Deixei as peras e os limões no supermercado, pagos, e não vou conseguir lá ir buscá-los amanhã. Praticar o desapego é muito mais fácil quando não há reais e comida envolvidos.
Há muitos anos que não o via, desde que a RTP2 o passou num ciclo dedicado a Welles. Acho que algo não estava à altura, a cópia ou eu mesmo, porque não me lembro de ter então ficado tão impactado com este filme como fiquei hoje. Acho que terá muito poucos rivais à altura no uso tão aplicado e tão bom do plano-sequência: de forma discreta, calma, sem se impor como uma necessidade do início ao fim da cena, permitindo que outros planos se intrometam nele e estando absolutamente subordinado às personagens e seus movimentos. Sabe-se que, durante a edição, Welles estava pelo Brasil, a (tentar) filmar É Tudo Verdade, e que o controlo do filme lhe foi retirado, tendo acabado com um final feliz, que ele não queria e que foi gravado na sua ausência, e com uns 40 minutos a menos. Realmente, o final feliz poderia ser dispensado, mas não digo que está "a mais", porque não há nada neste filme que esteja a mais. Aos 27 anos — 27! —, e mesmo sem querer, Welles alcançava um dos seus maiores triunfos artísticos.
As Regras do Jogo (1939, Jean Renoir). Tudo nele nos leva até à festa, ao caos de um teatro em que tudo parece possível e em que a moralidade está suspensa nos jogos da alta burguesia. Ninguém é amigo de ninguém e os comportamentos são uma estranha mistura entre obediência às paixões e impulsos íntimos e a manutenção das convenções segundo regras não ditas, mas que todos parecem conhecer. Renoir disse querer que o filme mostrasse que na época as pessoas estavam "a dançar sobre um vulcão". Quase dois meses depois da estreia, a Alemanha invadia a Polônia e começava a Segunda Guerra Mundial.
O Grande Ditador (1940, Charles Chaplin). É um dos filmes que mais vezes vi na vida e também um dos que mais vezes verei. Nele sempre descubro imagens e sentidos novos. Desta vez, o monólogo final, tão visto e discutido, deixou-me inquieto e, por acaso, vi um vídeo (não lembro qual, infelizmente) que propunha o viés que me inquietou: o Barbeiro emociona-se porque percebe que o seu discurso humanista representará uma mudança na condução das civilizações, porque entende a força destrutiva do populismo totalitarista — ou porque subitamente é corrompido pela força do poder absoluto que descobre ter conquistado?
Era uma vez um Pai (Chichi Ariki, 1942, Yasujiro Ozu). Há algo de neorrealismo aqui, mesmo sem o neorrealismo ter sido ainda inventado. Chama-me a atenção a contenção de Ozu. Comparemo-lo com o cinema feito à altura das personagens de Renoir, que parecia apaixonado por elas, ou pelo de Chaplin, em que ele é o epicentro físico em volta do qual todo o movimento gravita. Em Ozu, a câmara está quase sempre fixa, os atores também — e quase nunca se tocando. As pessoas de Ozu são gigantes e, ao mesmo tempo, minúsculas. Fumiko chora no final porque tudo é triste ou porque ela própria se apercebe de que as nossas alegrias nunca conseguirão extrapolar a nossa pequenez? Note-se também o tempo, principalmente no primeiro ato, com elipses separadas por anos que, contudo, passam suavemente. É um filme de contenção: como as vidas estão contidas no seu tempo, os corpos estão-no no espaço físico e os comportamentos nos intervalos definidos pelo dever.
Crônica de um Verão (Chronique d'un été, 1961, Jean Rouch e Edgar Morin). Terá sido com esse filme que a expressão "cinéma vérité" foi usada pela primeira vez? De fato, o co-diretor Edgar Morin usa-a logo no início para definir o programa do documentário. Poderíamos argumentar que é, no fundo, um filme doméstico, mas um feito por amigos que representam com precisão a luta de classes da época e a "malaise" que se estaria a instalar sobre a esquerda francesa durante a era gaullista e que explodiria 8 anos depois. Fui vê-lo porque vi por acaso no Facebook o vídeo de uma das cenas iniciais: Marceline na rua, perguntando para os transeuntes se eles são felizes. No entanto, isso não me preparou para ver o seu braço. No fim, o filme praticamente assume o seu fracasso em concretizar as suas intenções, mas poucas vezes um filme terá fracassado tão brilhantemente assim.
Um Dogma 95 americano que, apesar de ser de 2001, parece bem pré-11 de Setembro com o seu cheirinho slacker (e talvez seja). Muito agradável de assistir, com todos os erros certos.
De todos os Dogma 95 que conheço, é o mais simpático. Lone Scherfig não nos dá ruturas; mostra-nos pequenas coisas da vida, sem grandes revelações. É um filme que conforta. Entreguei os trabalhos do mestrado e vi -o: dia bom.