Parar (2)

Passaram umas 12 horas. Daqui a pouco vou almoçar. Sinto uma agitação no corpo, como algo que está prestes a cumprir-se. A concentração continua difícil, mas a introspeção resolve. Sem tentações para desistir: a curiosidade por experimentar os efeitos da ressaca é maior ainda. Disse aos meus colegas que parei e que não se surpreendam se eu os mandar a todos tomar no cu. Eles riram, eu também.

O caminho de bicicleta para o trabalho foi ligeiramente mais fácil. Um certo limite na respiração ao pedalar, não o senti. Também não senti a fome enorme que sentia pelo meio da manhã quando parei no ano passado, mas conto comprar algumas coisas no supermercado só para guardar aqui na geladeira do trabalho caso me dê a fome. Fruta, umas bolachas, nada de muito calórico: não vale a pena facilitar o aumento de peso também. Porém, ontem comprei uma caixa de chicletes, que tenho aqui em cima da mesa, e a moça da padaria perguntou-me se não ia querer o que sempre comprava, e eu sorri quando lhe disse que não.

É preciso imaginar um filão de veneno, principalmente se surgir vontade. O objetivo é aguentar até sexta-feira e zerar o corpo. Depois disso, é outra coisa, é manutenção.

Parar (1)

Foi há umas duas horas, mais ou menos, que acabou. Não quero comprar mais. Não sinto problemas físicos, mas estou um pouco cansado de estar dependente de uma substância. Já tentei parar antes; foi há um ano ou dois? Aguentei-me durante um mês, o semedão reduzido a uma vez por dia. Percebi que era possível e também que comprar é a fronteira do falhanço, muito mais do que pedir um ocasionalmente. Diminuir não funciona, isso eu já sabia: sempre que tentei, algo acontece, algum imprevisto e, de repente, lá regresso à mesma quantidade. Então, parei. É isto parar? Parece mentira, mas tenho os Morphine a tocar na janela ao lado. Sinto-me nervoso, a boca seca, e o chá gelado não parece resolver. Tenho um trabalho do mestrado por acabar, mas é como se tivesse tomado uma injeção de Maluquinol e não consigo parar de olhar para as coisas à minha volta, uma após outra, como se tivessem uma importância singular recentemente adquirida: olha um sofá; olha uma televisão; uma mesa; uma bola antiestresse. Tudo pode ser um pretexto para fazer outra coisa, ser outro, mas a minha vontade tem que ter algum significado contra o mundo. São 1h40 e está-me a apetecer um café: vou à padaria,  vou tomar um expresso, mas não vou comprar. Não posso comprar, e o jeito de me distrair vai ser olhar para dentro e entender o desejo e a falta e a dor. Se outros conseguem, eu também consigo.

A Grande Ilusão e o mítico humanismo europeu


Em tempos de extremos que emergem, de nacionalismos que se extremam e coisas más no geral que aparecem, A Grande Ilusão lembra-nos um certo ideal da Europa com homens de honra. Digo "homens", porque mulheres aqui há poucas, quase nenhuma - o que aparece são oficiais, que iam para prisões especiais e se guiavam por um código de conduta particular, então, talvez fosse fácil falar. Homens que se travestiam para alimentar o desejo, que recebiam harmónicas dos carcereiros e que cantavam A Marselhesa na prisão. Também há aqui homens para quem um travelling ainda era uma questão de moral. Renoir faz-nos perguntar: se todos sabemos do valor de todos e somos cordiais uns com os outros, guerrear porquê?

A História passa por aqui. Em fúria, prisioneiros queimam o presente da rainha que pensavam ser vodka e, afinal, é livros, mas um grita "não devem queimar livros", como alguém talvez tenha gritado (ou não, pois o medo pode muito) na Alemanha em 10 de Maio de 1933, quatro anos antes de o filme estrear. Um oficial deixa-se ser alvejado por outro, para permitir que os seus correligionários fujam, e, enquanto morre, os dois conversam uma conversa onde está todo o existencialismo que, 9 anos depois, seria chamado de Humanismo.


Por fim, há quem discuta e faça as pazes de costas para os Alpes. E, nalgum momento, diz-se que "as fronteiras não existem, são uma invenção do homem".

