11 de Setembro

Há 18 anos, foi mais ou menos assim. Estava na faculdade de Direito com o Pedro, a estudar para o exame de Direito e Processo Civil. Recebi um SMS da minha mãe a dizer "um avião bateu no World Trade Center", mas pensei que tinha sido um pequeno acidente com alguma avioneta particular e não liguei muito. Ainda não havia smartphones e não usávamos computadores portáteis na sala de estudo, mas, alguns minutos depois, toda a gente à minha volta estava agarrada aos Nokia 3310 e a dizer coisas que ninguém sabia se eram fatos, boatos ou suposições. Eu e o Pedro lembramo-nos da televisão do café Couraça, a mais próxima na alta de Coimbra; decidimos não estudar mais e fomos para lá. Vimos pessoas no Médio Oriente a celebrar os atentados; semanas ou meses depois, soubemos que eram imagens antigas, descontextualizadas. Vimos uma imagem furtiva do Pentágono meio derrubado e ainda se dizia que poderia haver um outro avião no ar em direção ao Capitólio. Durante essas poucas horas que definiriam os anos seguintes, a era do blog e do "jornalismo cidadão", sentíamos que o mundo que conhecíamos poderia mudar para sempre. Não nos enganamos.

Between Two Ferns: The Movie: uma história da Internet

Qualquer pessoa que já tenha feito um curso de Audiovisual sabe que há algumas convenções em que qualquer noviço cai (e talvez tenha de cair) com recorrência. Por exemplo, quando descobre a edição, ele tenta fazer um filme em que a personagem passa pela estranheza de se encontrar a si mesma. Quando não consegue encontrar uma solução para a sua história, não resiste ao "deus ex machina" e tasca uma qualquer variação do "foi tudo um sonho". E, quando lhe é atribuída a tarefa de criar um formato de televisão, em algum momento ele não resiste e acaba por montar o projeto de um "reality" ou de um "talk show" ficcionado. Não esqueçam isto, já voltarei ao tópico.

 Eu já não me lembro quando conheci Zach Galifianakis, mas sei que foi vários anos antes dos filmes do The Hangover. Fiquei fascinado quando vi o seu especial de stand-up Live at the Purple Onion, de 2006, numa versão completa que havia no Google Videos (para quem não lembra, este era o portal de vídeos do Google antes de a empresa ter comprado o YouTube; foi descontinuado em 2012).

Tocando acordes melancólicos num piano, encarnando uma profunda depressão e soltando tiradas entre o infame, o agressivo e o absurdo, Galifianakis levava o público ao delírio e, pelo meio, ainda interpretava a personagem do seu desavindo irmão gêmeo em esquetes de "mockumentary", mostrando uma capacidade incrível para fazer comédia a partir de lugares impensáveis. Nunca tinha visto comédia como esta, poucas vezes a vi depois.

Live at the Purple Onion é o primeiro DVD que Galifianakis lançou. Foi produzido pela Red Envelope Entertainment — nada mais, nada menos, do que a primeira produtora de conteúdo original em nome próprio da Netflix, ainda na época em que a principal base de negócio da empresa era a subscrição de DVDs, que o assinante recebia em envelopes vermelhos (daí o nome) e depois devolvia.

Em 2008, Galifianakis lançava o "talk show" Between Two Ferns no Funny or Die, o site de vídeos de comédia fundado por Adam McKay e Will Ferrell. Between Two Ferns é o "talk show" dos sonhos dos estudantes de audiovisual de que falei no início. Nele, Galifianakis continua a construir a sua "persona" de homem à beira de um ataque de nervos, mas, desta vez, alguém terá cometido a loucura de lhe dar um programa onde ele pode entrevistar celebridades. Não poderia durar mais do que alguns minutos — ninguém aguentaria este tipo de humilhação durante mais tempo. 


Ao longo dos anos, Between Two Ferns continuou com frequência maior ou menor e a popularidade de Galafinakis só cresceu. Entrou em inúmeros filmes, tanto "blockbusters" de verão quanto pequenos filmes independentes, e fez papéis surpreendentes em séries maravilhosas como Bored to Death ou Baskets. E não pude evitar um sorriso quando vi que o seu próximo trabalho a estrear é, precisamente, o filme de Between Two Ferns.


Perdoem-me se pareço meio ingênuo, mas ver um formato passar de algo tão pequeno e peculiar para um longa-metragem deixa-me estupidamente contente. Estreia dia 20 de Setembro na Netflix (e foi produzido pelo Funny or Die).

