Marighella (2019)

O filme proibido pelo bolsonarismo é bem feito, mas não é perfeito. O Wagner Moura está firme na direção, orienta um elenco seguro e monta uns planos-sequência de arrepiar. Marighella parece colocar-se como um registro para a posteridade da vida e luta armada do político inimigo da ditadura e, por isso, talvez o Che de Steven Soderbergh seja uma boa obra a partir do qual pensá-lo. Como Soderbergh, Moura acerta ao evitar o tom hagiográfico — Marighella é mostrado, não reverenciado — mas enquanto os filmes sobre o argentino* cubano apostavam na solidez histórica (o próprio filme era o ato militante), Moura parece hesitar entre os fatos e o apelo à revolta e à indignação. Com isso, ele acaba por perder força dos dois lados: Marighella é um filme histórico, denso e relativamente longo, sem o sentido de urgência que faria toda a gente querer derrubar o governo depois de vê-lo, mas também com pormenores que o distanciam do fato concreto e nos deixam muitas vezes a perguntarmo-nos se aquilo que vemos aconteceu realmente. Um desses pormenores que me irritou particularmente é o fato de, em geral, as personagens não terem o nome das figuras históricas: o delegado Sérgio Fleury cometeu atrocidades suficientes durante a sua vida para ser reconhecido como algoz da ditadura, não mascarado atrás do nome "Lúcio". Não se pediria para Moura fazer um documentário, claro. O problema é que ele deixa-nos na dúvida, e isso diminui a relevância e o poder de ataque do seu filme, que deixa de ser um acerto de contas com a História e se transforma numa espécie de fábula.
Além disso, a personagem principal perde vapor pelo meio e a força trágica da sua história esvai-se. As cenas deixam de ser impulsionadas pelas ações de Marighella e ele acaba por tornar-se um espectador das ações dos outros. Ao mesmo tempo que isto enfraquece o filme, não deixa de ser uma metáfora perfeita do Brasil atual. Como Marighella, o brasileiro hoje sente-se perdido e acuado, sem saber muito bem o que fazer para escapar ao conformismo odioso que o cerca. Às vezes, a única solução possível parece ser desaparecer e esperar que outros continuem a luta. Isto é bonito, mas não encoraja a resistência — e era isso que se esperava mais deste filme.

O que vi em Abril

Parks and Recreation (2009-2020). Acho que, ao longo dos anos, já tinha visto e revisto temporada e meia de Parks and Recreation. Nunca avançara, porque não me prendia: a série era engraçada, mas faltava alguma coisa no balanço das personagens que me deixasse mais envolvido. Porém, um destes dias, num vídeo do canal de YouTube Entertain The Elk, ouvi algo que me deixou intrigado: que a série engrena de verdade quando Rob Lowe e Adam Scott entram. Retomei-a a partir de onde a deixara e realmente o Elk tinha razão. Não é só por causa dessas personagens propriamente ditas, mas por parecer que é nesse preciso momento que a série entende o seu tom e abandona completamente a acidez e a ironia, concentrando-se naquilo que realmente traz de original: a amizade e o afeto real entre colegas de trabalho, o que parece combinar com o ambiente real da gravação que se percebe nos vídeos de "bloopers" disponíveis por aí. Parks and Recreation é sobre o encontro de pessoas que gostam umas das outras e, ao mesmo tempo, uma elegia do servidor público dedicado que realmente quer melhorar a vida da sua comunidade. Por isso, o episódio especial de 2020, em que o elenco retoma as personagens para passar orientações sobre o Covid-19, faz todo o sentido. Há um grande mérito em fazer uma boa comédia sobre valores positivos: Parks and Recreation é realmente muito especial.

Groundhog Day (1993). Vi-o pela enésima vez e, como no primeiro dia, maravilhei-me com este roteiro perfeito que se encerra em si mesmo e os pormenores meio esquecidos que ressurgem com nova força. É como se, em parte, o filme fosse sempre novo.

Stranger Than Fiction (2006). Não sabia como ele teria resistido ao avanço do templo. Porém, resistiu muito bem e continua um ocupante brilhante desse território perigoso entre a comédia, o drama e a metanarrativa. A versatilidade de Will Ferrell é quase assustadora.

