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Cajón del Maipo

Imaginei dois homens se perseguindo. Um tem uma arma. O outro corre. Atravessa o rebanho de cabras. O da arma aponta, tem o outro na mira, mas um bode mal disposto ataca-o com uma bela cornada pelo flanco. O homem armado fica em mal estado, mas consegue desvencilhar-se do bode. O perseguido corre em ziguezague e espanta três cavalos na direção do armado, que apenas por uma sorte incrível não é pisoteado. Pedras se soltam do chão. Os homens escorregam. O perseguido torce o pé e cai. Finalmente, eles ficam frente a frente. Parece que não há escapatória. O perseguido resigna-se: vai morrer. O armado dá um passo em frente para se apoiar melhor. Grande erro: o chão está cheio de água, e o pé afunda-se na lama. O perseguido levanta-se a custo e foge na direção das montanhas cobertas de neve. O armado ainda dispara, mas falha. A última coisa que vê antes de perder os sentidos é um cavalo preto num galope zangado. Vem na sua direção.

Cidadão

Não sei se sabem, mas eu escrevo poesia.
Em 2009, fui finalista europeu de Poetry Slam, em Berlim. Por causa disso, fui convidado para fazer uma performance no aniversário de uma associação de cultura francesa em Lisboa.
Antes do evento, pediram-me para testar o som. Disse um poema e, assim que acabei, uma mulher aproximou-se com expressão consternada.
É que o poema (posto aqui em baixo) era uma crítica ao então presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso.
E o espaço, que fora cedido à associação, era o da sede da Comissão Europeia, da qual a mulher era funcionária.


Nesse momento, o dilema que se punha àquela mulher era básico: ser representante da Comissão numa censura a um evento que nem da Comissão era; ou não fazer nada e arriscar-se a ter problemas caso se soubesse que uma crítica a Durão Barroso fora dita naquele espaço.


A funcionária pediu-me para trocar o texto por outro, e tudo ficaria bem.
Eu disse que não ia fazer isso.
Entretanto, passa um homem de barba e terno. Era colega da mulher e parecia mais sereno. Ela explicou-lhe o que estava a acontecer e pediu-me para eu lhe mostrar o poema impresso.
O homem leu e, no final, de sobrolho franzido, disse "pois, isso, realmente, tem uns termos mais fortes...".
Pediram-me para omitir as palavras mais pesadas, e tudo ficaria bem.
De novo, eu disse que não ia fazer isso. Tinha sido convidado para fazer o meu repertório de poemas - e esse era um dos meus poemas.
Eles não ficaram muito satisfeitos e continuaram uma conversa mole, tentando que eu mudasse de ideias.
A diretora da associação percebeu o burburinho, aproximou-se e conversou com eles.
Ela argumentou que o espaço lhes tinha sido cedido para eles fazerem o seu evento. Que eu fazia parte do evento. E que o poema era uma performance minha. Portanto, eu tinha todo o direito de o dizer.
Os funcionários, contrariados, calaram-se e anuíram.


Dali a pouco, na frente de algumas dezenas de pessoas, disse o poema.
A funcionária, sentada num canto como uma vigia de escola, abanava a cabeça. A sua face ia do azul ao roxo como um termómetro prestes a explodir.
Mas fui muito aplaudido e, no final, ouvi muitos elogios do público.


Não foi Durão Barroso que quase me censurou, foram os seus burocratas. Porque é sempre assim: é sempre outra pessoa que te vai querer calar, ou bater, ou matar, em nome do respeitinho, dos bons costumes ou seja lá qual for a desculpinha barata que arranjarem para dizer que tu os incomodas.
Um amigo, com quem tinha uma banda de spoken word, também estava lá. Depois, enquanto descíamos a rua para apanhar o metro, disse-me, rindo, "o que tu fizeste foi como gritar pelo Benfica no meio do estádio de Alvalade cheio de sportinguistas".
Ele tinha razão. Mas é muito fácil falar dos direitos e liberdades individuais da boca para fora e mais difícil levantar a cabeça e dizer "não" quando é preciso. Eu não vou abdicar do meu direito por causa de conveniências.
Democracia é falar, discutir, respeitar o diferente e fazermo-nos respeitar enquanto diferentes. Não é ter medo daquilo que nos possa acontecer pelo que dizemos, fazemos ou somos.


