A última refeição de Anthony Bourdain

Acordei no dia de folga com a notícia de que Bourdain tinha morrido. Os meus grupos de trabalho no Whatsapp estavam cheios de lamentos, talvez porque qualquer pessoa que faz programas de gastronomia hoje em dia sabe que, em grande parte, devemos o nosso sustento a ele. No nosso caso, que fazemos a versão brasileira do programa The Taste, em que ele foi jurado, a conexão é mais forte ainda.

Daqui a uns anos, vai ser difícil explicar o que Bourdain fazia ou porque ele era famoso. Ele não era conhecido por ser um grande chef; quando ainda trabalhava em cozinhas profissionais, a sua especialidade era salvar lugares que estavam prestes a fechar ou, então, ajudar a fechá-los de uma vez por todas. Ele também não era exatamente um crítico de gastronomia, apesar de ter comido e divulgado a comida de dezenas de países.

É difícil explicar o que Bourdain fazia porque, de certa forma, ele inventou o que ele fazia. Desde que publicou o artigo Don't Eat Before Reading This, que depois transformaria no seu primeiro grande livro, Cozinha Confidencial,  ele foi um cronista gastronômico. Começou falando sobre o que acontecia dentro das cozinhas de restaurantes e rapidamente evoluiu para um divulgador da comida como espelho fiel do lugar onde ela acontece, do povo que a produz, da sua cultura, política e economia. Desde a nouvelle cuisine que conhecemos a importância do terroir, mas Bourdain expandiu e divulgou essa ideia, ao ponto de hoje sabermos que comer num lugar que visitamos significa, não só matar a fome, mas principalmente experimentar esse lugar através do paladar.

Bourdain suicidou-se enquanto visitava a França. É triste e é simbólico também. A sua carreira e vida gastronômicas sempre estiveram ligadas ao país. A sua família é de origem francesa, ele ficou popular quando comandava a brasserie Les Halles, em Nova Iorque, e foi também o país onde ele teve a experiência que começou a sua relação com comida, quando, ainda criança, acompanhou a família numa pescaria de ostras. Como ele relata em Cozinha Confidencial:
O senhor Saint-Jour, como que querendo desafiar os seus passageiros americanos, perguntou, com o seu forte sotaque da Gironda, se algum de nós queria experimentar uma ostra.
Os meus pais hesitaram. Duvido que eles tivessem pensado comer uma das coisas cruas e viscosas sobre as quais flutuávamos. O meu irmão mais novo recuou, horrorizado.
Mas, no momento mais orgulhoso da minha jovem vida, eu me levantei, sorrindo, desafiador, e me voluntariei para ser o primeiro.
E, nesse inesquecível e doce momento da minha história, que ainda é mais vivo para mim do que tantos outros "primeiros momentos" que se seguiram - primeira buceta, primeiro baseado, primeiro dia no colégio, primeiro livro publicado, tantas coisas - eu conquistei a glória. O senhor Saint-Jour fez-me ir até à amurada, onde ele se inclinou e debruçou até que a sua cabeça quase desaparecesse por baixo de água, e emergiu segurando, no seu pulso bruto e em forma de garra, uma única ostra, coberta de lodo, enorme e irregular.
(...)
Eu segurei-a, inclinei a concha na minha boca como me instruíra o agora radiante senhor Saint-Jour, e, com uma mordida e uma sorvida, engoli-a. Tinha sabor de água do mar... de salmoura e carne viva... e, de alguma forma, de futuro.
Tudo era diferente agora. Tudo.
Eu não tinha só sobrevivido - eu tinha apreciado.
Esta, eu sabia, era a magia da qual, até agora, só tinha uma noção vaga e despeitosa. Estava viciado. Os arrepios dos meus pais e a expressão de repulsa e surpresa ilimitadas do meu irmão só reforçaram a noção de que, de alguma forma, eu me tornara um homem. Tivera uma aventura, provado o fruto proibido, e tudo o que se seguiria na minha vida - a comida, a corrida longa e tantas vezes estúpida e autodestrutiva pela próxima coisa grande, fosse drogas, sexo ou qualquer outra nova sensação - teria a sua raiz nesse momento.

Hoje eu penso em Bourdain. Pergunto-me qual terá sido a sua última refeição e se ele lembrou dessa ostra primordial momentos antes do fim. Amanhã eu vou acordar e seguir para o estúdio, para fazer um programa sobre comida. Também por isso, obrigado a ele.

