Don Draper e eu

Mad Men ganhou há dias o Emmy de melhor série dramática pelo quarto ano consecutivo. O feito seria de respeito por si mesmo, mas é ainda mais impressionante se pensarmos que ela tem quatro temporadas. Ou seja, desde que começou, Mad Men nunca deixou de ser considerado o melhor seriado americano. E, mais impressionante ainda, é-o com merecimento.

Eu adoro Mad Men. A reconstituição histórica é avassaladora, não só pelos figurinos ou a direção de arte, mas porque reproduz com fidelidade um modo de pensar, principalmente o que foram as relações entre homens e mulheres num tempo em que não se pensava que eles poderiam ter papéis e comportamentos semelhantes. Os argumentistas são inteligentes e fazem coisas espantosas, como uma cena da terceira temporada que nunca mais me saiu da cabeça em que Don Draper, sentado ao lado da mulher vendo os filhos à volta de um Maypole, se apaixona pela professora deles quando a vê, livre, linda, dançando de pés descalços na relva. E como é que eles mostram que ele se apaixona sem uma única linha de diálogo? Fazendo-o pousar a bebida e tocar a relva. É uma escrita poética, subtil, inteligente. Mas há também uma razão pessoal que me faz não deixar de ver a série. Tem a ver com a personagem principal, o próprio Don Draper.

Sem entrar no terreno do spoiler, digamos só que Draper é um diretor criativo com segredos que tem de estar sempre - e mais do que qualquer outro - a vender a imagem do que ele é. Numa série sobre publicitários, nenhuma outra pessoa poderia ser a personagem principal: ele experimenta no conflito da sua vida o conflito essencial da atividade publicitária, por isso é que a domina tão bem. Brilhantemente escrito, brilhantemente interpretado por Jon Hamm, Draper tem ainda uma caraterística de que eu não me consigo desligar: ele é muito parecido com o meu avô que já morreu.

O meu avô chamava-se Eleutério. Nome antigo. Morreu há uns 11 anos. Como Don Draper, ele era um homem alto e bonito. Como Don Draper, ele fumava. Como Don Draper, ele era sério, mas emocional. Como Don Draper, ele tinha o cabelo curto com risco ao lado. Na casa dos meus avós, havia uma foto deles jovens pendurada na parede. Não era um retrato em que eles estivessem conscientes da câmara, mas um momento de descontração, longe da fronteira que ele guardava enquanto Guarda Fiscal e das atribulações do negócio de peixe que a minha avó montou sozinha. Estavam de pé, olhando um para o outro e sorrindo. O meu avô, gravata, cigarro na mão. Don-Draper-like-íssimo.

O meu avô era uma pessoa simples, de hábitos regulares, que não abusava de comida ou bebida e que foi deitado abaixo por causa de uma estadia longa demais no hospital por um problema que talvez não fosse tão grave. Foi o início de uma fase de uns dois anos em que o corpo dele foi de choque em choque até chegar no ponto em que já não se conseguia levantar da cama. Esteve muito tempo acamado, a mente atrofiou-se-lhe e morreu confuso, mas não senil. Ele assistiu com consciência à deterioração do próprio corpo.

Como eu já estava a estudar na Universidade, morava longe e nem sempre o via, mas lembro-me perfeitamente da última vez que estivemos juntos. As noras tomavam conta dele e eu fui lá com a minha mãe. Ele dormia e ela disse-me para eu o acordar. Fui lá, chamei-o, mas ele não me reconheceu. Estava acostumado a que a minha mãe o acordasse de certo jeito, por certo ângulo, com certa ênfase, e eu não os conhecia. Apesar de estar ali mesmo ao lado, as rotinas dos movimentos já tinham tomado conta dele. Deixei-o voltar a dormir até que a minha mãe chegou e lhe disse que eu estava lá. Ele virou a cabeça, viu-me e abriu-se num sorriso tão grande que eu pergunto-me se alguma vez verei alguém fazê-lo de novo só por me ver. Conversámos um pouquinho, disse-lhe que as coisas estavam a correr bem, que ia entrar em exames e não ia poder voltar durante um mês ou dois, mas que ele tinha que se pôr forte para quando eu voltasse. Ele sorriu de novo, orgulhoso por ver o neto mais novo bem, Direito em Coimbra, um orgulho. A minha primeira lição desse dia foi que às vezes basta viveres a tua vida para fazeres alguém feliz. A segunda começou no momento em que lhe dissemos que nos íamos embora.