Se Bolsonaro ganhar esta eleição, ganha a gente do medo. A gente que acha correto censurar uma peça em que uma mulher trans interpreta Jesus. Que acha que um homem nu num museu é um elogio à pedofilia. Que acha que uma exposição sobre o sexo na arte é um atentado à moral. Que acha que os seus opositores devem ir para a prisão ou para fora do país.


Mas também tenho certeza de uma coisa: Bolsonaro já perdeu esta eleição. Seja qual for o resultado das urnas, e contra a aclamação geral que ele buscava, está claro que metade dos eleitores se uniram na certeza de não quererem a sua incompetência, a sua mesquinhez e o seu ódio. Metade dos brasileiros estão dizendo que levantarão a cabeça e dirão "não" contra propostas que limitem as suas liberdades e os seus direitos, e toda a classe política já percebeu isso.


Em Lisboa, eu fui temerário e provocador. Hoje faria diferente?
A única coisa que hoje faria de diferente seria dizer o poema direto na performance, e não no teste de som.
Porque, a bem dizer, eles que se fodam.
Boa eleição a todos.







 

Cidadão
estás-te a cagar
se me chamo josé manuel barroso
presidente da comissão europeia
ou durão barroso
antigo primeiro-ministro
se mudei o nome quando mudei de profissão
porque os franceses não conseguem dizer "durão"
ou se fui revolucionário maoísta na juventude
e depois
eu não sou já esse rapaz e se o encontrasse
rir-me-ia dele
estás-te a cagar se mudei de nome
como um escritor artista ou stripper
e se mudei de pensamento
não sou mentiroso nem vendi os meus sonhos
sou um político profissional
sou josé manuel barroso
presidente da comissão europeia
e tu estás-te a cagar
num dos meus comícios
citou-se o início de um poema português
"sigamos o cherne!", disse-se
e toda a gente aplaudiu
no fim do poema ninguém sabia
o cherne é um "peixe traído"
quem o disse
não a minha mãe
não sou hamlet
quem o disse
não o meu filho
não sou césar
quem o disse
a minha mulher
ela chamou-me um peixe traído
não leão tigre ou cavalo
um peixe
traído
à tua frente
e ainda assim fui eleito
porquê
porque tu estás-te a cagar
prometi descer-te os impostos
e subi-os
disse que ia reformar
não reformei
mas abri os meus ares à CIA
com carga desconhecida para Guantamo Bay
nada de mais
uma vida tranquila
mas um dia
houve uma guerra para decidir
matar ou não matar, eis a questão
e era preciso uma ilha
porque o mar relaxa
onde querem ir Bermuda não
Bermuda soa a calção
venga Señor José Maria Aznar
please do come Sir Tony Blair
get the party goin' George W. Bush
venham aos belos Açores
é difícil lá chegar
e eu sei que gritos de manifestantes
são particularmente enervantes
enquanto se decide uma chacina
venham e comam cherne ao almoço
mas deixem-me aparecer na fotografia
como um empregado de restaurante
servindo comida aos adultos
deixem-me mostrar que também sei brincar
dêem-me uns minutos para discursar
não se vão arrepender
baterei os calcanhares e direi
as vezes que quiserem
eu vi as armas de destruição maciça
eu vi as armas de destruição maciça
eu vi as armas de destruição maciça

e tu sabes
15 meses depois a chamada chegou
durão tornou-se josé manuel
no more mister prime-minister
e tu sabes
que se entreguei portugal
à versão política de uma love doll
um homem com erecção vitalícia
foi porque isso é bom para hastear a bandeira
e tu sabes que hoje
sou o presidente da comissão europeia
e tudo bem
porque tu estás-te a cagar
e quando olho pela janela
o mundo fica escuro
e eu penso no passado
os milhões de estrelas mortas no céu
os corpos escuros debaixo do chão
e a corrente sem fim do mal esperneando no fundo da noite
faço xixi e vou para a caminha
porque devidamente tranquilamente seguramente
tu estás-te a cagar
e todos se vão esquecer.