SPOILER: La Coquille et le Clergyman (A Concha e o Clérigo, 1928)

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  • Estava pronto pra entrar nos anos 30 e nos filmes sonoros, mas uma leitura sobre as possíveis influências de Buñuel para Un Chien Andalou L'Age d'Or levaram-me a retroceder a 1928, a um filme tão intrigante que a sua exibição terá sido proibida na Grã-Bretanha depois de uma avaliação tão odiosa quanto hilariante do censor: "se ele tem um sentido, com certeza é reprovável!".

  • A Concha e o Clérigo trata das alucinações eróticas deste último, que disputa uma mulher com um militar. A certo momento, o clérigo arranca a roupa da mulher, descobrindo-lhe os seios, que, num fundido, são cobertos por conchas. Fica assim também descoberto o título: a concha como símbolo da sexualidade feminina; o clérigo como o homem que, apesar das vestes eclesiásticas, não resiste aos ímpetos sexuais e persegue a mulher sem parar, recebendo recusas e mais recusas. Se expandirmos a nossa visão, veremos a metáfora da Igreja e do Estado como atacantes implacáveis do corpo e da sexualidade femininas.

  • Entende-se então porque ele é apontado, não só como o primeiro filme surrealista, mas também como um dos primeiros filmes com uma mensagem feminista, com os avanços do protagonista masculino e objetificador sendo constantemente frustrados.

  • 90 anos depois, poderá ser injusta a observação de que, se a intenção era essa, talvez fosse mais interessante se a figura feminina fosse protagonista e atuante, em vez de uma musa quieta e enjoada que apenas reage ao protagonista masculino. Ainda assim, certamente essa observação não é tão injusta quanto aquilo que os surrealistas fizeram à diretora na estreia.

  • As versões sobre o que aconteceu variam. Há quem diga que os surrealistas não gostaram que a diretora tivesse tomado muitas liberdades com o roteiro do comparsa Antonin Artaud. Outros especificam: os surrealistas, esse Clube do Bolinha de vanguarda, eram misóginos e reprovaram o empoderamento feminino mostrado no filme. Há até quem diga que Artaud, descontente por não ter ficado com o crédito de "consultor técnico privilegiado", chamou os amigos para o defenderem. O fato é que os surrealistas foram em alcateia até à estreia e, mal o filme começou, começaram a gritar impropérios, xingando a diretora de "vache" para baixo.

  • É um filme cheio de fundidos e de imagens sobrepostas sem fronteiras claras, como as de um sonho. Um ano anterior a Un Chien Andalou, é talvez uma injustiça que este tenha superado A Concha e o Clérigo como o filme surrealista por excelência. A dificuldade para o espectador é que ele é apenas, e todo, metáfora visual: ele não dá nos dá chão, uma referência de onde observar. O trabalho nele é essencialmente visual e plástico.

  • Se Buñuel e Dalí eram cômicos, farsescos, escrachados, escandalosos, abertamente sexuais e anticlericais e trabalhavam em cima de símbolos universais e poderosos (a lua, o corpo, o escorpião), Artaud e Dulac são melancólicos, plásticos, subtis e meticulosos. Aqueles são mais teatro e estes são mais pintura. Dê-se o significado que se quiser a ela, há uma história em Un Chien Andalou e em L'Age d'Or. Aqui não. Aqui há colagem de vinhetas visuais, maravilhosas, mas que aparecem mais como se fossem palavras vertidas num poema do que um raccord de imagens.
    Um exemplo disso é o modo como Buñuel constrói as suas sequências pensando numa edição diegética e não apenas visual, como a de Dulac. En Un Chien Andalou, um homem começa caindo num apartamento, mas acaba caindo numa floresta. Dulac não faz esse tipo de brincadeiras. Se eles fossem clipes do Radiohead, Buñuel seria o de DayDreaming  e Dulac o de Street Spirit (Fade Out).