O meu avô dava sempre uma nota aos netos quando o iam visitar. Às vezes, os meus pais reclamavam, "ele não precisa, não se esteja a incomodar", mas ele fazia questão. E, nesse dia, quando a minha mãe lhe disse que nos íamos embora, ele virou-se para ela e murmurou algo como "naquela gaveta, há notas, tira uma e dá-lhe". Aí fui eu quem reclamou. "Dás-me para a próxima, avô, daqui a umas semanas eu dou aqui um salto". Eu não quis aceitar, e ele não se podia levantar e dar-me a nota, senão tê-lo-ia feito. Acho que queria mostrar-lhe que estava independente, ou dar-lhe força para aguentar até à próxima vez que nos víssemos. Quando lhe fui dar um beijo e abraçá-lo, ele olhava-me com um sorriso de conformação. Ele sabia que provavelmente não me veria de novo. Umas semanas depois, antes que eu voltasse a Monção, morreu. Nunca mais o vi vivo.

A minha segunda lição desse dia foi perceber que aceitar o que te dão às vezes faz mais bem a quem te dá do que a ti. Ou seja, aceitar o que a vida te oferece é um segredo tão grande como dar-lhe o que ela te pede. São duas das coisas que estamos sempre a aprender, sempre, constantemente a aprender.

O cadáver do meu avô foi vestido de fato e gravata para o funeral. Elegante, como o Don Draper, por baixo da mortalha translúcida que o tapava. Toquei-lhe na mão. Estava fria e dura, como pedra. E essa foi a terceira lição. Aquilo já não era o meu avô, era outra coisa. Somos o que somos enquanto estamos na vida, esse é o nosso presente. Depois, o nosso corpo é só uma prova do passado. Como uma série de televisão. Ou, ainda melhor, como uma fotografia na parede.

Red Hot Chili Peppers em São Paulo, ou o turista rock

Sabem aquela coisa de turista e viajante serem diferentes? O turista frequenta, o viajante está. O turista quer conforto, o viajante quer experiências. O turista passa férias, o viajante passa riscos. Etc, etc, já entenderam. Basicamente, ponham um japonês de máquina fotográfica ao lado do Bill Bryson e está feita a distinção.

Ia mostrar agora a batalha de lama durante o show dos Greenday no Woodstock de 94, mas não simpatizo especialmente com Greenday, porque acho que eles castraram o rock e foram o peido que espoletou essa série de bandas de pop proto punk que andam por aí aos caídos, como os Blink 182. Por isso, vai o vídeo de Primus do mesmo festival.

httpv://www.youtube.com/watch?v=IaCXxqRNNcc

A espiral confusa e autofágica que o público faz e o fato de estarem pouco a cagar-se se a lama os suja desde que estejam no meio desse círculo moshante quase xamânico era normal. Grunge, início da era Clinton, anos de escuridão republicânica, extravasar a depressão criada pela felicidade synth pop dos anos 80.

Agora, vejamos este vídeo do show de ontem dos Red Hot Chili Peppers em São Paulo.

httpv://www.youtube.com/watch?v=V2J3Iz6aMJo

Este vídeo foi tirado da área VIP. Só por si, já é uma descoberta do caralho. A ideia que um dia um promotor de concerto pensou, "se nós criarmos uma área cercada à frente, conseguimos meter lá toda a gente que está disposta a pagar mais do dobro do bilhete normal só para ter esse conforto, para tirar fotos e ouvir melhor o som", foi tão boa como se Van Gogh tivesse cortado a orelha para ficar mais bonito. Rock é liberdade e energia - não é a porra de uma grade que te impede de ir para onde queres e te dá mau som se estiveres mais atrás. A ideia de um show como experiência terminou. Parece que vendemos uma simulação do que o rock foi em pílulas leves que qualquer um pode tomar, em vez do real deal.