Montale

Não me repitam que até um palito
uma migalha ou uma minúcia pode conter o todo.
Isso pensava eu quando o mundo existia,
mas o meu pensamento desvaria, agarra-se onde pode
para se dizer que não se extinguiu.

(L'Eufrate)

Nick Cave

Isto não foi um show de música. Isto foi uma liturgia. Cada canção era uma peça de teatro sobre duas personagens, o Bem e o Mal, e com dois atores: nós e ele.

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Brasil

Os tempos andam estranhos. A alegria do deserto, por um lado, o de casa, o do coração. Do outro, o trópico em transe e em sangue que lentamente se vai esboroando. A mentira, cobra que escorrega por um chão sujo e coberto de mentiras. Avança, avança, e de onde aparece esta gente que quer que a cobra morda o mundo? A azia é grande, mas não vale a pena trocar o suco por cianeto. E, entretanto, outra multidão avança, com a cabeça erguida sem medo e o som do futuro nos passos. É  como se todos fôssemos Dâmocles.

Mudanças

A branquidão oculta uma pergunta: serás capaz? Não tenho respostas para ela. Às vezes, penso que paramos de crescer nalgum momento. Outras, que somos sempre diferentes.

Tenho certeza, sim, que não acredito que as pessoas nunca mudam. Elas mudam, sim. Mas, depois, voltam a mudar, uma e outra vez, podendo voltar a ser o que eram e deixando de o ser novamente.

E eu, mudei no quê? Fui capaz antes. Sê-lo-ei hoje?

Silêncio, movimento, o teu rosto

Os silêncios falam o suficiente. Os rostos que se viram para ti e pedem as tuas palavras também não se precisam abrir: as intenções deles são claras. Se dormiste pouco, essa é a hora de acordar.

Outra lição: se está difícil transportar a coisa para o lugar onde a queres, talvez seja melhor seres tu o que se mexe e ires até ela.

E outra: nenhuma pessoa ou browser de internet têm o direito de te obrigar a olhares para o teu próprio rosto.

Terror, campanha, amanhã

Disse há dias que o terror é teimosia. Mas, vendo Profondo Rosso, há algo mais. Nele trabalha-se a cor e fala-se do dentro e do fora, do perto e do longe, da música e do silêncio. E todos são teimosos. Mas será terror?

- Terror é esta campanha, que nos mata, nos trucida, nos tortura, nos condena para sempre.

Nem tenho tido muito tempo de prestar atenção. Gosto muito do meu trabalho. Ainda bem.

- O que importa é haver trabalho.

O que importa é haver vida. Nascemos pequenas bolhas neste mundo e, enquanto fazemos aniversários, teimamos em não ir.

- A vida será terror.

Então. Talvez não. E eu nunca disse que eles são uma e a mesma coisa. Qualquer drama é herói, objetivo, dificuldades; qualquer drama é teimosia. E eu não sei se slasher - ou até gore - é terror.

- Mas isso é muito subjetivo.

Sim.

- Devias mentir.

Será culpa da geração ou do Freddy Krueger? Preciso do sobrenatural ou da sua possibilidade. A violência incomoda. A distorção do corpo pode repugnar-me. Mas não me aterrorizam.

- E amanhã?

- Amanhã...

Pior, melhor, abrigo

Nada pior do que uma estrada parada.


Nada melhor do que uma sala com amigos.

Nada pior do que chuva em frio.

Nada melhor do que jantar com amigos.

O amor está a um beijo de distância.

Animais, tempo, azul, conta

Gosto de passar na frente de açougues e de peixarias. O umami toca-me a maçã de adão (ou será o hipotálamo?). Eu não see dead people, mas eu smell dead animals.


***


O passado é presente, mas, enquanto futuro, é próximo demais. Sou adepto de parar para respirar. O ar é distância, e eu sempre prefiro as coisas de longe.


***


O que vê cada um de nós quando vê uma cor? O azul que eu vejo é o mesmo que tu vês? Se a palavra vem antes, quantas palavras cabem dentro de uma cor? Nada ou o mundo inteiro?


O Blue come forth. O Blue arise. O Blue ascend. O Blue come in.

***


O que comprova que eu moro onde moro? Uma conta. Ó malvado e consumista quadrado em que o meu xis foi marcado.

