acesso aberto, rápido e generalizado ao conhecimento maximiza o seu impacto: quanto mais pessoas tiverem acesso a um trabalho académico, maior o seu potencial de repercussão, citação e influência;
  • Membros da academia – alunos, professores, pesquisadores em geral – poderão fazer trabalhos mais informados e relevantes;
  • Pessoas fora dos meios académicos com acesso ao mesmo conhecimento terão a possibilidade de aproveitar-se dele para ajudar as suas comunidades;
  • Novos tratamentos médicos podem expandir-se rapidamente, o número de descobertas simultâneas poderá aumentar e novas máquinas e tecnologias poderão ser implementadas.

Opor-se ao acesso aberto pode ter motivos bem razoáveis: o temor (financeiro e científico) de ser plagiado ou de submeter o seu trabalho a um escrutínio muito grande e eventualmente despreparado para dar críticas construtivas, além de uma certa (e não tão razoável) vaidade académica. Também é verdade que, quanto mais informação é disponibilizada, maior é a confusão: como nos guiarmos por essa Babel serpenteante e reconhecermos a informação mais relevante?

Porém, é precisamente neste espaço que a comunidade académica deve encontrar o seu lugar, servindo como filtro de validação através de mecanismos como o "peer review" ou recensões críticas, além de, claro, como a principal produtora de conhecimento. Como exemplo, diga-se apenas que foi graças à prevalência da ideia de acesso aberto que existe o software do telemóvel Android com que foram gravados os vídeos deste trabalho, o OpenOffice em que foi redigido este texto e a World Wide Web em que se publicou esse conteúdo. Afinal, como o próprio Tim Berners-Lee escreveu no primeiro website, o objetivo da World Wide Web é «to give universal access to a large universe of documents».

Se quiser ouvir um pouco mais sobre isso, é só clicar na imagem.