Happy-Go-Lucky (2008). Quando o vi pela primeira vez, há dez anos ou mais, pareceu-me um filme menor do Mike Leigh com um elenco muito bom. Hoje, mudei um pouco de opinião. O papel de Poppy é complexo e cheio de sutilezas, mas também traiçoeiro para quem não estiverer disposto a entendê-lo por inteiro. Uma atriz menos boa poderia tê-lo arruinado, mas Sally Hawkins é grandiosa nele, e é precisamente porque o filme escolhe centrar-se nela que ele cresce acima da média.

Quo Vadis, Aida? (2020). Diz-se que Pedro fugiu de Roma e encontrou Jesus ressuscitado. Pedro perguntou "quo vadis?", ou seja, "aonde vais?". Jesus respondeu "vou para Roma para ser crucificado outra vez". Então, Pedro voltou para Roma, onde foi capturado e crucificado de cabeça para baixo. Como Pedro, Aida regressa e enfrenta o pior que o mundo depois duma guerra civil tem a oferecer. É um martírio, mas talvez também a forma de ela se apropriar da História.

Shiva Baby (2020). Há tempos, revi vários filmes do início da carreira do Godard e percebi que aquelas obras-primas são invariavelmente pequenas (poucas locações, poucos meios, poucos atores) e curtas. Não só isso, como essas características dão-lhes força, como se cada uma fosse uma pequena bofetada de Cinema. Shiva Baby é assim. É bem interpretado, bem escrito, bem dirigido Com 77 minutos, é menor do que dois episódios de uma série dramática. Porém, esses 77 minutos são suficientes para ele contar a sua história e propor a sua estética. Será o início de uma tendência, o cinema indie do pós-pandemia a assumir que, numa época de streaming e binge-watching, não precisa alongar-se no tempo para ser memorável? Veremos.

Sinister (2012). Já vi filmes de terror piores, mas o final abrupto deixa a sensação que lhe falta um ato. Vale muito pelo Ethan Hawke, que praticamente carrega o filme nas costas.

Sasquatch (2021). Quando os créditos iniciais começaram a aparecer, pensei "um documentário sobre o Pé Grande produzido pelos Duplass? O que é isto?". Mais interessante do que fascinante, mas, ainda assim, um bom "true crime", que intriga o espectador tanto com o crime quanto com aquilo sobre que a série realmente é.

Black Bear (2020). Poderia ter o subtítulo "Polanski e Cassavetes através do mumblecore". Bom papel da Aubrey Plaza.

Eve’s Bayou (1997). Não é normal ver um filme sobre personagens "cajun", ainda incluindo parte substancial de diálogo falado no dialeto próprio. É um filme sensível, elementar, com aquele tom e ritmo do "southern gothic" que revela o misticismo do cotidiano e as pulsões partilhadas entre natureza e pessoas. Um belo achado.

Shrill (2019- ). Esta série da Hulu consegue o feito de ser muito engraçada sem precisar entrar no disparate e de ser muito humana sem ser "dramedy. Fala sem clichês sobre ser mulher, ser gorda e ser jovem, com personagens que erram constantemente e parecem tão perdidos na idade adulta quanto qualquer pessoa. Assisti-la é um privilégio.

C'eravamo tanto amati (1974). Tem cheiro de cinema novo influenciado pela Nouvelle Vague francesa, mas, ao mesmo tempo, presta homenagem ao neorrealismo italiano em geral e a De Sica em particular (o estilo nas sequências a preto e branco não difere apenas na cor) e, mais, não deixa de ser uma comédia bem italiana, com figuras "larger than life", conflitos familiares, casamentos desavindos e amigos que discutem e brigam. Uma maravilha.

Cinema Paradiso (1988). Revi-o na Sexta-feira Santa, curiosamente o único dia que Alfredo, o projecionista, tinha de férias durante o ano. Já o vi muitas, muitas vezes. Desta vez, como sempre, chorei um rio de lágrimas.

Os Oscars: os nomeados e algumas previsões

Ao contrário do que é costume, vi vários filmes nomeados ao Oscar deste ano, cuja cerimónia será amanhã. Isto foi o que eu escrevi sobre eles ao longo destes meses. No final, do texto, coloco alguns desejos e previsões. As imagens são daqui.