Žert, 1969

Depois de Valerie e a Semana das Maravilhas, deu-me vontade de ver mais coisas de Jaromil Jireš. Žert poder-se-ia traduzir como A Piada (o livro de Milan Kundera que ele adapta foi traduzido para A Brincadeira) e conta a história de um homem que é punido e ostracizado após ter escrito, num bilhete a uma amada, a frase «Vida Longa a Trostky». A cena em que os seus colegas da Universidade — «os seus melhores amigos», diz ele — levantam as mãos para o condenarem por algo que facilmente é reconhecível como um gracejo mostra-nos que, em tempos de totalitarismo, a ironia é a primeira a morrer. Porém, a semelhança do seu castigo com os consensos ocasionais que, nesta nossa era, levam a linchamentos virtuais e reais deixou-me bastante pensativo.

Bacurau: o místico, o mítico e aquela tal arma

(Contém spoilers)
 
Há uns dias, dei por mim a pensar sobre como o Brasil me ensinou algo novo sobre a multidão. Claro que na Europa eu já tinha estado no meio de muitas pessoas juntas. Porém, as multidões do Brasil parecem-me outra coisa, como se a junção de muitos indivíduos, de alguma forma, os transformasse num novo corpo, com comportamento, movimento e fluidez próprios.

Bacurau lembrou-me disto. Os seus moradores transformam-se numa nova personagem quando se movimentam e agem em grupo. A prodigiosa sequência do funeral no início mostra-nos isto mesmo: todas juntas, aquelas pessoas tornam-se uma outra coisa, e é essa coisa que se chama Bacurau, pássaro que sai pela noite.

Tem-se falado muito sobre a relação de Bacurau com o "western". Os próprios diretores, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, admitem as influências do gênero, tanto temáticas quanto técnicas. Num enredo sobre uma cidade atacada que se defende a si própria, reconhecem-se logo os ecos de The Magnificent Seven. Posso estar sendo meio louco, mas até acho Silvero Pereira, o "Lunga", bastante parecido com Yul Brynner.


É extraordinário o modo como Bacurau trabalha essas convenções para se afastar do realismo social e se desviar para olhares que revelam fortes espaços psicológicos, como já víramos antes nos filmes de Mendonça Filho (a cachoeira de sangue em O Som ao Redor, a aula de ioga do riso em Aquarius). Podemos também falar dos ambientes e sensações que aludem ao realismo mágico, que aqui aparecem por conta de um certo "psicotrópico" ou quando a personagem de Udo Kier tem a visão da falecida Carmelita. Porém, parece-me que mais importante ainda é a forma como Bacurau se vale de todos esses recursos para criar um universo de grande peso místico e mítico.

Místico, porque a cidade de Bacurau fica isolada, desviada dos caminhos, no sopé de uma montanha, abraçada pela força dos elementos do Sertão, com os seus dias agudos e as suas noites profundas. Ela parece subsistir num plano diferente de existência que é simultaneamente espacial e temporal — como o Cinema, ao fim e ao cabo. A presença de Kier, que carrega em si 50 anos de Cinema, só agudiza essa noção, e os travellings repentinos em cenas aparentemente estáticas ou lentas para desviar o nosso olhar e salientar algum pormenor parecem repetir "há algo aqui além daquilo que vocês veem".

Assim, as personagens de Bacurau são ao mesmo tempo deste mundo e daquele meio caminho de distância até ao Olimpo montanhoso, como semideuses que estão bem e não querem sair de onde estão. E essa é a grande, a enorme sacada do filme: qualquer elemento de comentário social que dele se possa retirar não vem de uma ficcionalização sobre uma crua realidade, mas da construção de cada uma das suas personagens enquanto mito. Parafraseando Malraux, os mitos são os denominadores comuns que nos unem para além das nossas diferenças, porque fazem parte da reconstrução imaginária autônoma que todos fazemos sobre uma base colectiva. Eles tocam as multidões menos porque dão uma significação ao que elas vivem e mais porque as deixam sonhar para além do que vivem.¹ Citando Will Wright, que muito escreveu sobre a função do mito no "western":

Um mito fornece um modelo conceptual de ação social e, portanto, a ação narrativa do mito relaciona-se com as ações sociais cotidianas de indivíduos. (...) Num mito, a sequência narrativa explica uma mudança nas relações sociais - a ação de uma personagem no contexto de uma situação social traz uma nova situação, uma nova relação de personagens, mas (...) as personagens representam tipos sociais; portanto, a sequência narrativa explica a interação e relações de tipos sociais.
Will Wright, Sixguns and Society - A Structural Study of the Western

Bacurau é um "western" porque cria figuras mitológicas para falar dos problemas que nos afligem enquanto sociedade. Se esse gênero se diferencia «pela forma como as suas personagens agem no meio de um conflito de interesses entre uma sociedade rural abalada por um injusto processo de estabelecimento de uma civilização moderna»², o filme diz-nos também que há valores dos quais nunca devemos abdicar nesse confronto. A comunidade em que vivemos é um deles; a nossa humanidade também.