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    • Ou seja, há algo no surrealismo de Buñuel que o faz ter um apelo maior do que o de Dulac. Os seus primeiros filmes atraem-nos, não porque sintamos que qualquer coisa possa acontecer nos seus mundos, mas precisamente porque talvez nem tudo possa acontecer. São mundos com regras estranhas que não entendemos, mas que, intuimos, têm regras que queremos descobrir. A Concha e o Clérigo acontece principalmente dentro da cabeça dos seus criadores, o que imediatamente levanta uma muralha mais alta. Buñel parece oferecer-nos todo um mundo; Dulac parece oferecer-nos apenas ela mesma.

SPOILER: L'Age d'Or (1929)

  1. Este é o primeiro filme sonoro deste caderno. Como falas eram coisa recente no cinema, os poucos diálogos parecem ter sido pensados mais como intertítulos que, por acaso, acabaram ditos.

  2. De qualquer forma, o filme parece menos inspirado e mais lento nos momentos com mais falas. Com o som, não é preciso agarrar a atenção do espectador com uma velocidade maior, com efeitos especiais, com uma edição inventiva. Ou seja, houve algo na imagem do cinema que morreu quando o som chegou. Chaplin sabia-o, e por isso resistiu mais 10 anos até ter um filme inteiramente falado.

  3. Bispos tornam-se esqueletos e toda uma sociedade vem venerá-los. No lugar da veneração, é fundada Roma, onde, no Vaticano, toda uma sociedade venera outro tipo de cadáveres.

  4. Durante a veneração, um homem é capturado por estar dando uns amassos com uma mulher. Transportado por seus captores através da cidade, vê sexo em tudo e maltrata animais e cegos. Não entendo bem porquê, mas ver alguém chutando criaturas indefesas tem sempre muita graça.
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  5. A mulher que antes víramos dando uns amassos entra no seu quarto e tem que enxotar uma vaca deitada sobre a cama, o que, como todos sabem, é uma tarefa muito chata.

  6. Invariavelmente, as pessoas neste filme querem fazer mal umas às outras ou, pelo menos, não se importam muito com o sofrimento do vizinho. Não sei de onde Buñuel e Dalí foram tirar essa ideia de que a humanidade pode ser assim, mas explica a abertura do filme com um minidocumentário sobre escorpiões.

  7. Há uma ideia de eternos retornos pairando por aqui. Uma orquestra começa a tocar, mas a música é a mesma que ouvíramos momentos antes. Enquanto isso, o casal que víramos na praia se beijando e rebolando no chão começa a se beijar e a rebolar no chão. A ideia será a do sonho que volta?

  8. O casal continua a sua dança de amor, que pressentimos como a única coisa verdadeira no meio das convenções e fachadas de uma festa de alta sociedade. A mulher chega a dizer "que alegria termos matado as nossas crianças". Ao mesmo tempo que é verdadeiro, é um amor extremamente frágil. Estamos sempre à espera que ele seja interrompido por intrusos ou pelos próprios amantes.

  9. A mulher começa a beijar o maestro da orquestra. Enfurecido, o homem vai até o quarto dela e joga pela janela um bispo e uma girafa. Quem nunca, hein?

  10. A mistura nonsense de tempos históricos, o jogo com as expectativas do espectador, a insignificância cômica do sofrimento humano tiveram um claro descendente. Com uma ou outra adaptação, L'Age d'Or facilmente seria um episódio do Monty Python's Flying Circus.

SPOILER: Un Chien Andalou (1929)

  1. Traduzido, o título é "Um Cão Andaluz". Segundo relatos da época, os roteiristas, Buñuel e Salvador Dalí, inspiraram-se no apelido que, décadas mais tarde, o governo madrileno daria a Carles Puigdemont.

  2. Buñuel aparece na primeira cena do seu primeiro filme amolando uma faca e cortando o olho da sua atriz principal. Poucos diretores poderão se gabar do mesmo.
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  3. Agora a sério, o que podemos entender do famoso olho cortado, montado em paralelo com uma nuvem afiada passando na frente da Lua? Que tudo o que se segue é o sonho da mulher? É que sonhar não vai ser a primeira coisa que farei se me cortarem um olho.

  4. Um homem é recusado por uma mulher e persegue-a, mas, para o fazer, tem que arrastar dois pianos, dois burros mortos e quatro clérigos. Foi exatamente assim que eu conquistei a minha namorada.

  5. O homem é ameaçado por um outro, cujo rosto não vemos, e que o obriga a levantar-se da cama e encarar a parede. O homem que ameaça vira-se, e vemos então que ele também o homem que é ameaçado. Buñuel cria assim uma das primeiras obras com doppelgängers, ajudando a espalhar uma praga que infetará para todo o sempre as curtas-metragens feitas por universitários.