The Father: Lembrou-me muito o episódio "The Queen" da série Castle Rock e, mais curiosamente, o filme La Moustache (2005), em que Emmanuel Carrère fala sobre conjugalidade e consciência usando ferramentas narrativas muito parecidas com as que Florian Zeller utiliza para conseguir que o espectador entre na história através da demência da personagem principal. Comovente, doloroso e com um elenco incrível, principalmente o gigantesco Anthony Hopkins.

Minari: Não é incrível, mas também não tenta ser. É um filme bonito, sensível e que emocionará muitas famílias de emigrantes. Está ótimo.

NomadlandÉ curioso como, aqui e também no seu filme anterior, The Rider, Chloé Zhao olha para os EUA de uma forma que é, ao mesmo tempo, estrangeira e extremamente americana. Esta é a América dos grandes espaços, dos territórios livres que parecem disponíveis para serem ocupados, mas também a América onde o sentido das vidas é uma interrogação permanente e o famoso "sonho" já não é mais do que uma recordação distante. Na obra da diretora de origem chinesa, a ficção e a realidade também parecem territórios concomitantes, sempre prestes a entrarem um pelo outro, e aqui isso traduz-se em nómadas verdadeiros que se interpretam a si mesmos e que, nas cenas de conversas, raramente aparecem no mesmo plano que Frances McDormand. Isso não é um mero pormenor de estilo: tal como a protagonista atravessa a terra sem nunca criar raízes (apesar de, ironicamente, ela se chamar "Fern", como a planta), a ficção aqui passeia pelo mundo real, alimentando-se da sua contemplação ao mesmo tempo que não o ocupa ou apaga. É um filme vagaroso e sensível, mas nunca inocente, sobre pessoas que em algum momento se feriram e seguiram em frente porque não há muito mais a fazer.

Judas and the Black Messiah: Não é um filme espetacular, porque o espetáculo não lhe interessa. A história de Fred Hampton é a história de um dos maiores crimes que o governo dos EUA já perpetrou contra um dos seus cidadãos e ele merecia um filme à altura do que Spike Lee fez para Malcom X. Finalmente conseguiu-o.

Mank: Muitas pessoas não gostam de Citizen Kane porque lhes disseram que deviam gostar e acabaram por ficar de pé atrás. Ver ou gostar de Citizen Kane não é pré-requisito para gostar de Mank, mas pelo menos conhecê-lo ajuda. O novo filme de David Fincher é como a segunda fala de uma conversa. É uma resposta ao filme de Welles e ao cinema clássico americano que às vezes é homenagem (a mistura de áudio, com todos os canais centralizados, e a edição tensa marcada por diálogos rápidos emulam os filmes da época) e outras crítica, mas, na maior parte do tempo, prefere mostrar que o passado ainda nos acompanha no presente, num pernicioso eterno retorno. Além disso, é uma espécie de homenagem de Fincher ao pai Jack, que lhe escreveu o filme e morreu antes que o filho conseguisse fazê-lo. É um feito cinematográfico extraordinário e arriscaria dizer que é um dos melhores filmes da década.

Promising Young Woman: Depois de I Care a Lot, mais uma bela e inesperada junção de comédia e thriller. Carey Mulligan está ótima, tanto no filme quanto na sua carreira: ela traz para as suas personagens peso e profundidade, compondo-as de forma silenciosa e refinada. O melhor filme de vingança que vi desde Blue Ruin (2013).

Sound of Metal: É possível que Riz Ahmed seja um dos melhores atores da sua geração. A sua entrega ao papel só rivaliza com o outro grande protagonista deste filme: o som, claro, tão intensamente desenhado que até dá pena que a grande maioria dos espectadores deste filme o tenhamos visto em casa e ouvido em colunas roufenhas. 

The Trial of the Chicago 7: Gosto muito do Aaron Sorkin e, mesmo que não gostasse, um filme de tribunal escrito e realizado pelo homem que escreveu a frase "you can't handle the truth" é sempre de saudar. Nos seus "biopics", ele nunca foi um maníaco pela fidelidade às datas, por isso não vale a pena entrar na onda da verificação histórica. De resto, Sorkin entrega aquilo a que nos habituou: um bando de ótimos atores a interpretar personagens carismáticas com excelentes diálogos no contexto duma história política muito bem contada. Porém, tenho que dizer que o final me pareceu precipitado e sentimentalista, bem aquém do resto do filme.

