18h15

Eu espero um ônibus. Já faz noite. O primeiro aparece com uma caixa na mão. "Moço, compra uma bala". Dentro da caixa, embalagens de rebuçados coloridos. Digo que não. Reparo então: ele tem os olhos marejados de lágrimas. Vira-se para trás. "Anda, Henrique". O irmão aproxima-se. Pequenino, quatro anos no máximo. Eles afastam-se, o maior claramente liderando. Está frio em São Paulo, eles não estão mal agasalhados. Têm camisolas, o mais novo tem um casaco vermelho, estão bem lavados. Se são moleques de rua, alguém toma bem conta deles, ainda que seja só eles mesmos. O maior vê algo no chão, aponta, o mais novo apanha. O que é? Não se vê, mas o maior faz que sim com a cabeça. É coisa boa, alguém jogou fora, alguém perdeu, não interessa, agora é deles. Penso que lhe devia ter perguntado porque chorava e dado uns trocos, mas agora é tarde. Eles estão lá longe, entre a estação de serviço e a cafetaria com as paredes cobertas de revistas finas,  e eu penso que estes são dias que o Henrique nunca mais vai esquecer: os dias em que, bem abrigado, andava pela rua a vender balas com o irmão mais velho.

As pequenas diferenças

Parece mentira, mas já estou em São Paulo há 21 dias. O primeiro mês do meu visto está quase a esgotar-se, o que parece justo, já que uma parte substancial dele foi passada a tentar registrar esse mesmo visto na Polícia Federal - ou PF, para os amigos. Por outro lado, PF é também um sistema de restaurante (Prato Feito, diferente da comida a peso), para além, é claro, das Produções Fictícias. A Ana hoje percebeu um padrão nas minhas ocupações: Cabra, Bode Expiatório; Produções Fictícias, FICs. Estou mortinho por descobrir o que vai emparelhar com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro.

Tenho-me lembrado muito desta conversa durante estes 21 dias. É tudo um bocadinho diferente em São Paulo, apesar de ter tudo o que Portugal tem menos a língua. Um x-acto é um estilete, uma rotunda é uma rotatória, um rissol é um risoli. Pastéis de bacalhau rareiam, mas há coxinhas. Ninguém pergunta se queremos factura, mas nota fiscal paulista. Não há c's e p's nas palavras. As vogais são abertas como uma fronteira sem PF. Há cromos do Mundial, mas chamam-lhes "figurinhas" e aos Sábados centenas de pessoas vão para baixo do MASP trocar zagueiros por goleiros. Bebe-se muita cerveja, mas nos cafés, que se chamam lanchonetes, é preferível comprar uma garrafa grande e dividir. E nas caixas automáticas, que não servem para todos os cartões, não dá para carregar o telemóvel, que se chama celular,  mas nas caixas de supermercado e nas bombas de gasolina já dá.

Na 3ª feira da semana passada, cansado de ser estrangeiro, apeteceu-me ir jantar a um lugar (e não digo "sítio" porque sítio aqui é fazenda) onde não tivessse que aprender nada. Um lugar onde não tivesse de me confrontar com termos como bauru, virada, açaí, catupiry. Um lugar que fosse um vazio cultural, onde comer fosse quase intuitivo, mecânico e sem prazer. Mas onde encontrá-lo? Felizmente, perto de nós, há-de sempre haver um McDonald's.

Fui no da Rua Augusta e entrei. Tudo muito normal e calmo: os vermelhos, os amarelos, os brinquedinhos e as coisinhas todas para atrair crianças para os poliinsaturados desde o berço. Há Big Tasty? Há, e chama-se mesmo assim: não preciso de dizer "le Big Tasty". Pego no meu hambúrguer, pego na minha cola (que cá é mais "coca"), pelo nas minhas batatas (que cá são mais" fritas") e sento-me. Ah, o prazer de comer comida igual em todo o mundo, com aquele inconfundível sabor a fritonguice a jorrar de todos os poros, das pontas afiadas das batatas, dos molhos enfiados no pão, e empurrar tudo com um grande golo de...