Cajón del Maipo

Imaginei dois homens se perseguindo. Um tem uma arma. O outro corre. Atravessa o rebanho de cabras. O da arma aponta, tem o outro na mira, mas um bode mal disposto ataca-o com uma bela cornada pelo flanco. O homem armado fica em mal estado, mas consegue desvencilhar-se do bode. O perseguido corre em ziguezague e espanta três cavalos na direção do armado, que apenas por uma sorte incrível não é pisoteado. Pedras se soltam do chão. Os homens escorregam. O perseguido torce o pé e cai. Finalmente, eles ficam frente a frente. Parece que não há escapatória. O perseguido resigna-se: vai morrer. O armado dá um passo em frente para se apoiar melhor. Grande erro: o chão está cheio de água, e o pé afunda-se na lama. O perseguido levanta-se a custo e foge na direção das montanhas cobertas de neve. O armado ainda dispara, mas falha. A última coisa que vê antes de perder os sentidos é um cavalo preto num galope zangado. Vem na sua direção.

Cidadão

Não sei se sabem, mas eu escrevo poesia.
Em 2009, fui finalista europeu de Poetry Slam, em Berlim. Por causa disso, fui convidado para fazer uma performance no aniversário de uma associação de cultura francesa em Lisboa.
Antes do evento, pediram-me para testar o som. Disse um poema e, assim que acabei, uma mulher aproximou-se com expressão consternada.
É que o poema (posto aqui em baixo) era uma crítica ao então presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso.
E o espaço, que fora cedido à associação, era o da sede da Comissão Europeia, da qual a mulher era funcionária.


Nesse momento, o dilema que se punha àquela mulher era básico: ser representante da Comissão numa censura a um evento que nem da Comissão era; ou não fazer nada e arriscar-se a ter problemas caso se soubesse que uma crítica a Durão Barroso fora dita naquele espaço.


A funcionária pediu-me para trocar o texto por outro, e tudo ficaria bem.
Eu disse que não ia fazer isso.
Entretanto, passa um homem de barba e terno. Era colega da mulher e parecia mais sereno. Ela explicou-lhe o que estava a acontecer e pediu-me para eu lhe mostrar o poema impresso.
O homem leu e, no final, de sobrolho franzido, disse "pois, isso, realmente, tem uns termos mais fortes...".
Pediram-me para omitir as palavras mais pesadas, e tudo ficaria bem.
De novo, eu disse que não ia fazer isso. Tinha sido convidado para fazer o meu repertório de poemas - e esse era um dos meus poemas.
Eles não ficaram muito satisfeitos e continuaram uma conversa mole, tentando que eu mudasse de ideias.
A diretora da associação percebeu o burburinho, aproximou-se e conversou com eles.
Ela argumentou que o espaço lhes tinha sido cedido para eles fazerem o seu evento. Que eu fazia parte do evento. E que o poema era uma performance minha. Portanto, eu tinha todo o direito de o dizer.
Os funcionários, contrariados, calaram-se e anuíram.


Dali a pouco, na frente de algumas dezenas de pessoas, disse o poema.
A funcionária, sentada num canto como uma vigia de escola, abanava a cabeça. A sua face ia do azul ao roxo como um termómetro prestes a explodir.
Mas fui muito aplaudido e, no final, ouvi muitos elogios do público.


Não foi Durão Barroso que quase me censurou, foram os seus burocratas. Porque é sempre assim: é sempre outra pessoa que te vai querer calar, ou bater, ou matar, em nome do respeitinho, dos bons costumes ou seja lá qual for a desculpinha barata que arranjarem para dizer que tu os incomodas.
Um amigo, com quem tinha uma banda de spoken word, também estava lá. Depois, enquanto descíamos a rua para apanhar o metro, disse-me, rindo, "o que tu fizeste foi como gritar pelo Benfica no meio do estádio de Alvalade cheio de sportinguistas".
Ele tinha razão. Mas é muito fácil falar dos direitos e liberdades individuais da boca para fora e mais difícil levantar a cabeça e dizer "não" quando é preciso. Eu não vou abdicar do meu direito por causa de conveniências.
Democracia é falar, discutir, respeitar o diferente e fazermo-nos respeitar enquanto diferentes. Não é ter medo daquilo que nos possa acontecer pelo que dizemos, fazemos ou somos.