Tempo, Bernardo, Bach

Os historiadores dizem que há séculos longos e séculos curtos. Também os dias podem ser longos e curtos. O meu dia de hoje começou na noite de ontem. Poder-se-ia dizer que uma coisa é o que existe no mundo e outra o que existe nas nossas mentes. Mas dizer 'dia' é pensar naquilo que o 'dia' é. Quando, em algum momento, deixamos de pensar?


***


O passado é também presente e futuro. Às vezes, o que parecia morto e enterrado apenas o parece. Para o mal, para o bem.


(já não falo sobre dias)


***


Não, 'mandar o Bernardo às compras' não é uma gíria para transar em Portugal. 'Afiambrar', sim. 'Pinocar', com certeza. 'Refustedo', admito que mais do que uma pessoa o diga. Bernardos e compras, não.


***


O período é enervante: decisões no horizonte, facadas no estômago e tanta coisa que deveria estar segura e não está. Para este tipo de momentos, recomendo Bach. Não florais, mas suítes. Esta não é nada obscura, acompanhou-me em vários alarmes matinais e proporcionou-me um momento cotidiano de grande beleza, quando começou a tocar enquanto eu corria no Minhocão e, de repente, era como se os telhados dos prédios flutuassem sobre mim e sobre o resto da cidade.


https://www.youtube.com/watch?v=eUtCC5VPwBs

Filmes, comida, dúvida, cura

Comparado com os giallo jovens e intensos do Argento, os de Mario Bava parecem adaptações classiconas de histórias da Agatha Christie. Mas que fotografia, que direção de arte! Um Visconti do terror.


Já Um Lugar Silencioso, nhec, parece uma adaptação caladinha de Jurassic Park.

***


No restaurante, disse ao garçom que tentei uma adaptação caseira de uma sobremesa deles, mas troquei o requeijão de corte por queijo coalho e, em vez de uma chapa simples, coloquei manteiga para conseguir a casquinha crocante. Ele riu e soltou um "a gente vai inventando". Lembrei-me de Michael Pollan contar, no Cooked, que há quem opine que a humanidade não começou a cultivar cereais para comer, mas porque queria embebedar-se com cerveja. Associamos "civilização" com seres sábios e precavidos; talvez a devamos começar a associar com bêbedos epicuristas que foram inventando, sempre inventando.


***


Na rua, uma mulher contava uma história a outra. Aí ela falou 'Eu me mudei para essa casa e quem deu ela foi Deus!'. E eu falei 'Duvido!!!'.


***


Gente demais para a exposição na Pinacoteca. Fomos então passear no parque, e tirei uma foto com o Garibaldi.


https://www.instagram.com/p/BnfmcMaAdCi/?taken-by=jvnande

Depois ouvi: If you slip going under/ Slip over my shoulder/ So just pull on your face / Just pull on your feet/ And let's hit opening time/ Down on Fascination Street.

Corrida, ave, Coltrane

A vida não pára. Ou talvez ela pare, mas nós não. Feriados eram dias de festejar santos. Os santos de amanhã festejam os dias de hoje?

***

Entre dois momentos, liguei Hitchcock a um sonho e pensei no pássaro invisível que ataca as pessoas na rua.

***

O feriado acaba e, no documentário, o John Coltrane diz Obrigado, Deus.

Matéria, História, Moby Dick

Lia Moby Dick. Melville falava sobre as antigas espécies de baleias. Pensei numa hipótese comprovável só por uma conta impossível: e se a vida, ou a matéria orgânica, for como a água e nenhuma se perder? E se o número de células vivas for o mesmo desde o início dos tempos, sendo elas só distribuídas e redistribuídas entre vegetais e animais?

***

História é o conto da tensão. Interessam-lhe mais os Grandes Conflitos do que as Grandes Pazes. Enquanto os peixes do Padre António Vieira se perseguem, eles também avançam. Exceto um, que espera num consultório médico por um acompanhante obrigatório entretanto comido.
***

Também de Moby Dick: "é necessário dar-se conta (...) de que os próprios deuses nem sempre são felizes".

