Ontem, hoje e amanhã

As horas estão a acabar a ouvir Gotta Serve Somebody do Dylan e a descobrir que o Lennon escreveu Serve Yourself em resposta. Sobre a mesa, tenho três livros de teatro, um copo e uma tigela, cada uma com a sua colher, muito papel e o dvd do filme do Paulo Vicente, que ele fez o favor de mo enviar. Ao meu lado, pendurado por dois pionaises no fundo do quadro de cortiça, está o poster do Taking Woodstock. Não sei muito bem porque o tenho, para além de ter sido grátis. Na outra parede, já fora do escritório, está a fotografia autografada do Bogosian. Disseram-me há semanas que eu lembrava ele, é mentira, eu gostei. Depois do McKee, achei que a minha vida precisava de um hambúrguer. Fui ao McDonald's de Roma, que por acaso fica ao lado do Londres, apanhei molha, mas comi o hambúrguer. O mobiliário está mudado, ninguém ao meu lado pediu o McRoyal Deluxe e ainda tenho de cortar as unhas contra o tempo. Amanhã vai chegar e quero unhas cortadas para não o magoar sem querer. Gotta serve somebody: serve yourself.

Conversa de Anas

Estou tão cansado que pondero cometer o acto vergonhoso de me deitar à meia-noite, mas antes quero partilhar o diálogo que clandestinamente cresceu na minha folha de papel durante a oficina de escrita de canções do mestre Gimba:
Aná-Fora e Ana Diplose encontram-se.

ANÁ-FORA
Ana quem?
Ana sou eu!

ANA DIPLOSE
Eu é que sou a Ana,
Ana, e mais ninguém.
Eu disse que estava cansado. Saudações.

O hipopótamo e a avestruz

Foi há dias, na hora do almoço, que a Popota apareceu a cantar Buraka. Na conversa que se seguiu, defendendo o grupo contra algo que já não interessa, disse que o kuduro, o funk carioca e o dancehall jamaicano não são assim tão diferentes, o que faz pensar que, muito provavelmente, quando se está "em vias de desenvolvimento" o desenvolvimento se faz pelo cu do povo, que, portanto, o tem de abanar sob risco de atrofia. Seja como for, a verdade é que, se este ano a Popota descobriu as ancas, a Leopoldina descobriu as mamas, o que não deixa de ser deprimente: a hipopótama pôs-se a dançar, mas a avestruz pôs silicone. Triste, muito triste.

No reino

Hoje subi e desci a Avenida (mentira, só subi). Tive de tratar de um assunto de trabalho e revelou-se a melhor opção para apanhar depois o autocarro. Por acaso, trabalho na área de entretenimento e, também por um natural e perspicaz acaso, o assunto tratou-se perto da Faculdade de Ciências Médicas, onde, a certas horas do dia, não se disfarça o cheiro acre que me entrou pela primeira vez nas narinas quando vi a autópsia de um homem que morrera atropelado e que fora desmontado e voltado a montar tantas vezes que, para o abrir, bastou puxar o fio que lhe unia o peito cortado ao meio. A vida, já se sabe, é uma merda: há por aí animais perdidos a chamar pelos filhotes mortos, há mães e pais sem censura a quem o acaso rouba as crianças para sempre. Por mais que subisse e descesse a avenida, o cheiro ficou-me entranhado outra vez. Se o quiserem reconhecer, pensem em algo proibido, cujo simples pressentimento vos faça mais próximos da perversão. No Reino de von Trier um anatomista compara o medo à intimidade com o medo aos mortos, talvez por isso mesmo: aquele cheiro diz para não estar perto dele a menos que queiramos que a morte nos invada. É um dos casos em que as narinas, e não os olhos, são a entrada para a alma.

O espectador duplo

Hoje, o actor disse na rádio que compreendera a raiz do seu novo espectáculo quando, encostado a uma parede observando, se compreendeu espectador de algo que não precisava dele para existir. A parede em causa era a de uma cozinha, onde "chefs" se ocupavam a ser "chefs". E eu pensei: quantos momentos parecidos temos na vida, daqueles em que os outros se nos colocam à frente como páginas de um livro? Bocejos numa paragem de metro. Um diário a ser escrito numa mesa de café. Gemidos numa sala de espera das urgências. Lágrimas num funeral. Pensei naquela vez em que subi uma montanha num dia claro. Tudo tão longe, tão inacessível, as dolorosas consequências do mundo não me alcançavam. Assim os Gregos pensavam a Comédia, como dizia Julian Gough: a perspectiva dos deuses, não a de quem também pode adoecer e morrer. Grande dilema: ver de longe, como um deus, ou de perto, como um homem. E, pensando bem, sempre encostado à parede.