Se Bolsonaro ganhar esta eleição, ganha a gente do medo. A gente que acha correto censurar uma peça em que uma mulher trans interpreta Jesus. Que acha que um homem nu num museu é um elogio à pedofilia. Que acha que uma exposição sobre o sexo na arte é um atentado à moral. Que acha que os seus opositores devem ir para a prisão ou para fora do país.


Mas também tenho certeza de uma coisa: Bolsonaro já perdeu esta eleição. Seja qual for o resultado das urnas, e contra a aclamação geral que ele buscava, está claro que metade dos eleitores se uniram na certeza de não quererem a sua incompetência, a sua mesquinhez e o seu ódio. Metade dos brasileiros estão dizendo que levantarão a cabeça e dirão "não" contra propostas que limitem as suas liberdades e os seus direitos, e toda a classe política já percebeu isso.


Em Lisboa, eu fui temerário e provocador. Hoje faria diferente?
A única coisa que hoje faria de diferente seria dizer o poema direto na performance, e não no teste de som.
Porque, a bem dizer, eles que se fodam.
Boa eleição a todos.







 

Cidadão
estás-te a cagar
se me chamo josé manuel barroso
presidente da comissão europeia
ou durão barroso
antigo primeiro-ministro
se mudei o nome quando mudei de profissão
porque os franceses não conseguem dizer "durão"
ou se fui revolucionário maoísta na juventude
e depois
eu não sou já esse rapaz e se o encontrasse
rir-me-ia dele
estás-te a cagar se mudei de nome
como um escritor artista ou stripper
e se mudei de pensamento
não sou mentiroso nem vendi os meus sonhos
sou um político profissional
sou josé manuel barroso
presidente da comissão europeia
e tu estás-te a cagar
num dos meus comícios
citou-se o início de um poema português
"sigamos o cherne!", disse-se
e toda a gente aplaudiu
no fim do poema ninguém sabia
o cherne é um "peixe traído"
quem o disse
não a minha mãe
não sou hamlet
quem o disse
não o meu filho
não sou césar
quem o disse
a minha mulher
ela chamou-me um peixe traído
não leão tigre ou cavalo
um peixe
traído
à tua frente
e ainda assim fui eleito
porquê
porque tu estás-te a cagar
prometi descer-te os impostos
e subi-os
disse que ia reformar
não reformei
mas abri os meus ares à CIA
com carga desconhecida para Guantamo Bay
nada de mais
uma vida tranquila
mas um dia
houve uma guerra para decidir
matar ou não matar, eis a questão
e era preciso uma ilha
porque o mar relaxa
onde querem ir Bermuda não
Bermuda soa a calção
venga Señor José Maria Aznar
please do come Sir Tony Blair
get the party goin' George W. Bush
venham aos belos Açores
é difícil lá chegar
e eu sei que gritos de manifestantes
são particularmente enervantes
enquanto se decide uma chacina
venham e comam cherne ao almoço
mas deixem-me aparecer na fotografia
como um empregado de restaurante
servindo comida aos adultos
deixem-me mostrar que também sei brincar
dêem-me uns minutos para discursar
não se vão arrepender
baterei os calcanhares e direi
as vezes que quiserem
eu vi as armas de destruição maciça
eu vi as armas de destruição maciça
eu vi as armas de destruição maciça

e tu sabes
15 meses depois a chamada chegou
durão tornou-se josé manuel
no more mister prime-minister
e tu sabes
que se entreguei portugal
à versão política de uma love doll
um homem com erecção vitalícia
foi porque isso é bom para hastear a bandeira
e tu sabes que hoje
sou o presidente da comissão europeia
e tudo bem
porque tu estás-te a cagar
e quando olho pela janela
o mundo fica escuro
e eu penso no passado
os milhões de estrelas mortas no céu
os corpos escuros debaixo do chão
e a corrente sem fim do mal esperneando no fundo da noite
faço xixi e vou para a caminha
porque devidamente tranquilamente seguramente
tu estás-te a cagar
e todos se vão esquecer.

Montale

Não me repitam que até um palito
uma migalha ou uma minúcia pode conter o todo.
Isso pensava eu quando o mundo existia,
mas o meu pensamento desvaria, agarra-se onde pode
para se dizer que não se extinguiu.