Meteorito, sala de roteiro, chuva

Parece que, no Museu, pouco mais se salvou do que o Meteorito do Bendegó.

https://www.instagram.com/p/BnRTb_YBpW6/?utm_source=ig_web_copy_link
Já não é vermelho e liso como o vi há seis anos. Está escuro, coberto de cinzas. Cão assustado no meio das ruínas. Mas penso que ele veio do espaço e que, há muito tempo, ele incandesceu, parou, esfriou. Hoje, assustado, continua. Cão, altivo, presente, testemunha de todo o Tempo.

***

Pouco se diz que salas de roteiro são abrigo na tempestade de horas e confusão. Talvez nem todas sejam.
***

Choveu hoje, mas não chegou para nos lavar.

(diário)

(diário)

Há uma frase que não me sai da cabeça e ainda não consegui escrevê-la. Falta de tempo ou tempo de faltas. Queria que ela saísse bem, na máquina de escrever, da qual não se perde nada. Talvez seja só falta de coragem. Sem fazer, nada se perde.

Fui ouvir o Archie Shepp no SESC Pompeia É a segunda pessoa que tocou com o John Coltrane que vi ao vivo (há seis anos vi o McCoy Tyner na República, num palco da Virada). Jazz à moda antiga, solos, comunhões, entregas, aquele que traduz uma certa forma de ser humano: estar-se acompanhado e sozinho; o esforço é de todos, mas o valor é de cada um. Isso tudo porque achei o pianista pouco inspirado. Talvez por ser o mais jovem ali, sentir-se-ia intimidado. Pena ser solista.

Em casa, apeteceu-me reouvir a Richard Pryor Addresses a Tearful Nation, do Joe Henry. Agora escuto Leonard Cohen.

Cada vez me apetece menos compartilhar coisas. Ou dizê-las. Aqui ninguém, ou quase ninguém, me escuta. Falo só para mim, um pensamento.

A frase está pronta. É tarde. Será hoje?

O que eu, homem, português e heterossexual, aprendi com Alan Ball

Lamento não andar com muita vontade de falar sobre as tropelias dos políticos no Brasil ou em Portugal. Não vejo nada de muito novo ou particularmente interessante. Além disso, ando a pensar bastante sobre a nova série do Alan Ball para a HBO, Here and Now.

A primeira razão é do mundo e do ofício. Six Feet Under (A Sete Palmos/Sete Palmos de Terra) foi a minha série preferida do início da Nova Era Dourada. Li todas as críticas contra Beleza Americana, mas continuo a achá-lo um filme lindo e uma história maravilhosamente contada.

Ver Alan Ball hoje é, de certa forma, ver o anti-Netflix. Here and Now não tem um gancho incrível como as séries da plataforma. "Um rapaz começa a alucinar com o número 11:11 e isso tem implicações para toda a sua família" não é uma premissa high-concept como "um político capaz de tudo para se tornar presidente dos EUA" ou "Really dark Amblin".

Porém, onde cada vez mais séries do Netflix falham - no desenvolvimento da premissa sonante - é onde Alan Ball brilha. As personagens são cheias de contradições, defeitos e, por isso, profundamente humanas. A família, núcleo da série, evolui ou regride como um grupo em que cada um cumpre uma função. Já não temos homens difíceis, temos pessoas difíceis. É difícil recomendar uma série de Alan Ball para um amigo, porque humano é um conceito difícil de recomendar - embora seja ótimo para assistir.

A segunda razão é minha. Here and Now lembra-me de assistir Six Feet Under com 20 e poucos anos e de pensar, por exemplo, que nunca vira uma série com personagens usando drogas sem ter moralismos atrelados. E lembra-me também que, assistindo-a, me tornei uma pessoa melhor.

Explico-me. Cresci numa vila pequena, num Portugal pequeno. Felizmente, fui educado bem o suficiente para reconhecer e matar na base a maioria dos preconceitos que vinham com a cultura em geral (obrigado, família; obrigado, professores). Por isso, nunca achei que afetos íntimos ou públicos fossem coisa a ser ditada por terceiros.

Ainda assim, raramente eu vira dois homens beijarem-se na rua. Não na minha terra, pouco no meu país. E, no íntimo, bem no íntimo, a imagem causava-me estranheza. Não reprovação ou incômodo, reparem, mas era algo que me suscitava reflexões silenciosas e condescendentes, ao estilo "que bom que estas pessoas se estão amando livremente, olha que gesto de coragem, muito bem!".