  6. Depois, o homem mata a tiro o doppelgänger, castigo merecido para qualquer pessoa que obriga outra a levantar-se da cama.

  7. O homem olha a mulher. Tapa a própria boca e, quando a destapa, não tem boca. A mulher, como seria de esperar, reage retocando o batom. Então, o pêlo do sovaco dela aparece na boca do homem.
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    O significado é claro: este homem é o par ideal para qualquer pessoa de pele sensível que aprecia o silêncio e truques de magia.

SPOILER: Chelovek s kinoapparatom (O Homem com uma Câmera, 1929)

1. Como um espectador moderno vê O Homem com uma Câmera? Todas as técnicas que ele fez revolucionárias são hoje corriqueiras. O seu objetivo confesso de fazer um cinema pelo cinema, sem roteiro, personagens ou intertítulos, dir-se-ia ultrapassado, porque, nalguns segmentos, ele venceu: se tantas bandas fizeram trilhas para este filme é porque principalmente os clipes musicais acabaram absorvendo a sua estética.

2. Digo estética, porque é uma batalha estética que ele trava, e uma específica do cinema. Filma-se e mostra-se o espaço, mas a matéria que realmente se trabalha é a do tempo real através do tempo diegético. Sim, porque há diegese aqui, apesar de Vertov reclamar que quer uma linguagem pura independente da literatura e do teatro e blá blá blá. Há um prelúdio numa sala de cinema, começamos de manhã, vamos até à noite. Do que ele tanto se queixa? Não ter drama não significa que não haja um início, meio e fim.

3. É um filme que, como The Greatest Movie Ever Sold, de Morgan Spurlock, é making of de si mesmo: o homem da câmera filma, mas também é filmado. Não é só cinema puro, é também cinema exibicionista. Acho que o mesmo pensamento gerou muito filme presunçoso ao longo dos anos, mas desculpa-se em 1929.

4. Ainda não havia câmeras de vigilância nesta época (apesar de Metropolis já as ter imaginado). De qualquer forma, é um dos conceitos inerentes do filme e é bem atual: o Homem e sua Câmera tudo captam, tudo registram. Nós não podemos presenciar toda a vida que existe, mas podemos iludir-nos que a presenciamos olhando a sua imagem. João Lopes falava sobre isto a propósito do stunt de Godard fazendo FaceTime com os jornalistas no último festival de Cannes - Godard, o mesmo que começou Le Mépris mostrando as câmeras que o filmam e nomeando o elenco e a equipe quase como se fizesse uma denúncia.
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5. Nunca gostei da expressão "a cidade é personagem", então não a vou dizer; mas a cidade e as vidas que nela acontecem, com os seus contrastes de tempo, movimento e respiração, é o material bruto trabalhado aqui. E é trabalhado todinho na sala de edição, que nos leva, em rápida sucessão, de um casamento a um funeral a um parto a um acidente, e assim por diante. Para ser exato, o filme dever-se-ia chamar "O Homem com uma Câmera e Também o Outro Homem com uma Tesoura".

6. Este filme, com o seu fascínio por pistões e motores, marca, ainda mais do que Metropolis, a concretização no cinema do Manifesto Futurista de Marinetti, escrito exatos 20 anos antes.

7. De vez em quando, vem um cheirinho de Riefenstahl, com corpos gloriosos fazendo esporte, retratos de Lenine e bustos de Marx, clubes proletários e outras propagandas. Pergunto-me se será para ajudar a engolir o comprimido de um filme de estilo nada realista-socialista. Imagino Daniil Kharms, que por este ano estava no seu período de maior sucesso, saindo de uma sessão do filme e chamando Vertov de medrosinho. A coisa não acabaria bem para nenhum deles.

