Coisas do Brasil: a lei do psiu

No cardápio do Papo, Pinga e Petisco, na Praça Roosevelt, vem uma "curiosidade" entre as cervejas e as caipirinhas:
Aqui, neste local, foi realizado o primeiro show de Elis Regina em São Paulo, no ano de 1964.

Era meia noite e o White Album dos Beatles tocava a altos berros. Na verdade, parecia uma versão condensada do White Album, porque as canções soavam mais rápidas do que o costume. E, talvez, não seja o White Album, porque, no preciso momento em que escrevo isto, está a tocar a Let It Be, que é do álbum homónimo. Enfim. O fato ainda mais curioso do que a "curiosidade" é que, logo por baixo da info sobre a mãe da Maria Rita, vem o aviso a bold:
Nosso Bar respeita a "Lei do Psiu", pedimos que não excedam no barulho.

O que me leva a duas perguntas. A primeira: será que a Elis poderia ter tocado aqui em 1964 se já houvesse lei do "psiu"? A segunda: quem batizou ela de lei do "psiu"? É que "psiu" pode ser "silêncio", mas também pode ser "psiu, ó para mim aqui te chamando...". Porque não lei do "chut"? Ou lei do "calou!"? Ou lei do "eu quero dormir, poha!"? Ou lei da "coña marinera"? Definitivamente, houve falta de imaginação.

Sleep Now In The Fire

Os tempos em que pensava que excessos policiais estão sempre errados já passaram e, felizmente, nunca pensei que eles estivessem sempre certos. Mas olhem o que a polícia fez durante a manifestação Occupy Wall Street.
httpv://www.youtube.com/watch?v=Zgr3DiqWYCI
Lawrence O'Donnell é um homem sem medo, e o fato de se assumir "socialista" nos EUA comprova-o. O principal aqui é: a polícia controlou uma manifestação pacífica com particulares e desnecessários requintes de crueldade, abusando da sua força com gritante mal senso e contra os próprios cidadãos que a legitimam. Ou seja, em vez de defender a paz e ordem democráticas contra os seus inimigos, ela perturbou o povo no exercício de um direito democrático elementar. Pode-se dizer que O'Donnell tem um estilo que puxa para o sensacional, mas as suas palavras são verdades cruas e duras. Parece que, em Wall Street, não fazer absolutamente nada pode justificar uma prisão ou uma descarga direta de gás pimenta no rosto. Só para que, como dizem os RATM no vídeo de Sleep Now In The Fire - gravado em Wall Street e que levou à suspensão da atividade da Bolsa por uns minutos -, nenhum dinheiro seja ferido.

Mr. Guache vende!


Anderson Almeida, aka Mr. Guache, foi das primeiras pessoas que conheci no Brasil. Acho-o muito má pessoa e fraco no que faz [super modo de ironia ligado]. Ele pôs à venda no site Artflakes este FABULOSO portfolio inspirado em cartas de tarot, do qual a imagem em cima é só um exemplo. Vamos todos comprar como se não houvesse amanhã, minha gente?

O poeta é um chocolate


É sabido que o Brasil tem um caso de amor com um funcionário administrativo bigodudo, cegueta e alcoólico chamado Fernando Pessoa. Independentemente da qualidade do tiozinho, tanto amor parecia suspeito: alguma coisa mais profunda tinha que explicar identificação tão próxima. Relendo a Tabacaria, percebi tudo.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Se ele tivesse escrito sobre catupiry, então, tinha a vida feita.

Quero uma canção brasileira de 1983 elevada a novo hino de Portugal!

httpv://www.youtube.com/watch?v=9aHoWTs6xE0
A gente não sabemos escolher presidente.
A gente não sabemos tomar conta da gente.
A gente não sabemos nem escovar os dente.
Tem gringo pensando que nóis é indigente...
A gente faz carro e não sabe guiar.
A gente faz trilho e não tem trem prá botar.
A gente faz filho e não consegue criar.
A gente pede grana e não consegue pagar...
A gente faz música e não consegue cantar.
A gente escreve livro e não consegue publicar.
A gente escreve peça e não consegue encenar.
A gente joga bola e não consegue ganhar...