Por isso é que é tão importante que a primeira arma a matar um dos invasores seja um bacamarte, objeto que se confunde radicalmente com a história do Brasil: adaptado das granadeiras trazidas pelos combatentes da Guerra do Paraguai, faz parte do folclore do cangaço nordestino desde então. Ou seja, não foi Damiano quem matou os matadores, mas o próprio Nordeste acuado por eles.



Dito isso, é muito estranho ler as críticas que acusam Bacurau de propor uma solução de violência para os problemas do Brasil. Apetece dizer, com simplicidade necessária, que violento é o mundo, e o filme apenas o reflete. Mas a outra objeção possível a quem não consegue entender que estamos aqui num universo distópico em que execuções públicas são transmitidas pela televisão é que Bacurau é uma espécie de aviso. Nele, a violência é uma constante definidora de relações: faz de Pacote uma celebridade online, é entretenimento turístico para estrangeiros, niveladora de estratos sociais para os motoqueiros do Sudeste, fonte de excitação sexual para os matadores. Isso aproxima o filme desse Novo Cinema Gótico do Sul dos EUA, das obras de Jeremy Saulnier e Macon Blair, e parece deixar-nos um aviso claro: se não maneirarmos nos relativismos morais, depressa chegaremos em algo parecido com o que nos mostra.

¹ Jeanne-Marie Clerc, A Literatura Comparada Face às Imagens Modernas: Cinema, Fotografia, Televisão.
² Daniel Oliveira Mosca, O Bem, o Mal e a Polícia: Convergências entre as estruturas dramáticas dos Nordesterns brasileiros e dos Westerns estadunidenses

God fuck the queen! Um resumo da confusão em terras de Sua Majestade

Ao pedir ontem a suspensão dos trabalhos legislativos entre 9-12 de Setembro e 12 de Outubro, Boris Johnson fez  um "all-in" que encurrala o Parlamento entre aprovar ou não aprovar o acordo de Brexit que ele apresentar depois da prorrogação, pois não deixa tempo útil para discutir acordos alternativos.

Se o Parlamento aprovar o acordo, os opositores do Brexit saem encolhidos, mas poderão atribuir a Johnson a responsabilidade por qualquer confusão que disso resulte e, nos próximos anos do governo, não deixarão incólume o desacato.

Se o Parlamento não aprovar o acordo, o Reino Unido vai para o "no deal", e Johnson guarda o trunfo de poder culpabilizar os opositores pelo caos que se instalará.

O Parlamento terá uma semana de trabalho em Setembro (de 3 a 10) antes de fechar para a prorrogação e voltar no dia 13 de outubro.

Essa primeira semana de Setembro será crucial.

Nela, o Parlamento poderá aprovar uma lei que proíba o Governo de sair da UE sem acordo. É um prazo muito apertado (a lei teria que ser aprovada pelas duas casas do Parlamento), mas, a acontecer, obrigaria Johnson a pedir à UE mais um adiamento do Brexit e tentar negociar um novo acordo.

O Parlamento ainda pode aprovar uma moção de censura (ou "voto de desconfiança") ao governo. Haveria pouquíssimo tempo para formar um governo de unidade nacional, que então pediria à UE um adiamento da data do Brexit. Quer funcionasse quer não, esta solução instalaria o caos político, e Johnson, que pode ou não ficar no poder (ou voltar a ele, caso vença a eleição subsequente), sempre poderia dizer que ele é da conta dos seus opositores.

O Parlamento apenas conseguirá sair da ratoeira armada pelo primeiro-ministro se se unir contra ele, o que não é impossível, se considerarmos como parlamentares de ambos os partidos se sentiram ultrajados com o movimento de Johnson.