Druk: É um filme centrado no conceito da perda em mais do que um sentido: é a perda de quem chega à meia idade sem perspectivas, mas também a do próprio realizador Thomas Vinterberg, cuja filha morreu num acidente no início da gravação. Isso tudo parece resultar em personagens e numa obra em estado de vertigem, que, na maior parte do tempo, parece arrastar-nos com ela numa queda livre sem que saibamos onde e quando vamos cair. A ambiguidade do seu final é marcante e talvez seja mesmo inevitável. 

Ma Rainey’s Black Bottom: A Viola Davis é um gigante e o Chadwick Boseman era outro. Belo, belo filme.

The United States vs. Billie Holiday: Tem menos foco do que a câmera embaçada do meu celular e as personagens parecem tão perdidas quanto o filme. Andra Day impressiona, mas parece que a vemos mais do que à personagem que interpreta.

Soul: O último da Pixar tem tanto de divertido quanto de comovente e ensina duas lições importantes: os adultos devem aproveitar mais a vida e as crianças devem aprender a gostar de jazz. 

Eurovision Song Contest: É claro que, sendo europeu, a minha memória afetiva da Eurovisão é tão grande e irrazoável quanto a que um brasileiro tem de carne louca. A Eurovisão é um lugar estranho: todos sabemos que aquilo é piroso e o espetáculo mais artificial que pode haver, mas, em algum momento, todos entramos numa discussão sobre qual deve ser a canção escolhida. Há algo de muito comunitário nesse ritual, e o filme soube captar isso muito bem, talvez porque o Will Ferrell, ao que parece, tem esposa sueca e acompanha o festival há anos. As aparições de verdadeiros vencedores da Eurovisão (incluindo o Salvador Sobral) devem ser lidas por aí. O filme é uma homenagem simpática a este universo, com purpurina, luzes, cores e a exaltação das emoções desbragadas. Mais do que rir, faz-nos sorrir — mas sorrimos muito.

Two Distant Strangers: Intenso, militante e bem interessante. O formato de curta fá-lo sofrer um pouco: a personagem do polícia merecia mais desenvolvimento.

Colectiv: Jornalistas perseguidos, um sistema de saúde colapsado, corrupção enraizada em todos os setores da sociedade e uma balada que pegou fogo matando dezenas. Se não fosse o ministro da Saúde que realmente tenta ajudar as pessoas, poderíamos pensar que é o Brasil.

El Agente Topo: Um documentário chileno sobre um idoso que é contratado por um detetive particular para se internar numa casa de repouso e investigar se ela maltrata os seus residentes. Tem tanto de divertido quanto de emocionante.

My Octopus Teacher: Em Grizzly Man, Herzog soltou uma frase que nunca mais esqueci: "o denominador comum no universo não é harmonia, mas caos, hostilidade e assassinato". Este filme é uma memória suave de que a vida neste mundo é cruel e rápida — e que talvez essa seja a razão para procurarmos a beleza e o amor enquanto aqui estamos.

Time: Na Amazon. A plasticidade deste documentário é tão grande, aquele olhar a preto e branco tão maravilhoso, que não poucas vezes dei por mim a pensar que o tema - o encarceramento da população negra enquanto instrumento de repressão e os seus duros reflexos sociais e pessoais - não deveria ser tratado desta forma. De qualquer forma, filme forte e recomendável.

Tenet: Sempre gostei bastante de Christopher Nolan, mesmo sabendo que muita gente o considera irritante e pretensioso. Justo. Cada um gosta do que gosta. Porém, diria duas coisas sobre Tenet. Primeiro, que metade das coisas que se barafustaram sobre ele não teriam sido barafustadas se Nolan não tivesse feito Inception há dez anos. Segundo, que Nolan cumpre aquilo que se espera dele no seu melhor: criar um jogo de engodos com o seu espectador. Sim, Tenet é um filme de espionagem mascarado de ficção científica. E daí?