Como Desenhar o Corpo Humano

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No domingo, dia 10 de Junho, vai ser lançada na Feira do Livro de Lisboa a antologia "Como Desenhar o Corpo Humano", organizada pelo Tiago Patrício e o José Trigueiros e editada pela Companhia das Letras. Reúne vencedores do prémio Jovens Criadores e inclui um conto meu.
Venci o concurso duas vezes, em 2005 e 2006, e o convite do Tiago fez-me reler esses textos.
Enquanto lia, perguntava-me quem era aquela pessoa longínqua que escrevia, o que lhe interessava, que coisas o rodeavam. Pensava no quanto mudei, e se mudei bem.
Quando o pdf chegou para revisão, vi nele os nomes de muita gente conhecida e fui visitado por memórias da minha vida em Portugal, nos blogs, em Lisboa. Tanta gente.
O André Murraças, que nunca conheci pessoalmente, mas que convidei como amigo aqui porque via-o fazer tanta coisa no teatro que me perguntava como era possível.
A Joana Bértholo, que conheci na mostra dos Jovens Criadores em Amarante e que já tinha no olhar a autora inteira em que se acabou por se tornar.
O bom José Mário Silva, que um dia enfiou um livro por baixo da porta da casa onde eu morava na Vila Berta mesmo sem nunca nos termos falado (só o fizemos anos depois, na Casa Fernando Pessoa).
O Miguel Marques, secreto, silencioso, que acompanhava em blog e em papel e que escrevia tão bem que o invejava com a inveja boa de quem queria escrever igualmente bem.
A Margarida Vale de Gato, que tantas vezes encontrava no metro ou pela Graça e que não sei se alguma vez reparou o quanto eu tentava parecer inteligente quando conversava com ela (e certamente falhando, imagino).
Reparo que a Sandra Silva fez parte do júri que, na época selecionou o meu texto. A Sandra, companheira do Alex, que me convidou depois para os Social Smokers. E está também por lá um texto do João Tordo, que, uma noite, depois de um espetáculo dos Social Smokers no Cais do Sodré, me disse que deveria tirar os óculos para atuar (adoraria, João, mas seria prenúncio de acidente grave).
E o livro ainda é prefaciado pelo Jorge Barreto Xavier, o diretor da DGArtes que me deu a bolsa INOV-Art que me trouxe para o Brasil e que por cá me deixou.
Ainda há mais autores, muitos mais, e imagino que esta antologia tenha feito todos pensarem no passado. Quando aceitei o convite, não pensava que ela estaria tão cheia das vidas dos outros e da minha. E como está.
A distância impede-me de ir a este lançamento, mas adoraria que vocês fossem, meus amigos.

SPOILER: La Passion de Jeanne d'Arc (A Paixão de Joana d'Arc, 1928)

  1. Eu já vira La Passion de Jeanne d'Arc, há muitos anos atrás. Gravei-a no 5 noites, 5 filmes, antigo espaço de cinema na RTP2 onde vi muitas coisas que explicam muito do que sou e do que gosto hoje. O que eu não sabia era toda a saga por que o filme passou para que hoje o consigamos ver em toda a sua glória. Escutem essa história:
    Por pressões de grupos nacionalistas franceses e de católicos, incluindo o Arcebispo de Paris, o corte original do diretor dinamarquês e protestante Carl Th. Dreyer foi para os porcos ainda antes da estreia. O negativo foi enviado para os estúdios da UFA em Berlim, onde foi destruído num incêndio, e só sobraram umas cópias perdidas aí pelo mundo. Dreyer conseguiu fazer um segundo director's cut utilizando planos alternativos, mas também ele ardeu, como Joana d'Arc, num outro incêndio.
    O filme ganhou fama de amaldiçoado, mas os cinéfilos nunca se assustaram com coisas de Deus e o Diabo, e lá iam encontrando e remontando uma ou outra cópia que achavam por aí. Estas versões incompletas só foram ultrapassadas em 1981, quando um faxineiro - sempre os faxineiros! - encontrou as bobinas da versão original, anterior a toda a censura, no armário... de um manicômio na Noruega! Como ela lá chegou, não se sabe - não há registros de alguma vez ela ter sido enviada para Oslo -, mas presume-se que o diretor do manicômio na época da estreia, que era historiador, a tenha pedido por especial favor e guardado cuidadosamente.(Neste momento, desejo pedir aplausos para o anônimo herói norueguês que uma hora pensou "ei, isto não parece coisa pra jogar fora". Obrigado, senhor!)

  2. Curioso que, apenas um ano depois de Napoléon, apareça outro filme sobre uma grande figura da história francesa. Não esqueçamos, estávamos entre duas guerras e os nacionalismos andavam exacerbados, o que pode ter levado tanto ao reatar dos conflitos como ao seu fim. Será que a Resistência teria sido o que foi sem também este cinema?