Porém, acredito que Johnson aposta na incapacidade deles para se unirem, porque é preciso entender que os acordos de Brexit têm sido reprovados — simplificando bastante — por duas razões distintas:

  • De um lado, os parlamentares totalmente contrários ao Brexit tentam ganhar tempo, rejeitando os acordos para forçar uma outra solução (por exemplo, a substituição do atual governo por outro que, pelo menos, convoque um novo plebiscito);
  • Do outro lado, temos parlamentares que são favoráveis ao Brexit, mas não concordam com um acordo que inclua uma condição de que a UE não abdica: um "backstop" na Irlanda do Norte. O "backstop" consiste num regime transitório que manteria a vigência de algumas regras do Mercado Comum nesse país, evitando a necessidade de uma aduana entre as duas Irlandas e o ressurgimento das tensões separatistas dos tempos do IRA. Porém, isso implicaria que a Grã-Bretanha, para mover os seus produtos para a Irlanda do Norte, teria que garantir que eles se adequariam às normas europeias. Ou seja, durante esse período de "backstop", o Reino Unido teria que se conformar às regras da UE, mas já sem ter nela representantes que discutissem e aprovassem essas mesmas regras. Imagino que Johnson considera que, perante a impossibilidade de um novo acordo, pelo menos alguns destes deputados poderia ser persuadidos a aprovar um acordo com "backstop". 

O Brexit é uma ideia horrorosa que contraria os valores europeus em que a minha geração foi criada.

A jogada de Johnson diminui o poder parlamentar e ninguém com juízo poderá considerá-la tranquilamente democrática.

Porém, do ponto de vista da pura realpolitik e comparado com os métodos de desinformação truculenta de Trump e Bolsonaro, é um golpe de mestre que por enquanto o tornou dono da agenda política.

Ainda assim, será bom não esquecermos aqui todas as implicações da palavra "golpe".

Se Boris sobreviver a esta batalha, tem garantida uma guerra muito longa pela frente.

Corações Livres (2002)

Os Dogma do século XX eram melodramas com um toque de limão — uma exposição amarga das hipocrisias tão inerentes às relações (sociais, íntimas, familiares) que nos levava a questionarmo-nos se seria realmente possível que estas existissem. Este filme de Susanne Bier (Elsker dig for evigt, no original) mostra que ela soube erguer o melodrama, mas não o arrojo crítico. A sua falta de excesso e de experimentalismo levou o movimento até à fronteira da telenovela.

Valerie e a Semana das Maravilhas


Para fechar o dia em que nos disseram que filmes de temática LGBT não merecem fundos públicos, assisti a cópia da Criterion de "Valerie e a Semana das Maravilhas", uma fantasia de terror gótico interpretada pela atriz Jaroslava Schallerová, então com 13 anos. Após menstruar pela primeira vez, Valerie faz uma viagem surreal por um mundo que parece ser também a sua fantasia da sexualidade adulta. Ela apaixona-se por seu suposto irmão,  tem uma noite de amor com uma amiga para curá-la do vampirismo e tenta escapar dos avanços da sua avó — que também é sua mãe e sua prima —, do seu pretenso pai — um ente nosferático que também é bispo —, e de um padre que, frustrado, manda que a queimem na fogueira. Adaptação de um romance de 1945, o filme seria improduzível em qualquer lugar do mundo hoje, mas não o foi na República Tcheca de 1970. Tem 100% no Rotten Tomatoes, 7,2 no IMDB e é absolutamente incrível..

O coração triste de Willian

Gostaria de dizer aos políticos, e tantos outros, que a morte não se celebra. A vida celebra-se. A morte lamenta-se. E gostaria que Willian, o sequestrador da ponte Rio-Niterói a quem encontraram uma biografia de Bukowski na mochila, tivesse lido "O Coração Risonho" com mais atenção antes de ter entrado naquele ônibus.
Sua vida é sua vida
Não deixe que ela seja esmagada na fria submissão.
Esteja atento.
Existem outros caminhos.
E em algum lugar, ainda existe luz.
Pode não ser muita luz, mas
ela vence a escuridão
Esteja atento.
Os deuses vão lhe oferecer oportunidades.
Reconheça-as.
Agarre-as.
Você não pode vencer a morte,
mas você pode vencer a morte durante a vida, às vezes.
E quanto mais você aprender a fazer isso,
mais luz vai existir.
Sua vida é sua vida.
Conheça-a enquanto ela ainda é sua.
Você é maravilhoso.
Os deuses esperam para se deliciar
em você.

Fox e Fassbinder

Vi Faustrecht der Freiheit, ou, em português, O Direito do Mais Forte é a Liberdade (1975). Há muita coisa que me fascina em Fassbinder, mas nunca deixarei de me impressionar com a fotografia maravilhosa dos filmes deste homem, na qual incluo aquele permanente e incrível jogo coreográfico da câmara com os atores. Nada aqui parece feito às pressas para cumprir cronograma, o que é extraordinário para alguém que filmou mais filmes do que teve anos de vida — só em 1975, o IMDB lista quatro títulos escritos e dirigidos por ele!

Compras

Deixei as peras e os limões no supermercado, pagos, e não vou conseguir lá ir buscá-los amanhã. Praticar o desapego é muito mais fácil quando não há reais e comida envolvidos.