Mais: contem o número de pessoas que estão a gravar o show com o celular/câmera. Dezenas. E isto só na área VIP. Eu, que estava na pista comum com o povo que só pagou 200 reais, queria moshar. Moshei pela primeira vez aos 15 anos em Vilar de Mouros. Cheguei a casa com a cara coberta de pó, funguei uma mistela negra durante 3 dias, mas, porra, senti-me vivo. E ontem mesmo os putos fixes com metade da minha idade que estavam ao meu lado só mosharam um bocadinho, durante a By The Way. Nem na Give It Away arrancou grande coisa. Ao menos não gravaram nada com o celular.

Ou seja: de 94 a 2011, alguma coisa aconteceu que transformou os ouvintes de rock em turistas de rock e tornou os Red Hot Chili Peppers, que no Woodstock de 99 foram acusados de incitarem ao estupro de mulheres e invasões e destruição de propriedade só por terem tocado a "Fire" do Jimi Hendrix, num espectáculo em que não se participa, antes se fotografa a partir da pista VIP. Um espectáculo equilibrado, em que se sabe o que vai ter, e que não é mau, mas não surpreende. Porque não tem descontrolo. E o descontrolo importa muito nestas coisas.

O café Santa Cruz em Coimbra

Tenho-me lembrado dele. Um café antigo, em que os empregados andam de uniforme, construído na antiga sacristia da igreja com o mesmo nome. Parece um daqueles lugares que se vê nos guias turísticos de Praga: reposteiros, paredes de pedra, antecâmaras altas, espelhos debruados. O corpo de Dom Afonso Henriques está sepultado lá ao lado enquanto turistas, estudantes e os advogados das redondezas tomam cafés, águas e a dose diária de álcool. Há quem escreva coisas em caderninhos. Eu fi-lo. Tê-lo-ia feito mais, se ainda assim ele não fosse caro para bolso de alumni.

Um dia, entrou lá o Hélder Wasterlain e sentou-se na minha mesa. Trocámos as novidades e então ele disse-me "Olha para cima". Nunca o tinha feito, nunca me tinha lembrado. O teto é escurecido, negro, como se tivesse sido queimado com um maçarico gigante. "Fumo", disse ele, "primeiro dos incensórios, depois dos cigarros". Décadas e décadas de cigarros fumados por baixo daquele teto maciço criaram uma capa negra (muito a la Coimbra) impressionante. E essa colaboração inconsciente dos clientes do Santa Cruz teve o efeito precioso de impedir que a pedra erodisse e caísse em pedaços sobre as mesas.

Às vezes, comportamentos aparentemente viciosos podem aguentar algo durante anos e anos. Isso é assim para o teto da sacristia de Santa Cruz. E também o é para pessoas.

Angry Birds e o mundo


A natureza humana é adorável, porque é sempre contraditória. A única certeza que todos temos é que os nossos dias neste mundo estão contados, ninguém conhece a conta certa e temos de aproveitar todos os momentos, porque podem bem ser os últimos. E, ainda assim, ninguém hesita em "matar tempo" de vez em quando. Matar tempo, como se nos vingássemos daquilo que, no fim das contas, nos matará a todos. Mas isto não é desconsideração. Impérios são construídos à volta da matança de tempo. O Facebook é um exemplo. Qualquer atividade artística, na criação ou fruição, também.

Um dos casos mais marcantes de matar tempo da modernidade é o Angry Birds. Neste jogo, atiramos pássaros contra edifícios rudimentares construídos de gelo, madeira e pedra, para fazer explodir uns seres em forma de balão gelatinoso. Os pássaros variam de peso e poder. Alguns multiplicam-se em três, que nem zagalotes de caçadeira. Outros podem explodir como bombas e outros têm a capacidade de ganhar um efeito turbo especialmente destruidor a meio do salto. O jogo é simples e ingénuo, mas eu acredito que muitas coisas se escondem nas suas entrelinhas. Sim, isso mesmo. Angry Birds é metáfora.