Não faço a mínima ideia do estado de espírito dos membros da Academia e do lado para que o voto lhes terá ido, o que sempre dá surpresas (às vezes boas: Parasite é um exemplo).  No geral, este ano os nomeados são bons: os prêmios serão bem entregues. De qualquer forma, aqui seguem os filmes que eu acredito que vencerão e também aqueles que eu preferia que vencessem.

MELHOR FILME
Queria que ganhasse: Promising Young Woman
Acho que vai ganhar: Nomadland (vencedor)

MELHOR DIREÇÃO
Queria que ganhasse: Thomas Vinterberg, Druk, ou David Fincher, Mank
Acho que vai ganhar: Chloé Zhao, Nomadland (vencedora)

MELHOR ATOR
Queria que ganhasse: Anthony Hopkins, The Father (vencedor)
Acho que vai ganhar: Chadwick Boseman,  Ma Rainey's Black Bottom 

MELHOR ATRIZ
Queria que ganhasse: Carey Mulligan, Promising Young Woman
Acho que vai ganhar: Frances McDormand, Nomadland (vencedora)

MELHOR ATOR COADJUVANTE
Queria que ganhasse: Daniel Kaluuya, Judas and the Black Messiah (vencedor)
Acho que vai ganhar: Daniel Kaluuya, Judas and the Black Messiah

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE
Queria que ganhasse: Olivia Colman, The Father
Acho que vai ganhar: Olivia Colman, The Father
Vencedora: Yuh-Jung Youn, Minari

MELHOR ROTEIRO ADAPTADO
Queria que ganhasse: The Father (vencedor)
Acho que vai ganhar: The Father

MELHOR ROTEIRO ORIGINAL
Queria que ganhasse: Promising Young Woman (vencedor)
Acho que vai ganhar: Judas and the Black Messiah

MELHOR ANIMAÇÃO
Acho que vai ganhar: Soul (vencedor)

MELHOR DOCUMENTÁRIO
Queria que ganhasse: Colectiv
Acho que vai ganhar: Crip Camp
Vencedor: My Octopus Teacher

MELHOR FILME INTERNACIONAL
Queria que ganhasse: Druk (vencedor)
Acho que vai ganhar: Druk

MELHOR FOTOGRAFIA
Queria que ganhasse: Mank (vencedor)
Acho que vai ganhar: Nomadland

MELHOR MONTAGEM
Queria que ganhasse: The Father
Acho que vai ganhar: The Father
Vencedor: The Sound of Metal

MELHOR TRILHA SONORA ORIGINAL
Acho que vai ganhar: Soul (vencedor)

MELHOR CANÇÃO ORIGINAL
Queria que ganhasse: “Husavik”, Eurovision Song Contest: The Story of Fire Saga
Vencedor: "Fight for You", Judas and the Black Messiah

MELHOR SOM
Queria que ganhasse: The Sound of Metal (vencedor)
Acho que vai ganhar: The Sound of Metal

MELHOR FIGURINO
Queria que ganhasse: Ma Rainey's Black Bottom (vencedor)
Acho que vai ganhar: Ma Rainey's Black Bottom

MELHOR CABELO E MAQUIAGEM
Queria que ganhasse: Mank
Acho que vai ganhar: Ma Rainey's Black Bottom (vencedor)

MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO
Queria que ganhasse: Mank (vencedor)
Acho que vai ganhar: Ma Rainey's Black Bottom

Them (2021- )

Alguns momentos de Them, a nova série da Amazon Prime, parecem desenhados com traços grossos e um pouco de clichê. Não consigo ver mais pontos fracos nela, até porque, ao mesmo tempo, ela vem carregada de simbolismos e sutilezas. É uma revelação do "americana" como território de demónios e violência e do racismo estrutural como condenação física e psicológica que impõe limites aos corpos e máculas aos espíritos. Homenageia a família (principalmente a Mãe) como núcleo fundamental de resistência, faz um paralelismo brilhante entre a protagonista e a vilã — um papel tão bom da Alison Pill que merece todos os prémios do mundo — e usa a música de forma certeira e cheia de significado. 