Eu não gostava disso, porque - eu sabia - enquanto não sentimos algo como banal, não conseguimos senti-lo por inteiro como normal. O normal tem que ser um pouco banal.

Six Feet Under tinha sexo. Muito sexo. Heterossexual, homossexual, entre adultos, jovens adultos, velhos adultos, dentro de relacionamentos, fora de relacionamentos, à missionário ou com fetiches. Como as drogas, o sexo não era apresentado com moralismo; era mostrado assim como ele é, como algo que acontece.

No primeiro episódio, ver David beijar Keith fazia-me pensar "que afirmação, que autor corajoso, muito bem!". No último, David apenas beijava Keith, e nada mais. Lembrei-me disso aqui no Brasil quando a novela mostrou o primeiro beijo gay e todo mundo aplaudiu (mesmo; escutei na minha vizinhança). Gostaria que chegasse o dia em que já se viram tantos que nem dá vontade de aplaudir.

Acho que, para assistir Alan Ball, é preciso gostar de pessoas. Eu gosto de pessoas. Graças a ele, pude gostar um pouco mais de mim também.

A última refeição de Anthony Bourdain

Acordei no dia de folga com a notícia de que Bourdain tinha morrido. Os meus grupos de trabalho no Whatsapp estavam cheios de lamentos, talvez porque qualquer pessoa que faz programas de gastronomia hoje em dia sabe que, em grande parte, devemos o nosso sustento a ele. No nosso caso, que fazemos a versão brasileira do programa The Taste, em que ele foi jurado, a conexão é mais forte ainda.

Daqui a uns anos, vai ser difícil explicar o que Bourdain fazia ou porque ele era famoso. Ele não era conhecido por ser um grande chef; quando ainda trabalhava em cozinhas profissionais, a sua especialidade era salvar lugares que estavam prestes a fechar ou, então, ajudar a fechá-los de uma vez por todas. Ele também não era exatamente um crítico de gastronomia, apesar de ter comido e divulgado a comida de dezenas de países.

É difícil explicar o que Bourdain fazia porque, de certa forma, ele inventou o que ele fazia. Desde que publicou o artigo Don't Eat Before Reading This, que depois transformaria no seu primeiro grande livro, Cozinha Confidencial,  ele foi um cronista gastronômico. Começou falando sobre o que acontecia dentro das cozinhas de restaurantes e rapidamente evoluiu para um divulgador da comida como espelho fiel do lugar onde ela acontece, do povo que a produz, da sua cultura, política e economia. Desde a nouvelle cuisine que conhecemos a importância do terroir, mas Bourdain expandiu e divulgou essa ideia, ao ponto de hoje sabermos que comer num lugar que visitamos significa, não só matar a fome, mas principalmente experimentar esse lugar através do paladar.

Bourdain suicidou-se enquanto visitava a França. É triste e é simbólico também. A sua carreira e vida gastronômicas sempre estiveram ligadas ao país. A sua família é de origem francesa, ele ficou popular quando comandava a brasserie Les Halles, em Nova Iorque, e foi também o país onde ele teve a experiência que começou a sua relação com comida, quando, ainda criança, acompanhou a família numa pescaria de ostras. Como ele relata em Cozinha Confidencial:
O senhor Saint-Jour, como que querendo desafiar os seus passageiros americanos, perguntou, com o seu forte sotaque da Gironda, se algum de nós queria experimentar uma ostra.
Os meus pais hesitaram. Duvido que eles tivessem pensado comer uma das coisas cruas e viscosas sobre as quais flutuávamos. O meu irmão mais novo recuou, horrorizado.
Mas, no momento mais orgulhoso da minha jovem vida, eu me levantei, sorrindo, desafiador, e me voluntariei para ser o primeiro.
E, nesse inesquecível e doce momento da minha história, que ainda é mais vivo para mim do que tantos outros "primeiros momentos" que se seguiram - primeira buceta, primeiro baseado, primeiro dia no colégio, primeiro livro publicado, tantas coisas - eu conquistei a glória. O senhor Saint-Jour fez-me ir até à amurada, onde ele se inclinou e debruçou até que a sua cabeça quase desaparecesse por baixo de água, e emergiu segurando, no seu pulso bruto e em forma de garra, uma única ostra, coberta de lodo, enorme e irregular.
(...)
Eu segurei-a, inclinei a concha na minha boca como me instruíra o agora radiante senhor Saint-Jour, e, com uma mordida e uma sorvida, engoli-a. Tinha sabor de água do mar... de salmoura e carne viva... e, de alguma forma, de futuro.
Tudo era diferente agora. Tudo.
Eu não tinha só sobrevivido - eu tinha apreciado.
Esta, eu sabia, era a magia da qual, até agora, só tinha uma noção vaga e despeitosa. Estava viciado. Os arrepios dos meus pais e a expressão de repulsa e surpresa ilimitadas do meu irmão só reforçaram a noção de que, de alguma forma, eu me tornara um homem. Tivera uma aventura, provado o fruto proibido, e tudo o que se seguiria na minha vida - a comida, a corrida longa e tantas vezes estúpida e autodestrutiva pela próxima coisa grande, fosse drogas, sexo ou qualquer outra nova sensação - teria a sua raiz nesse momento.

