Pé no chão

O potencial criativo do porsche-alapata é bem conhecido. Kant bolou o imperativo categórico enquanto caminhava. Thoreau refletiu sobre a desobediência civil enquanto dava os seus passeios. E, agora, ouso dizer que chegou a minha vez. Hoje mesmo, enquanto corria, eu me lembrei que sei de cor as falas do primeiro comercial de teleshop em Portugal. Era um diálogo entre um locutor em off e Suzanne Somers em on e era assim:
- Que pernas! Lindas!
- Obrigada.
- Qual é o segredo?
(A câmera sobe das pernas para o rosto de Suzanne)
- Eu costumava fazer ginástica até que descobri o Thighmaster!

Obrigado!

Sinestesias

Olha, cara,

ele não toca
porque não tem som.

e eu sei que isso não tá

cheirando nada bem,
mas encaro

como uma prova.

Parar (9)

Permito-me uma indulgência por dia.Às vezes, quando saio, uma ou outra a mais. Não mais do que isso. Continua-me na mente uma certeza íntima. Sei-a algo ridícula, mas é sincera: não quero chegar aos 40 com vontade de ter um palito em fogo entre os dedos.

Noite

Dois homens, uma mulher, por baixo do Minhocão. Ela era magra. Trazia uma garrafa de cerveja na mão, mas não bebia. Eles eram gordos. Um deles tinha vestida uma camiseta da Vai-Vai. Cantavam, mas tristes.A canção acabou e não os ouvi dizerem mais nada.

A estranheza do presidente

Acho esta história do José de Abreu presidente divertida, ao mesmo tempo que algo nela me deixa desconfortável. Na Folha de hoje, Bruno Boghossian exprime bem essa sensação de "andamos a brincar com coisas sérias". Por outro lado, são as coisas mais deliciosas com que se brincar.

George Steiner

Nenhuma língua divide o tempo ou o espaço exactamente da mesma maneira que outra língua faz (tenhamos em consideração os tempos dos verbos hebraicos, se assim lhes podemos chamar); nenhuma língua tem tabus idênticos ao de qualquer outra (daí o profundo donjuanismo do acto de fazer amor em línguas diferentes; nenhuma língua sonha exactamente como outra qualquer.
De "O que é a Literatura Comparada?", in Paixão Intacta

Parar (8)

Para parar, o mais difícil é repetir as situações em que não se parava.
Ver um filme. Concluir uma tarefa no trabalho. Fazer amor. Esperar por alguém na rua. Tomar um drinque.
À decisão de não o fazer o corpo e a mente perguntam "Porque não? E, se não, fazer o quê?".
É preciso recusar, porque, na segunda recusa, eles já não perguntam tanto. 

Parar (7)

Já estou na terceira semana (ou quarta?). 
Um por dia apenas, depois de jantar.
Há quem diga que, por causa disso, eu não parei verdadeiramente.
Talvez tenham razão. Porém, também não vejo a diferença entre transitar assim ou com um adesivo. O problema é inspirar o fumo?
Só um dia de São Paulo já deve dar tóxicos equivalentes.
Não me chateiem.
As fissuras impossíveis já passaram, os períodos de mau humor também.
Não piorem as coisas.
Continuo a correr, pelo menos três vezes por semana.
O fôlego melhora todos os dias. E inventei um momento para escutar rádio, coisa de que já tinha saudade.
Não pareço diminuir de peso, mas também não tenho aumentado. Bom.
Não como bobagens, nem estou com fomes absurdas e súbitas.
Só deixo na minha mesa de trabalho uns frutos secos (lascas de coco, amêndoa defumada).
Chicletes também, mas nada com açúcar.
A primeira semana realmente foi dura, mas essa não tanto.

Parar (6)

Dormi pouco na noite de domingo e estava com sono ontem durante o dia. Consumir ajudava-me a ficar acordado, como disse na história em que me perdi em Londres. Foi-se essa faculdade, mas não me importo: confesso que, nestas últimas noites, tenho ido dormir mais cedo e tido sonos bem mais proveitosos. O aumento de sensibilidade na boca, essa preocupa-me, até porque antes de começar o consumo regular, era muito incomodado por aftas dolorosas que não conseguiram sobreviver à defumação e enrijecimento dos tecidos. Veremos. Ontem, pelo início da tarde em frente, voltou a fissura que tive no sábado (e que quase me fez querer trucidar um vendedor de tapetes quando me disse que teria que descer até ao stock para coletar o item que comprei). Estava no trabalho e era como se o próprio ato de existir, como se todo o mundo à minha volta, fosse de uma chatice insuportável. É uma sensação difícil de explicar porque ela também me confunde. Quer-se que o mundo desapareça, mas também se quer desaparecer do mundo. 

À noite, fui correr. Não corri muito, mas hoje corri de novo e mais. Estou portanto a deixar um vício e a adotar a corrida, e não é a primeira vez que faço nenhuma das duas. Mas hoje já passei melhor de ansiedade: masquei menos chicletes, demorei para mexer o pé por baixo da mesa. Enfim, vai-se andando.

Parar (5)

Ontem à noite, comi uma fatia de presunto. Não é algo que costume comer, mas o meu jantar foi algo reaquecido no micro-ondas e dei essa dentada descomprometida enquanto o prato rodava na luz. Não o esperava, mas senti intensamente o salgado e o azedume ligeiro de algo que já está fora do ponto ideal. Sabia que parar traz o paladar de volta, mas bem que poderia ter tido essa sensação com algo melhor do que presunto. Enfim.

O meu apetite não tem aumentado. Paro no meio da tarde para um iogurte e uma fruta, e é isso. Carboidratos, não vou por esse caminho: parando ou não, sou bem suscetível a inchamentos. De qualquer forma, aproveitando a melhoria do fôlego, ontem fui correr no minhocão. Os ténis de corrida que já deveriam ter em volta de 10 anos deram os seus estertores finais - ou melhor, talvez os tenham dado já há algum tempo e eu guardei cadáveres como se fossem vivos - e foram-se desintegrando pelo caminho, e dois terços do caminho foram andando, não correndo, mas fui, e acho que isso já é alguma coisa.