Them não é "torture porn". Ela angustia mais com a representação da injustiça do que com a da tortura física. "Injustice porn", talvez? Ela é claramente influenciada por The Terror, por American Horror Story, por The Twilight Zone (a vizinhança poderia ser a mesma do episódio The Monsters Are Due on Maple Street) e pelas obras de Jordan Peele, que venceu a História e levou o negro ao lugar de protagonista de Terror.* Porém, ela também é a série que Lovecraft County queria ser e não foi, a série que AHS já não é há muito tempo. Ela prende-nos, leva-nos para o seu mundo e dá vontade de ver todos os episódios de enfiada. Recomendo muito.

* Ver o excelente documentário Horror Noire para saber mais, incluindo a construção histórica do Negro como antagonista no género.

O que vi em Março

The Return of the Living Dead (1985). George Romero que me perdoe, mas, depois de Night of the Living Dead, este é o melhor filme de zombies de sempre!

Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava (2017). Na Netflix. Não é tanto uma história da pornochanchada quanto um ensaio visual sobre o gênero, o Brasil e a ditadura que é construído com a matéria-prima dos filmes originais. Interessante e muito divertido.

Phantom of the Paradise (1974). Às vezes é paródia, outras é homenagem. Tem Fantasma da Ópera, Fausto, o reflexo de Hoffmann, Psycho de Hitchcock. É uma ópera rock, mas também é uma ópera rock sobre uma ópera rock. Barroco, desequilibrado e muuuuito divertido.

Visages, villages (2017). Mais do que um filme de Varda, é um filme que a celebra, e isso está muito bem. Pelos seus filmes e pelo que era, Varda merece ser celebrada. Viva Varda!

Colectiv (2019). Jornalistas perseguidos, um sistema de saúde colapsado, corrupção enraizada em todos os setores da sociedade e uma balada que pegou fogo matando dezenas. Se não fosse o ministro da Saúde que realmente tenta ajudar as pessoas, poderíamos pensar que é o Brasil.

Riot in Cell Block 11 (1954). Don Siegel. Energia. Ondas de tensão e alívio. Multidões.

Gomorra (2008). O crime que encontramos na vida real não é bonito ou glamoroso, como em The Godfather e Scarface. Ele é sujo, pobre, confuso, filho do caos e da necessidade. Nas décadas entre Ladrões de Bicicletas e Gomorra, a esperança acabou.

Dick Johnson Is Dead (2020). Dores e alegrias muito humanas aqui. Acho raro um documentário sobre a esfera pessoal de quem o faz ser simultaneamente tão engraçado e tão comovente, sem pesar para o confessional, para a autocomiseração ou para a sátira azeda. Kirsten Johnson soube fazer um filme doce sobre a morte, e o mais extraordinário é que ele próprio parece ser parte fundamental da sua estratégia para lidar com os tempos difíceis.

Ma Rainey’s Black Bottom (2020). A Viola Davis é um gigante e o Chadwick Boseman era outro. Belo, belo filme.

Broadcast News (1987). Gosto muito desse filme, mas já há muitos anos que não o via. O mais incrível dos filmes do James L. Brooks é sua capacidade para revelar toda a humanidade das suas personagens, independentemente do contexto em que ele escolhe colocá-las. Sim, é uma história sobre jornalistas, mas não exatamente sobre jornalismo, tal como As Good As It Gets, por exemplo, é uma história sobre um escritor e não necessariamente sobre escrita. O que vemos aqui são pessoas a relacionarem-se, às vezes sendo boas, outras vezes não tão boas, às vezes revelando as suas qualidades e, outras vezes, os seus defeitos. Ótimas personagens, portanto. Uma coisa que a maturidade me levou a apreciar mais: os maneirismos sutis e tortuosos do incrível Albert Brooks.

Butt Boy (2019). Depois do primeiro exame de próstata, um homem descobre uma compulsão irresistível e começa a enfiar no ânus tudo o que lhe aparece pela frente. É trash, mas menos comédia do que a premissa dá a entender, entrando pelo domínio da fantasia e da ação. Para mim, sofre de um problema estrutural: a primeira meia hora é tão competente a surpreender-nos que, quando a história pousa, parte da sua força se esgota. É como se o filme tivesse um início bom demais. Porém, achei admirável que prefira apostar mais na narrativa e nas personagens e menos em deixar explícita a exploração das regiões mais recônditas da humanidade.