  3. Mas este não é o épico de Gance. Este é um filme sobre psicologias e os rostos como tradutores imediatos da alma e experiência humanas. E é um filme de Dreyer, um dinamarquês luterano, que não se incomoda com tratar o tema reformista da comunicação direta com Deus. Os clérigos menosprezam Joana quando ela descreve seu encontro com o Arcanjo Gabriel e bombardeiam-na com perguntas do estilo "você acha mesmo que Deus iria conversar com você?". Fica claro que o seu encontro com o divino tem que ser feito além da Igreja. Por isso, a morte de Joana representa, ao mesmo tempo, o fracasso do Catolicismo organizado: quem a mata dá-lhe aquilo que ela mais deseja, o bilhete de ida para junto do Criador.

  4. Uma mulher, julgada por um comitê de homens, que reprovam as suas roupas, humilham, roubam, maltratam, degradam, manipulam, torturam, sangram. Para todos os efeitos, é um filme atualíssimo.

  5. Renée Jeanne Falconetti interpreta uma Joana D'arc em estado de graça, como se estivesse em constante diálogo com Deus. Porém, ela não está serena. O seu rosto e aqueles olhos onde cabem todas as dores do mundo são fascinantes como lembrava: esta não é a calma de quem pensa que dali a pouco estará no Paraíso, mas a angústia, transe e puro terror de quem encara a morte para cumprir um destino maior do que ela.
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  6. Os cortes são rápidos, o estilo é ascético. A verdade histórica é garantida pelo registro do texto do processo, que Dreyer apresenta como sua base logo no início, assim se desembaraçando para se ocupar com a criação de pura arte visual, uma dança de rostos sem sujeiras. O rosto de Joana/Renée ocupa quase sempre o centro da tela, dominante, retratistico, e seus perseguidores aparecem no fundo do enquadramento ou enviesados, tortos ou insignificantes como suas almas.
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  7. O absurdo do circo do mundo paralelo à dor íntima. Enquanto a fé é aprisionada, os homens divertem-se sem pensar em consequências. O medievalismo de Bergman está por aqui, o surrealismo de Fellini também.
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  8. A virada de Joana, ao negar a sua remissão, é estratégica. A grande vitória, diz ela a seu captor (de novo Antonin Artaud), é o seu martírio; a sua entrega é a morte. Deus dissera-lhe que a sua missão é salvar a França, e ela entende que a fogueira a tornará a mártir que une um país, assim como Cristo entendeu que a cruz era necessária para completar a sua missão.

  9. Joana arde, grita por Jesus e morre. O povo chora, protesta e é oprimido pela guarda. Enquanto ela encontra Deus, os franceses unem-se sob a repressão. Assim termina o filme que logo seria retalhado para melhor se adequar ao gosto do ofendido público francês e católico.

Pequenas derrotas

Há uns anos, dei um par de cursos de iniciação à fotografia.
Tentava preparar-me bem e sempre evitei prometer mais do que poderia oferecer.
Ontem sonhei que estava a dar um intensivão desse mesmo curso, começando na manhã de um sábado e terminando na noite do domingo.
Porém, fora pego de surpresa e não preparara nada.
Tinha pela frente meia dúzia de alunos entediados e com as taxas de admissão pagas.
Um deles, mais velho, tinha aquela cara bem brasileira de quem pensa "que absurdo!".
Desesperado, achei no computador a pasta com as fotos que acompanhavam a introdução, mas não as conseguia ordenar com coerência.
Ao contrário do que fizera no passado, não estava a oferecer o que tinha sido prometido.
Comecei a dispensar os alunos mais cedo para eles almoçarem e eu ganhar tempo.