Uma das coisas de que me orgulho mais de ter feito no Brasil

Uma das perguntas que me fazem mais aqui começa por "lá fala...?" ou "sabe o que é...?". Normalmente, não me importo e até gosto. Conheci muitas expressões tupiniquins assim e, se às vezes me perguntam uma coisa que obviamente existe em Portugal, é, presumo, porque não será tão óbvio para estrangeiros. Foi uma das formas por que fui conhecendo esta língua que, como diz o meu amigo Raphael, é a mesma que se fala em PT, mas não é a mesma que se fala em PT. E serviu-me também para concluir da total inutilidade de discutir o acordo ortográfico. Se alguém acha que é isso que vai fazer com que todos se entendam, chama um príncipe que te acorde, Branca de Neve.

Mas às vezes irrito-me porque, já se sabe, gente burra há em todo o lado. E o mundo sofre. Perdoa-me, mundo. Não consigo deixar de ser um Átila social de vez em quando. Mas nunca contra inocentes, que isso fique claro.

Então, deu-se o caso de uma noite ir ao aniversário do amigo de um amigo na Vila Madalena e estarem lá três moças, não mais de 20 anos, muito contentes por estarem lá. Talvez porque a maconha que fumavam estava enrolada em sedas transparentes, o que só por si já é bastante irritante. E a cara de felicidade nas miúdas quando perceberam que havia um mexicano, um francês e um português com quem podiam conversar! Gente, que da hora, né?

Bom, deu-se o caso de a conversa revelar que, se elas ainda tinham um neurônio na cabeça no início, fora competentemente assassinado pelo THC. O meu diabinho começou a espetar a espada quando elas sacaram um celular e se puseram a gravar a conversa como se estivéssemos a ser entrevistados para a rádio. "É que a gente faz sempre isso quando sai, sabe". Sei, filha, e também sei que devias ter levado mais açoites quando eras nova. Mas quando elas pediram "digam uma gíria do país de vocês que não tenha no Brasil" e, virando para mim, perguntaram "sabe o que é gíria?", o sangue ferveu-me a temperaturas nível Fukushima. O francês lá disse alguma gracinha, o mexicano também. E então o celular feito microfone de rádio virou-se para mim.

"Cunh..a...ni". Os olhos delas arregalaram-se de espanto.
"Chunhani? O que é cunhani?"
"Cunhani... é... é quando estás a cozinhar, derramas algo e dizes 'já fiz cunhani!'".
E elas viraram-se umas para as outras dizendo "nossa, lembra aquela vez que fiz cunhani no jantar do meu irmão? Cunhani! Que legal, gente!".

Só então me apercebi de todo o potencial do momento. E não consegui resistir. Posso ter comprado um lugar permanente e com vista panorâmica para o Inferno, mas tudo isso vale a beleza pungente do que se seguiu.

"Tem ainda uma palavra parecida com cunhani que também se fala em Portugal..."
"Qual?!"
"Cona. Sabe o que é?"
"Cona?! Não! O que é?"
"Então, cona é muito usado entre mulheres. Se você acha que tua amiga ou tua mãe está muito bonita, você fala 'você está muito cona'".
E eu juro que lágrimas correram pelo meu rosto quando nesse momento elas se viraram umas para as outras e disseram "nossa, amiga, como você está cona hoje!". "Ah, não, querida, você está muito mais cona do que eu". "Não, não, amor, você não está cona, você é cona!"

Pude então desligar-me da conversa. A minha função estava completa. Eu sabia que o acaso cósmico me tinha levado até aquele trio por alguma razão. A razão era aquela. E eu desejo ardentemente que uma pessoa que saiba mesmo o que é "cona" um dia ouça aquela gravação e se mije a rir tanto como eu me mijei. Se isso acontecer e eu souber, vou dar mil e uma graças a Deus. Ou ao Diabo.