Kraftidioten ("In Order of Disappearance", 2014). Não tem investigação policial, um protagonista problemático ou peso narrativo das divisões sociais, como se vê muito em "nordic noir". A história é simples: um homem decide vingar a morte do filho. Descobrimos rapidamente quem matou e por quê, e resta-nos então acompanhar o percurso das personagens. É um filme de gangsters construído com solenidade, nada espetacularizado. Não vi o remake americano de 2019, mas não me surpreendeu nada quando vi que ele era protagonizado por Liam Neeson, homem com um "very particular set of skills". Até adivinho o tratamento que Hollywood deu a isto.

Promising Young Woman (2020). Depois de I Care a Lot, mais uma bela e inesperada junção de comédia e thriller. Carey Mulligan está ótima, tanto no filme quanto na sua carreira: ela traz para as suas personagens peso e profundidade, compondo-as de forma silenciosa e refinada. O melhor filme de vingança que vi desde Blue Ruin (2013).

Almost Famous (2000). Revi pela primeira vez desde a estreia. Lembro-me que, na época, o achei um bom filme, mas não a obra-prima que as críticas entusiasmadas faziam crer. Mantenho a opinião, mas reparo que continua a funcionar muito bem 21 anos depois, e isso não é coisa pouca.

Coming 2 America (2021). O maior problema deste filme é que ele tenta contar duas histórias ao mesmo tempo sem conseguir decidir qual delas é a principal. Por um lado, temos a história de Akeem, agora rei, que se encontra numa crise de meia-idade e é confrontado com um dilema (a solução para problemas políticos pode perigar a estabilidade da sua família). Do outro lado, está o arco de Lavelle, o seu filho recém-descoberto, que tem que decidir se quer ser um príncipe africano ou um rapaz simples do Queens. A falta de decisão sobre qual é a história principal torna o filme confuso, e ele tenta resolver isso colocando-se num espaço de nostalgia, aludindo constantemente ao filme de 1989 dirigido por John Landis. Isso até seria de esperar, mas aqui só aumenta a estranheza: é como se Coming 2 America não fosse uma verdadeira continuação, mas mais uma homenagem ao filme original, que invoca a simpatia que o público e o elenco guardaram por ele sem se comprometer totalmente com a sua herança. Teria sido uma ideia melhor re-abordar o enredo "riches to rags to riches", que Landis e Murphy já tinham desenvolvido no ótimo Trading Places, e criar uma história menos rebuscada. Do jeito que está, sorrimos com simpatia, sim, mas tal como sorriríamos se fôssemos ver um grupo de teatro amador montando uma peça inspirada em Coming to America.

Rock ‘n’ Roll High School (1979). É bobo, caótico, com problemas de timing, momentos de comédia de gosto duvidoso e que parece agitar na nossa frente o tempo todo que tem os Ramones. Ou seja, é um filme extremamente divertido e que exala entretenimento em todos os seus planos!

Matinee (1993). Esta homenagem aos filmes de série B ambientada durante a crise dos mísseis em Cuba talvez seja adolescente demais para adultos e adulta demais para adolescentes, mas é um grande espetáculo e um festival de citações cinematográficas. O Joe Dante é um diretor apaixonado pelo Cinema, e isso faz toda a diferença.

Amadeus (1984). Foi a enésima vez que o vi, mas só a segunda da versão Director's Cut. Sei que há quem a considere redundante, mas discordo: acho que as suas sutilezas são esclarecedoras e os seus pormenores enriquecedores.

Bloody Sunday (2002). Paul Greengrass recria os acontecimentos do Domingo Sangrento em Derry, na Irlanda, contextualizando-os como uma crônica de um desastre anunciado, e põe a sua câmera documental no centro. O seu processo é inteligentíssimo e afinado com os tempos, mesmo já depois de termos conhecido a pós-verdade: se a força da mensagem é conquistada com a franqueza da imagem, a representação ficcional precisa da promessa de real do documentário para se constituir. Angustiante e revoltante. Um grande filme.

People of Earth (2016-...). Uma série de comédia com o Wyatt Cenac que parte da premissa "e se essa teoria da conspiração sobre seres reptilianos fosse verdadeira?". Não é incrível, mas é engraçada e tem personagens muito simpáticas.