Não me perguntem como, mas cada vez mais eu sonho sabendo que sonho, como se estivesse vendo um filme que consigo mais ou menos controlar.
Tentei então tomar conta do sonho.
Pensei Vamos, isto tem de acabar bem; faz um PPT com essas fotos logo, bora!
Às vezes funciona, mas não desta vez: os alunos voltaram, mas, vendo que a minha atrapalhação continuava, saíram da sala, certamente para pedir o seu dinheiro de volta.
Havia pessoas do outro lado do pátio dizendo Olha, parece que o Jorge não se deu bem.
Derrotado para mim e para os outros, fiz um esforço mental para encerrar esse sonho chato e voltei ao adorável e escuro silêncio.
***

Comprei a cama sob a qual sonhei há mais ou menos um ano.
Quando chegou, vi que as instruções recomendavam virar o colchão, o lado de baixo para cima, a cada dois meses.
Porém,  a Cyntia sempre reclamou que um dos lados era diferente e sentia que não nos deveríamos deitar nele.
Ontem à noite, decidi que iria resolver essa dúvida.
Vasculhei o dossier onde guardo manuais de instruções (sim, eu faço isso) e achei as da cama, que, sinceramente, pensava perdidas.
Eu tinha razão: a indicação para virar o colchão estava lá.
Eu só não tinha reparado que havia uma especificação por baixo: "não vire o seu colchão se ele for das linhas X, Y e Z".
Pesquisei os e-mails da compra, mas nada de encontrar o nome da linha.
Hoje à tarde, a Cyntia perguntou se eu não queria abrir a capa protetora do colchão e ver se a linha estaria descrita na etiqueta.
Fizemos isso mesmo e lá estava: "linha Z".
O cuidado que tive durante um ano fora, afinal, desnecessário e precipitado.
***

A moral da história é: se não pudermos passar sem derrotas, pelo menos que sejam pequenas.

SPOILER: The Circus (O Circo, 1928)

  1. Não há muito de novo que se possa dizer sobre Chaplin. Ele importou para o cinema a mise-en-place do vaudeville e aperfeiçoou-a. Ele é o centro de todo o seu cinema, sujeito dos planos, locomotiva da ação. Simples e, no entanto, incansável na procura de novos movimentos e coreografias que surpreendam.

  2. The Circus parece-me um filme de transição. Não tem a pungência de The Kid, que foi feito após Chaplin ver o seu primeiro filho morrer com 3 dias de idade e é triste e imaginativo. Não tem a pureza e a essencialidade de The Gold Rush. Em vez disso, aqui há burros enlouquecidos, ficar trancado em jaulas com leões, donzelas que desmaiam, pontapés na bunda, coisas caindo na cabeça. Um verdadeiro circo, portanto.

  3. Adiciona-se uma nuance na personagem de Charlot/Carlitos sendo malvadinho, perseguindo a moça bonita como nunca antes, rindo das desgraças do seu rival, para quem, inevitavelmente, perde. Desta vez, ele não é o tímido injustiçado que se dá bem; ele vai atrás do que quer, enfrenta o que for necessário para conseguir, mas, no final, melhor sozinho do que mal acompanhado. Como Chaplin produziu o filme pelo meio do seu conturbado segundo divórcio, esta mensagem pode não ser pura coincidência.

  4. Ao mesmo tempo, o diretor está ampliando os limites da sua linguagem. Há mais cenários, mais viradas, mais adereços. O filme é maior do que os anteriores e ele está em pleno caminho para fazer essa obra-prima chamada City Lights três anos mais tarde. As cenas na corda bamba e, principalmente, os planos finais, após a partida do circo, manifestam um lado pouco falado da personagem de Carlitos e, talvez, de todos nós: o de que ser livre de tudo significa também ser cativo de si mesmo. Se confiarmos no final de Chaplin, o filme biográfico de 1992, terá sido este o final da montagem que lhe fizeram quando recebeu o Oscar honorário. Faz todo o sentido.
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  5. Antes que me esqueça: se quiserem criar filhos que reconheçam e reajam contra abusos de autoridade, mostrem-lhes filmes do Chaplin. É a melhor educação cívica possível.

SPOILER: Napoléon (1927)


  1. Demorei uns três dias vendo esse épico incrível de Abel Gance. Já tinha ouvido falar muito (Marc Cousins não escondeu a sua admiração por ele em História do Cinema), mas não é sempre que uma pessoa se predispõe a enfrentar cinco horas e meia de filme. Felizmente, a sua estrutura em episódios facilita as interrupções.