A primeira coisa que eles nos ensina é que pássaros não têm que ser os bichos pequenos e delicados a que estamos acostumados. Sim, pássaros podem ser maus. Sim, pássaros podem ser fortes. Sim, pássaros podem estar zangados. Hitchock já nos tinha dito tudo isto, mas há uma diferença: em "The Birds", os pássaros são a mão do mal. E em Angry Birds nós próprios os manipulamos para os ajudar a chegar ao seu objetivo. Ou seja, o Angry Birds diz-nos que as armas mais fortes estão onde menos se espera. Angry Birds é auto-ajuda.

Ao mesmo tempo, o Angry Birds mostra-nos que o trabalho em equipa pode destruir o edifício mais forte. Uma espécie de "fuck you, I won't do what you tell me" subliminar, o que é de louvar, pois muita criançada joga isto. Angry Birds é um instrumento fundamental na aprendizagem da próxima vaga de anarquistas. Por isso, Angry Birds é política.

O Angry Birds também nos diz que a destruição é uma força tão grande no mundo como a criação. Afinal, eles só estão zangados porque uns seres gordos, verdes e repugnantes lhes roubaram os ovos. Demolir os edifícios e matar os vilões significa recuperar a ninhada e a nova geração de birds, que, espera-se, serão tão angry como os pais. Ou seja, a destruição abre o caminho para uma nova criação - exatamente o papel que o deus Shiva tem no Hinduísmo. Assim chego à minha última conclusão: Angry Birds é cultura. Viva o Angry Birds.

Coisas do Brasil: catupiry e chocolate


Aprende-se na catequese e na igreja e nos vídeos do padre Marcelo Rossi que Deus é diferente, porque é omnipotente, omnisciente e omnipresente. Das primeiras caraterísticas, não tenho muito a dizer. Mas na terceira, no Brasil, ele não tem o primeiro lugar indisputado. Duas coisas estão, se não mais, pelo menos tão presentes na vida neste país: o catupiry e o chocolate.

Há dois momentos na vida de um homem: antes de ele saber o que é catupiry e depois. A coisa parece respeitável de início. Uma espécie de creme de queijo, um pouco à la Philadelfia, mas sem sabor sintetizado, inventado por um italiano em Minas Gerais há 100 anos. Um amigo mais velho disse-me que o catupiry não é assim tão antigo na sua ubiquidade. Foi só nos últimos 20 anos que a hotelaria descobriu todo o seu potencial e o começou a utilizar em tudo o que é possível. Hambúrgueres, sanduíches, tortas, pizzas, coxinhas e todo o tipo de salgados, acompanhamento em dezenas de pratos, doces e sobremesas várias. A sofisticação das casas vê-se no fato de utilizarem "o verdadeiro Catupiry" ou só um sucedâneo e "com ou sem" catupiry é uma pergunta da praxe em qualquer lugar que venda comida. Ou seja, no Brasil há toda a comida, por um lado, e, pelo outro, há catupiry. Ele é um continente à parte. Se fosse um país, era a Austrália.

Foi numa novela brasileira que ouvi pela primeira vez a expressão "chocólatra". Era uma dona de casa loira que, se me lembro bem, enganava o marido. E, se é verdade que nunca deixará de haver maridos cornos, também o chocolate não vai abandonar o Brasil tão cedo. O brigadeiro é o doce nacional por excelência; comer brigadeiro de colher (que todo mundo come da mesma panela, juntando o prazer do chocolate e do açúcar ao da saliva dos amigos e colegas de trabalho) é um ato comunitário só comparável à matança do porco. Bombons aparecem do nada, como os ratinhos que dantes se pensava nascerem em caixas fechadas com palha dentro. Brownies são devorados diariamente pelas ruas. Há quem não tome café, mas não abdique do cupcake depois da refeição. E os cardápios de sorvetes afixados em padarias têm uma monotonia cromática tão forte de cacau que os designers gráficos devem odiar fazê-los. Não é o etanol que faz o Brasil mexer-se. Não é o samba ou o futebol. É o chocolate.