Falta-me a palhinha.

Tudo bem, não há-de haver problema, há mais no balcão. Levanto-me, ando até lá e pergunto à menina Olhe, por favor, queria uma palhinha. Ela não percebe. Não faz mal, é do barulho, há mais gente a ser servida nas caixas ao lado. Quero uma palhinha, por favor, e neste momento já puxo pelo sotaque brasileiro. Ela continua a não entender. Então, fecho uma mão, estico o mínimo e o polegar, mínimo para baixo e boca no polegar, e digo, com as vogais todas abertas e sem c's nem p's pelo meio, Uma palhinha! Para beber! e a moça exclama Ah! Um canudo! Aqui tem!

Um canudo. Um canudo. Um canudo. E aí eu lembrei-me do "mostrar" e de como o PT-BR do Consulado de Lisboa é ainda mais diferente do PT-PT. Quando em PT-BR consular vos dizem que é necessário "mostrar" o protocolo na PF depois de chegar, isso significa preencher uma GRU na Internet, pagá-la num banco ou casa lotérica, tirar duas fotos 3x4, preencher um formulário chato, tirar fotocópias ao passaporte, chegar na fila pelas 7 da manhã, entrar e entregar tudo para depois ter que esperar até às 15h com uma senha que não se pode perder para tirar impressões digitais, reaver o passaporte e um talão que comprova que já se está legal. Isso, claro, se não houver um problema nos documentos com o nome da mãe, porque, nesse caso, é preciso ir ao consulado português pedir uma nota consular e perder mais uns dias de trabalho numa sala com o único atractivo de se poder conversar com uma data de bolivianos que por cá andam a tentar a sorte.

Saí do McDonald's com as mãos sujas de gordura. Saí da Polícia Federal com as mãos sujas de tinta. Essa é a conclusão possível: isto deixa marca.

Lula para todos

Uma refeição completa e bem saborosa (frango guisado, feijão, arroz, jardineira, salada, sumo de kiwi e, para sobremesa, um fruto que é um diospiro, seja lá qual for a palavra acabada em i, u ou ã que por cá se inventou) num Bom Prato, um dos restaurantes sociais criados pelo senhor Lula para acabar com a fome, incluindo a de portugueses que vão à Lapa registrar o visto: 1 real.

Um café expresso na Casa do Pão de Queijo ao lado: 2 reais e 40 centavos.

Ir ao Bom Prato da Rua Afonso Sardinha é como ir à cantina em Coimbra. Aliás, a fila estava cheia de gente de todas as carteiras, desde vagabundos a antropólogas em doutoramento, passando por estudantes universitários, aposentados, lojistas, os motoboys que estacionam por ali, os empregados das lojas das redondezas... isso ajudou-me a ultrapassar o remorso prévio que me atacou. É que um Bom Prato não tem hora certa para fechar - abre às 10h45 e fecha quando as 1500 refeições que disponíveis acabarem. E eu lá pensava "se calhar, vou estar a tirar a refeição a alguém que precisa mais". Afinal, não. Aquilo é mesmo de todos.

Sobre a minha participação como guionista no filme "Um funeral à chuva"

As notícias sobre o filme Um Funeral à Chuva, que estreia hoje em Portugal, e principalmente uma entrevista publicada ontem no blog do João Nunes onde o meu nome é mencionado, levaram a que eu e o guionista Luís Campos fôssemos questionados  sobre a possível existência de atritos entre nós e sobre a minha posição neste processo. Para esclarecer os mal-entendidos, fica aqui uma explicação breve.