(L'Eufrate)

Nick Cave

Isto não foi um show de música. Isto foi uma liturgia. Cada canção era uma peça de teatro sobre duas personagens, o Bem e o Mal, e com dois atores: nós e ele.

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Morrer de pé ou viver ajoelhado?

Como imigrante no Brasil, há vários meses que reflito sobre o modo como esta eleição deveria influenciar a minha permanência aqui.
Depois dos resultados do primeiro turno, a resposta ficou clara.
A partir de amanhã, darei início ao processo de pedido de igualdade de direitos e deveres, que me permitirá votar e participar plenamente na vida política deste país.
Isso significa perder o direito de votar em Portugal, o que muito me custa.
Porém, considero que escolher o modo como vai ser gasto o dinheiro dos meus impostos e manter a cabeça erguida contra simpatizantes de tirania é mais importante ainda.
Imagino que alguns de vocês pensaram que estava anunciando a minha partida.
Também vejo muitos brasileiros, gracejando em desespero, que perguntam qual o melhor país para se exilar.
Mas Jair Bolsonaro, o círculo que o rodeia e os esbirros que o apoiam não me dão medo.
Imagino que a maioria dos seus eleitores votaram nele mais por acharem que ele seria o melhor candidato contra o PT do que por concordarem com as ideias do ex-deputado e que inúmeros nem saibam muito bem no que estavam votando.
Eu não perco a esperança nesse povo desesperançado. Porquê?
Nasci no sexto ano da democracia portuguesa.
Não tive que combater numa guerra.
Nunca fui denunciado ou vigiado pelas minhas opiniões.
As coisas que escrevo nunca tiveram que passar por censura, prévia ou posterior.
Ao longo dos meus 37 anos, 8 dos quais morando no Brasil, vi governos com que concordei ou não dando-se bem ou mal.
Mas eu nunca vi tamanha glorificação de políticos que se aproveitam das liberdades democráticas para apelar ao saudosismo por tempos obscuros, ao elogio de torturadores e ao insulto mais sujo.
Acima de tudo, nunca vi tamanha concentração de incompetência, falta de preparo para lidar com os problemas de um país e slogans vazios de conteúdo ascender à primeira linha do debate político.
Eu não tenho nenhum problema em ver políticos de quem não gosto subir aos lugares de poder (os amigos brasileiros poderão pesquisar "Cavaco Silva" para entenderem).
Mas há não gostar e não concordar, e depois há considerar que alguém não preenche as condições mínimas para ser um representante político numa sociedade democrática, quer pelas posições que defende, quer pela incapacidade de construir uma visão com pés e cabeça para o país que pretende governar.
Fazer frente a isto é um dever ético fundamental do cidadão, esteja ele no poder, na oposição, num cargo eleito ou, simplesmente, participando da vida pública do seu país.
Emiliano Zapata disse "prefiro morrer de pé a viver ajoelhado". É um lema pelo qual gosto de pautar a minha vida. Levantar a cabeça faz-nos chegar à luz. Baixá-la leva-nos às trevas.
E ninguém me vai fazer descer até as trevas.

Brasil

Os tempos andam estranhos. A alegria do deserto, por um lado, o de casa, o do coração. Do outro, o trópico em transe e em sangue que lentamente se vai esboroando. A mentira, cobra que escorrega por um chão sujo e coberto de mentiras. Avança, avança, e de onde aparece esta gente que quer que a cobra morda o mundo? A azia é grande, mas não vale a pena trocar o suco por cianeto. E, entretanto, outra multidão avança, com a cabeça erguida sem medo e o som do futuro nos passos. É  como se todos fôssemos Dâmocles.

Mudanças

A branquidão oculta uma pergunta: serás capaz? Não tenho respostas para ela. Às vezes, penso que paramos de crescer nalgum momento. Outras, que somos sempre diferentes.

Tenho certeza, sim, que não acredito que as pessoas nunca mudam. Elas mudam, sim. Mas, depois, voltam a mudar, uma e outra vez, podendo voltar a ser o que eram e deixando de o ser novamente.

E eu, mudei no quê? Fui capaz antes. Sê-lo-ei hoje?