A vida imita Scolari

Digamos que você, minha senhora, tem um carro e o vende. O carro vale, você sabe, 1000.

Ora, o seu irmão tinha deixado quadros na mala dele. Esses quadros, só eles, valem 2000. Você sabe tudo isso.

Mas você tem um problema de dinheiro. Assim, vende o carro ao seu vizinho. Vende-o por 500. Não sabe explicar porquê, uma vez que o carro valia 1000, mas vende. E não diz nada ao seu marido sobre os quadros.

Porém, o seu marido tinha-a ajudado a comprar o carro e tem a receber 50. Ainda assim, ele só pede 40. E ele também não sabe explicar porquê.

No final, o casal perde 2510 e nenhum sabe explicar porquê.

E quando o vizinho se atrasa a pagar os 500, eles dizem às pessoas a quem devem dinheiro que não conseguem prever muito bem quando vão receber, como quem não se importa muito.

Mais ou menos isto aconteceu entre o Governo Português, o BPN o BIC e Juan Miró. O BPN é o carro, o BIC é o vizinho, Miró é o irmão, o Estado é o casal.

E, como dizia Scolari, os burros somos nós.

Algumas opiniões sobre música house, reunidas em conversa com meu amigo Pablito

House faz-me querer levar um murro nos queixos só para sentir dor e saber que a dor é real.

House faz-me querer partir um copo e enfiar um caco no olho. E depois enfiá-lo no olho do Pablito. O sangue quente caindo pela cara far-nos-á sentir em comunhão com o caos organizado e pulsante da vida.

House faz-me querer dar um pontapé na cara de uma criança e, enquanto a vejo cair, chorar.

House faz-me querer estrangular o amor e enterrar as sobras num pântano de trufa, para que possa ser encontrado milhares de anos mais tarde em perfeito estado de conservação.

House faz-me querer comprar um kilt, para poder rasgá-lo e cavalgar um cavalo à chuva.

House dá-me vontade de comprar todas as revistas da Turma da Mônica numa banca e dá-las a crianças pobres com a condição de lhes poder tatuar "666" na testa.

House dá-me vontade de ver House na televisão. E depois dar um tiro de revólver nela e ficar triste por a série se chamar House e eu estar sem televisão.

House faz-me querer ir numa festa de formatura de uma escola espírita e espetar uma faca na coxa enquanto todo mundo dança à minha volta.

House faz-me querer pegar cachorros abandonados na rua e matar-lhes a sede com elixir bocal.

House faz-me querer organizar uma missa do sétimo dia em que no final toda a gente tenta partir uma piñata.

House faz-me querer mudar meu nome de Jorge para Pablito e dar o cu, só para poder dizer que o Pablito dá o cu.

House faz-me querer que o botão f12 sirva para detonar uma bomba atômica no atol de Mururoa.

House faz-me querer pensar na crueldade do mundo enquanto nado num mar de Pantene, caviar e cocó.

Coisas do Brasil: miojo


Há na arte culinária todo um capítulo à parte intitulado "cozinha para universitários". Fica no mesmo volume da "cozinha para homens solteiros", da "cozinha para pessoas que não se aprecia muito" e da "cozinha para pessoas que se aprecia, mas que por qualquer razão queremos pôr à prova para saber se gostam mesmo de nós".

Mas foquemos os estudantes por um instante. Quando eu estava na universidade, o prato por excelência era a massa com atum. Água a ferver, massa lá para dentro, atum desfeito depois. Ainda que não houvesse sal em casa, não importava, porque o atum tem um sabor Microsoft - que monopoliza tudo o resto. A massa enchia, o atum dava sabor. Matava a fome, era rápido e depois podia-se estudar, ou algo que universitários façam mesmo. Ora, eu tenho morado com muitos universitários aqui no Brasil e posso sinceramente dizer que, nas casas onde morei, não deve ter havido um único dia em que não se tenha cozido um miojo.