Em 2006, logo após ter escrito a curta Utensílios do Amor para o realizador Telmo Martins, produzida por aquilo que viria a ser as Lobby Productions, foi-me passada uma história original sobre o reencontro de estudantes universitários na Covilhã com a missão de a transformar em guião. Na altura, fui pago com uma soma justa e, ao longo de dois anos, escrevi mais dois drafts enquanto a produção tentava conseguir fundos pelas vias normais dos subsídios públicos, a fundo perdido ou não. Em 2009, após uma aprovação com reservas pelo FICA, eu desliguei-me do processo e a Lobby decidiu passar o guião ao Luís Campos para uma reescrita. O Luís foi mais longe e transformou o guião em algo novo, algo dele e, naturalmente, mais próximo da visão da produção, já que todos eles foram estudantes na Covilhã e partilhavam um património comum. Após uma rejeição desse guião pelo FICA, a Lobby decidiu avançar para a produção da maneira heróica que é conhecida, e agora o filme está aí a estrear em 20 salas por esse Portugal fora.

Não tenho qualquer tipo de conflito com o Luís Campos, com quem troco guiões e opiniões frequentemente e que considero um excelente profissional. Enquanto excelente profissional que também penso ser, acredito que, num mercado audiovisual maduro e saudável, a reescrita deveria acontecer mais vezes e, arrisco, de forma bem mais conflituosa (quando se justificar um departamento de arbitragem na APAD semelhante ao da WGA, o negócio vai estar bem). De resto, o assunto resume-se a isto: eu fui compensado e a minha contribuição criativa creditada; o Luís escreveu o guião de uma longa-metragem com resultados felicíssimos, tão eficaz que foi o empurrão final para a concretização do projecto; e a Lobby, depois de muitos sacrifícios durante 4 anos, produziu a primeira longa-metragem independente de qualidade em Portugal, estreando em 20 salas da Zon/Lusomundo. Acredito que o futuro da produção audiovisual portuguesa passa necessariamente pelo modo como se trabalhou em Um Funeral à Chuva e, aqui do meio da selva de pedra paulista, espero que o público o veja e aprecie.

Tou ficando atoladinho

Um autocarro de São Paulo não passa em muitas ruas. Primeiro, porque se é autocarro em São Paulo é ônibus. Depois, porque as avenidas são tão longas que é mais fácil fazer piscinas do que começar o corta-mato. Subir e descer a Paulista à procura da minha paragem foi um passatempo muito agradável para a minha manhã.

Por falar em Paulista, depois de me ter sentido como um alcoólico no meio da maior adega do mundo, prometi a mim mesmo que não voltava à Livraria Cultura. Mas aquela autobiografia do Tom Zé estava mesmo com cara de quem não se ia ler sozinha.

Um tecnólogo é um técnico, pereba é um atleta mau, não tem choro nem vela é não ter alternativa, um dia pode ser pipi se for problemático e isso é massa véio se for bom, porque se for mau é paia - assim parece que os traficantes de droga definiram. Os polícias andam com rojões, mas quem comem são os outros.

Felizmente, encontrei café numa lanchonete - muito insípido e muito doce, mas já estava prevenido. O senhor era simpático, principalmente porque lhe comprei pão de queijo, uma linguiça, um pastel de carne dentro do que sabia a pão de leite e uma paçoquinha. O jet-lag vai melhorando dia após dia. Hoje o meu cérebro já só estava três horas adiantado.

Brasil via Alemanha

A ver a fila que se fazia para o avião em Frankfurt, percebi: isto é outra gente. Todas as cores, tamanhos e expressões e todos a falarem a mesma língua, a partilharem o mesmo país. Num guia que li há dias, dizia-se que o passaporte brasileiro é dos mais cobiçados no mercado negro, porque qualquer um passa por brasileiro. É algo que eles têm em comum com os habitantes do Vaticano, tirando o facto de estes usarem hábitos e não treparem com adultos. É algo que não têm em comum com os habitantes de Frankfurt, que são invariavelmente mulheres, mal-dispostas e trabalhadoras em estações e aeroportos. Nunca vi gente com tão má vontade de dar indicações, esclarecer, ser simpático. E gostava que acabassem já com o mito de que os alemães são um povo muito organizado. Eles não são organizados, eles organizam é tudo segundo uma lógica que está muito clara na cabeça deles, tão clara que questioná-la é questioná-los a eles. Mas os homens não são tão maus. Enquanto esperava a ligação, comi um gulash, umas salsichas (frankfurter, evidentemente) com salada de batata, uma cerveja e um expresso, tudo servido por um homem tão simpático que não hesitou em trazer-me tudo ao mesmo tempo. Talvez sejam assim os frankfurtianos: prestáveis, mas toscos. Isso, claro deve ser chato para as mulheres. Assim fica tudo explicado.