A minha pergunta é: porque é que o catupiry e o chocolate nunca se encontraram. Talvez numa pizza, algum dia, alguém o tenha feito. Talvez um dia um molho de chocolate tenha caído sobre uma torta com catupiry, alguém provou e disse "hmmm, que bom, descobri algo novo". Se isso aconteceu, eu quero saber. Contem-me. Pode ser que façamos negócio.

Sério, você estuda na Usp?

Um poema novo que li ontem no ZAP!.

Sério, você estuda na Usp?
Eu estive na Usp já
olhando as árvores tapar a estrada
cheia de carros parados por onde
os líderes médicos doutores futuros desse país e além fronteiras
derramavam seus excessos
porque os banheiros estavam fechados
e eu pensando
"estou vendo os futuros líderes desse país e além fronteiras
mijando e cagando e vomitando
indefesos como eu fui
nus como eu já estive
quando há muito tempo eu pensava ainda
que o futuro é previsível e eu
sou mais que um joguete
bola de gude invisível
atirada das mãos do acaso".

Que legal, você estuda na Usp.
Como você sabe, né
Como você olha com olhos que sabem
toca com mãos que sabem
fala com boca que sabe enquanto
teu corpo se esparrama pela terra
e faz malabares com fitas noturnas
alguém te pôe na boca o remédio da alice
és a melhor pessoa do mundo
teus olhos brilham
tu sorris
podemos ser diferentes
essa noite
do que somos no resto do tempo
podemos nos ver um no outro como quem se olha num lago e sabe
que as ondas vão e vêm distorcendo-nos como pensamentos
e talvez amanhã acordemos
e te sintas vulnerável no silêncio
que nos cobre
no lençol
que nos cobre
sempre o mesmo lençol que me cobre
sempre e cobre e sobe sempre
mais alto até me tapar completamente
e estares
vulnerável no silêncio e nua e eu
indefeso sem segredos
sufocado
e teu

Mas eu sou só este momento
dente de leão transformado a cada golfada de vento
e você estuda na Usp
és mais o que vais ser do que aquilo que és
teu futuro é grande
e eu não caibo na mesma sala que ele
tens muito para fazer na vida
tens uma orientação política de esquerda a alimentar
com o dinheiro que toda semana teu pai dá
e anos até descobrires que nada no mundo é bonito
ou bondoso e tua vida é só a estrada possível
por entre árvores cruéis de carne e sangue
e gigantes cínicos falando merda
por isso fala coração fala
amanhã combinamos algo
não te preocupes
sucesso
combinado
e até mais

Coisas do brasil: como usar o papel higiénico

httpv://www.youtube.com/watch?v=OrWcEGDXOUg
Nesta cena desse clássico da Sétima Arte intitulado "Demolition Man", Stallone, que interpreta um polícia do século XX conservado criogenicamente e reavivado décadas depois, descobre que no futuro já não se usa papel higiénico, mas três conchas - que, obviamente, ele não sabe usar. Com as devidas diferenças, ela veio-me à memória há meses, quando o dono do lugar onde moro me perguntou "vocês lá na Europa jogam o papel na privada, né? Aqui não pode". A sensação de, de súbito, um hábito íntimo praticado desde a infância ser posto em causa é avassaladora. Como não se pode jogar o papel na sanita?! Não estamos falando de folhas de papel duro, de embalagens, mas de fino, frágil e dissolvível papel higiénico. Como tudo no mundo, até o novo partido suiço que quer abolir o uso de Powerpoint, há boas razões. As descargas brasileiras - ou seja, os autoclismos - não são muito potentes e uma acumulação de papel mínima pode significar entupimento. Por isso, a técnica consiste em efetuar a limpeza, dobrar o papel para não ficar a cheirar mal e pôr no cestinho do lado, que será mais tarde esvaziado por duendes do pântano que vão deixar uma moeda de ouro por cada depósito. Ou não. Seja como for, como a Internet é para facilitar a vida, aqui fica o conselho para quem se quiser aventurar por terras tupiniquins. Não deixem cair o papel na água e, acima de tudo, não se esqueçam de lavar as mãos depois. Ser arrumado é bom, mas ser lavadinho é fundamental.