  2. A câmera não está só em movimento: ela está livre, documental, subjetiva, sempre disposta a quebrar a encenação e a hagiografia. Vemos estes momentos e pessoas como se os víssemos hoje no Jornal da Noite.
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  3. Abel Gance gaba-se de seguir os registros históricos nas falas e de filmar nos próprios locais da Córsega onde sucederam as cenas retratadas. Num momento de arrojada meta-temporalidade, vamos da placa que diz "Aqui morou Napoleão" para a janela onde ele se debruça. É exatidão histórica, mas também é vaidade!
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  4. A primeira parte, no colégio, faz pensar como os franceses sempre souberam criar grandes personagens infantis. Dos ombros deste jovem Napoleão já espreita Antoine Doinel.
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  5. Artaud, o dramaturgo da Crueldade, interpreta Marat, o super jacobino. Melhor casting, impossível. Aliás, Marat usa uma estola de oncinha, Danton parece um Robert Smith gordo e Robespierre é elegante e usa uns belos óculos escuros: se não fossem revolucionários, seriam uma banda indie.
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  6. O Napoleão das pinturas românticas é invencível e gigante. O de Gance é frágil e magoado. Mais antiherói do que herói, pálido, esquálido e andrajoso, lembra-me Samuel Fuller justificando Lee Marvin para o papel de Sargento em The Big Red One: "porque ele parecia a morte". Ainda assim, se o filme tivesse sido feito hoje, arrisco dizer que o ator principal Albert Dieudonné logo viraria garoto-propaganda de alguma marca de roupa.
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  7. Gance filma forte e feio, com muita câmera móvel, documental. Sabem Saving Private Ryan? É isso aí. Ele usa frequentemente planos subjetivos, e muito durante as cenas de batalha, colocando o espectador ao nível dos soldados na confusão e sujeira. Isto 66 anos antes do game Doom e 90 antes de Dunkirk fazer o mesmo utilizando o som. A sequência de Toulon, filmada à chuva, seria gloriosa por si só.
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  8. Abel Gance, o próprio diretor, interpreta "a figura mais temida do Terror: Saint-Just". Lembram o que eu falei de vaidade? Ahahah
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  9. Acho que só vemos Napoleão sorrir de verdade quando se apaixona por Josefina, e esse é talvez o segmento menos inspirado de todos. Seria demais esperar que "a figura mais temida do Terror" filmasse o Amor tão bem quanto filma a Guerra.

  10. Quando Napoleão entra na sala deserta da convenção e é assaltado por visões dos fantasmas da Revolução, algo fica claro: ele é uma personagem com o corpo no presente, a memória no passado e os olhos no futuro. É como se a História tivesse passado por ele, não o contrário.

  11. Napoleão diz aspirar por um futuro em que as batalhas sejam vencidas sem canhão ou baioneta. É uma fala compreensível 9 anos depois da Primeira Guerra Mundial, mas tristemente fadada ao fracasso 12 anos antes da Segunda.

  12. Também é curioso ver esta figura, que provavelmente se sentiu exilada a vida inteira, falando da utopia de uma Europa-pátria, onde os seus cidadãos se sintam em casa seja qual for o lugar específico dela onde se encontrem. Claramente, o Reino Unido não viu este filme muitas vezes.

  13. Gance sentiu a necessidade de filmar a grande sequência final em tela panorâmica. Só havia um probleminha: em 1927, não havia Cinemascope, Panavision ou qualquer outro desses formatos que, segundo Fritz Lang, só serviam "para filmar cobras e funerais".
    Gance foi engenhoso e gravou com 3 câmeras acopladas, cujos positivos exibiu na estreia em 3 projetores colocados lado a lado. Os distribuidores que vieram depois, claro, não tinham muita vontade de comprar projetores a mais por causa de um único filme, por isso, reeditaram e jogaram fora a película de que não precisaram. Só graças ao trabalho do grande historiador e restaurador Kevin Brownlow é que hoje podemos ver essa sequência como o cineasta a concebeu.
    Tecnicamente, é um triunfo. Porém, ao expandir o enquadramento, perde-se o poder do corte e o ritmo fica a milhas da sequência da batalha de Toulon.
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    Gance claramente entendeu isto e não perdeu muito tempo com as batalhas panorâmicas, logo seguindo para transformá-las num tríptico com imagens independentes, em que aplica tintura e faz desembocar - claro! - na bandeira de França!
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  14. Gance pode ter só conseguido fazer um filme dos 6 que pretendia sobre a vida de Napoleão, mas não se esqueceu de deixar a sua assinatura no último plano. Merecido, mas, ó, homem vaidoso, viu!
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