Em trânsito

Tu gostas da viagem. Sempre gostaste de aeroportos e estações, porque um aeroporto é sempre um local onde alguma coisa começa, seja a viagem ou tudo aquilo que vem a seguir. Quando vais levar alguém, gostas de ficar sempre mais um bocadinho, antes ou depois, só para ver as pessoas passar, notar-lhes as expressões e pensar no que estará a começar para elas. O problema, portanto, não é a viagem, mas o facto de a cabeça não parar e de te estar constantemente a anotar os fins. Esta é a última viagem de Metro. Este é o último jantar no restaurante aonde costumas ir quando estás sozinho. Esta é a última vez que passas a esfregona no chão de casa. A última coisa que entra nas malas, a última coisa a imprimir, a última mensagem. Esvazias a carteira, tiras tudo aquilo que não te vai fazer falta ou já estava a mais e ia continuando lá por inércia, e pensas "Metade das coisas que trago comigo só servem para deitar fora" e tu pensas "O que mais poderia caber nesta divisão?". Trabalho? Afectos? Memórias? Mas depois há o momento em que paras de pensar e as coisas deixam de acabar. É quando a viagem começa. E por isso mesmo esta é a última palavra deste texto.

O criado brasileiro

Naquela fase de me ir orientando, deparo-me com o seguinte anúncio: O quarto é bem iluminado, tem uma cama box casal, uma mesa para tv e um criado mudo. Luz e mesa para tv é claro; cama box casal também se percebe; mas criado mudo?

Saber que é uma mesa de cabeceira é muito menos excitante do que  a perspectiva de, no escuro, ir depositando porcarias na mão de um desgraçado que não consegue dizer "que merda do trabalho".

Papa

Um grupo de católicos espanhóis teve um acidente. O autocarro que os trazia a Fátima e ao Papa Bento XVI ia entrar numa estação de serviço, falharam-lhe os travões e espetou-se contra o rail de protecção. Aparentemente, iam todos a rezar e o meu comentário irónico foi logo se calhar, não estavam a rezar bem, mas o líder do grupo apareceu então a dar a perspectiva também razoável de que foi graças à Senhora de Fátima que não houve consequências de maior, para além de uma rapariga com um hematoma nas costas e outra que teve uma quebra de açúcar. Assim, só essas duas raparigas estariam a rezar mal. A Senhora de Fátima não os livrou de serem espanhóis, mas isso já é outra conversa. Ironias à parte, não se pode ter senão respeito por quem é capaz de fazer centenas de quilómetros, castigando corpo e alma, para se despojar, para suplicar algo com toda a força possível. Os putos dos Tokio Hotel têm muito a aprender.

Monção

Esta terra é três cores: verde, castanho e cinzento. Vêm das árvores, da vinha, da terra e do céu. Se fecho os olhos e me quero lembrar, a imagem é a de encostas cheias de pinheiros e fasco, atravessadas por caminhos de terra batida que, do que devem ter custado a conquistar, bem podiam ser feridas abertas no chão. O som da televisão ao meu lado ou do rádio na cozinha a atravessarem o silêncio enorme, aquele em que aprendi a pensar, a inventar histórias na minha cabeça, a fechar-me. Sabemos que estamos todos sozinhos no meio deste silêncio, somos desconfiados. As ligações com os outros são acidentais, corpos que se encontram ao calhas no meio de percursos aleatórios. Uma vez disseram-me que Torga chamou ao Minho o inferno verde, mas isso não está certo. O Inferno deve estar cheio de ruído. Em Monção não pára de chover.