Isto hoje equivale a cantar o hino nacional

httpv://www.youtube.com/watch?v=G1JFTK69wMA
Se é para ser assim, talvez fizesse mais sentido votar no presidente da Moody's do que no da República, não?

Ontem à noite

httpv://www.youtube.com/watch?v=bgdy8OJ_tmM
Eu sonhei que ela sabia tocar piano. Enquanto coisas terríveis aconteciam no mundo, homens maus faziam maldades às bondades dos homens bons, ela sentava-se ao piano e tocava. Às vezes, duas pessoas com quem ela trabalhava sentavam-se ao piano com ela e tocavam as três juntas, uma delas murmurando qualquer coisa, como o Glenn Gould. Era Bach, via-se nisso e nas teclas que premiam, mas não conheço a canção.

Também sonhei com Cesariny e com versos breves com perguntas. Vi os versos, curtos e a terminarem com pontos de interrogação, a resposta imediatamente depois, mas eu não sei se alguma vez Cesariny escreveu um ponto de interrogação num verso. Assim de cabeça acordada, não me lembro. Mas no sonho ele fazia perguntas e dava as respostas, como uma conversa contigo mesmo que estás sempre a fechar e a recomeçar porque te lembras sempre de algo novo a perguntar. E eu apercebo-me agora que há pessoas que me lêem que não sabem quem é Cesariny. Cesariny é um poeta português, um dos que fez o Surrealismo, e que escreveu coisas como
Vem, Vulva antiqüíssima e idêntica
Vulva Rainha nascida destronada morta
Vulva igual por dentro ao silêncio, Vulva
Com teus pentelhos lantejoulas rápidas
No teu Ôlho franjado de infinito.
no Virgem Negra, um livro que se propõe explicar Fernando Pessoa às criancinhas, mas também escreveu
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
em You Are Welcome To Elsinore. Elsinore era o castelo do Hamlet, mas nem toda a gente se lembra. Nem eu me lembro às vezes. Quando atuei no São Luiz agora da última vez que estive em Portugal, mesmo na véspera de voltar para o Brasil, só o JP Simões se lembrava. E por acaso não sei se o JP Simões sabe tocar piano, acho que nunca o vi tocar piano. Talvez uma vez, em Coimbra, a tocar a Living Room. Será? Seja como for, não era Bach, esse era outro sonho e uma outra pergunta. Este texto é a resposta.

Tudo o que precisas saber

Podes ter uma vida só, que não se mexe e não sai do lugar.

Podes ter muitas vidas ao mesmo tempo. Isso não é necessariamente bom. Uma pessoa que conheci em tempos e que hoje passa na TV e tudo disse-me que tu podes ser qualquer coisa que quiseres, desde que sejas suficientemente bom a manipular a aparência do que és. Eu quis acreditar que a essência é mais importante, mas isso não é verdade. Tu não tens controlo sobre a tua essência. Tu és aquilo que o mundo te deixa ser e só podes decidir o resto dentro desse quadro de limites. Se cresceste a ouvir coisas más sobre ti e com a paranóia de que te comentassem, vais aprender a ligar pouco às opiniões dos outros. Vai ser a tua estratégia de sobrevivência. Claro, isso faz-te dizer "o importante é o que sou". Mas tu só o dizes em reação ao fato de não poderes contar com ninguém. Se o mundo te ensinou a estares sozinho, é isso que vais aprender, quer queiras quer não.

Podes ter muitas vidas seguidas. Podes ser um pai e um marido num determinado lugar e tempo. Podes estar sem família e sem amigos noutros. Não é tão impossível que, num ano, sejas engenheiro e Israel e no próximo um vagabundo em Barcelona. Não é mesmo impossível e, quando for assim, vais pensar em tudo aquilo que já foste antes. Filho dedicado, mau trabalhador, bom trabalhador, agredido, agressor, santo, assassino, contabilista dos dias, pintor da vida dos outros. Tudo isso se soma. Tu estás sempre a superar o que foste, a caminho de algo que não prevês nem antecipas e, provavelmente, não desejas particularmente. É uma viagem cujo destino te é escondido: uma versão ou sequela, não particularmente valiosa ou especial, do que já és. As memórias, tem-las sempre. E a esperança também.