O miojo não existe só no Brasil. Eu já o tinha comido em Portugal, onde lhe chamamos massa instantânea. Cup Noodles é uma variante semelhante. Ou seja, miojo é uma massa rápida vendida em porções individuais e acompanhada de um pacotinho de caldo em pó que se deita na massa depois que ela está pronta. O caldo, confesso, é aquilo que me custa mais engolir (literalmente). A massa, inventada pelo senhor Momofuku - que só consigo imaginar que seja o equivalente japonês para "motherfucker" - começou a ser vendida no Brasil com essa marca. É barato. Os supermercados Ronda vendem-no a 60 centavos o pacote, por exemplo. Por isso, e por não exigir grandes cuidados de preparação, o miojo conquistou o país. A marca acabou, o nome ficou e ninguém se parece importar que seja quase igual à palavra "mijo". Que, aliás, é exatamente ao que a massa pode saber se se puser lá o pacote inteiro de caldo em pó.

Apesar de ser uma das iguarias mais simples do mundo, o miojo permite-se toda uma série de variações. Há quem tire a água e deite o pó na massa já no prato. Há quem ponha água a mais do que a receita impõe, para ficar com mais molho. Há quem ponha logo o pacote de caldo todo e quem não aguente nem um pouquinho dele. Há quem junte acompanhamentos na panela e quem os prefira fazer só no prato. Há quem coma miojo cru. E, claro, há quem junte atum.

O miojo, ao fim e ao cabo, é como a tela de um pintor. Importante, mas não é ela que define o que o quadro vai ser. O miojo é democrático: aceita tudo e a tudo se presta. Miojo é amor.

Mas massa instantânea não deixa de ser massa - e, bem vistas as coisas, um macarrão normal não demora assim tanto mais a cozer. A caraterística principal do miojo, bem como de toda a cozinha universitária, é ser prático. Então, aliemos isso aos nossos paladares gourmets. A minha versão pessoal do miojo nasceu do entendimento que não custa fazer um molho à parte com azeite, alho e tomate, escorrer a água em excesso da massa, deitar o molho por cima, ralar parmesão e salpicar com orégãos. Fica ótimo e só demora uns 15 minutos a preparar. Quem sabe, com cuidado até se pode usar o caldo em pó.

As pessoas que te falam onde duas estradas se juntam

Eles dizem que tu deves estar feliz, mas nunca te dizem o que é a felicidade. "Isso varia de pessoa para pessoa", dizem. Mas isso é que seria importante saber, não achas? Podes estar só contente. Podes viver a tua vida contente e isso ser uma máscara, ou petróleo lançado sobre o mar, turvando a superfície, impedindo-te de analisar a profundeza do lugar onde entras, não deixando que vás mais longe. Não é possível teres certezas. Eles não te dizem.

Eles também não te dizem o futuro, mas dizem-te que tens que te preparar para ele. Aquele acaso indefinido e pouco específico, que te ataca como uma avalanche lenta e de repente te faz dizer "estou no futuro". Mas tu sabes que o futuro é presente. Se o pensas, se o planeias, se o inventas. Porque podes inventar o futuro. Tu sabes. Estás a fazê-lo agora mesmo. Mas não vai dar certo. Tu sabes, não sabes? Não vai dar certo e, se der, muitas coisas podem acontecer. Pode não resultar mesmo como tu queres que resulte. Ou podes nem gostar dele. O futuro pode ser um resort de férias aonde chegas depois de poupares um ano inteiro e descobres que é chato. E eles não te avisam.

Eles dizem-te que a culpa nunca é deles e, se algo acontecer, eles não são responsáveis. Mas, se as coisas correrem bem, o mérito é todo deles. Eles não são de confiança. Vão-te dizer o que for preciso e ficar de longe a ver como te comportas com o peso que te puseram nas costas, como um miúdo que ata uma lata ao rabo de um cão e fica a ver o que ele faz para se livrar dela. Tu nunca te vais livrar do peso. Ele vai ficar contigo e lembrar-te de quem realmente és e, o mais triste, que um dia lhes deste ouvidos. E tu arrepender-te-ás desse dia para sempre.