Hoje eu penso em Bourdain. Pergunto-me qual terá sido a sua última refeição e se ele lembrou dessa ostra primordial momentos antes do fim. Amanhã eu vou acordar e seguir para o estúdio, para fazer um programa sobre comida. Também por isso, obrigado a ele.

Pequenas derrotas

Há uns anos, dei um par de cursos de iniciação à fotografia.
Tentava preparar-me bem e sempre evitei prometer mais do que poderia oferecer.
Ontem sonhei que estava a dar um intensivão desse mesmo curso, começando na manhã de um sábado e terminando na noite do domingo.
Porém, fora pego de surpresa e não preparara nada.
Tinha pela frente meia dúzia de alunos entediados e com as taxas de admissão pagas.
Um deles, mais velho, tinha aquela cara bem brasileira de quem pensa "que absurdo!".
Desesperado, achei no computador a pasta com as fotos que acompanhavam a introdução, mas não as conseguia ordenar com coerência.
Ao contrário do que fizera no passado, não estava a oferecer o que tinha sido prometido.
Comecei a dispensar os alunos mais cedo para eles almoçarem e eu ganhar tempo.

Não me perguntem como, mas cada vez mais eu sonho sabendo que sonho, como se estivesse vendo um filme que consigo mais ou menos controlar.
Tentei então tomar conta do sonho.
Pensei Vamos, isto tem de acabar bem; faz um PPT com essas fotos logo, bora!
Às vezes funciona, mas não desta vez: os alunos voltaram, mas, vendo que a minha atrapalhação continuava, saíram da sala, certamente para pedir o seu dinheiro de volta.
Havia pessoas do outro lado do pátio dizendo Olha, parece que o Jorge não se deu bem.
Derrotado para mim e para os outros, fiz um esforço mental para encerrar esse sonho chato e voltei ao adorável e escuro silêncio.
***

Comprei a cama sob a qual sonhei há mais ou menos um ano.
Quando chegou, vi que as instruções recomendavam virar o colchão, o lado de baixo para cima, a cada dois meses.
Porém,  a Cyntia sempre reclamou que um dos lados era diferente e sentia que não nos deveríamos deitar nele.
Ontem à noite, decidi que iria resolver essa dúvida.
Vasculhei o dossier onde guardo manuais de instruções (sim, eu faço isso) e achei as da cama, que, sinceramente, pensava perdidas.
Eu tinha razão: a indicação para virar o colchão estava lá.
Eu só não tinha reparado que havia uma especificação por baixo: "não vire o seu colchão se ele for das linhas X, Y e Z".
Pesquisei os e-mails da compra, mas nada de encontrar o nome da linha.
Hoje à tarde, a Cyntia perguntou se eu não queria abrir a capa protetora do colchão e ver se a linha estaria descrita na etiqueta.
Fizemos isso mesmo e lá estava: "linha Z".
O cuidado que tive durante um ano fora, afinal, desnecessário e precipitado.
***

A moral da história é: se não pudermos passar sem derrotas, pelo menos que sejam pequenas.