O dinheiro

Sempre que gasto dinheiro, percebo: nada é mais fácil. De uma maneira ou de outra, se não há notas há cartão, se não há cartão dá-se algo de penhor, vai-se levantar, faz-se o resgate. Um advogado da Figueira da Foz contou-me que uma empregada dele dizia "o dinheiro não é de quem o ganha, é de quem o poupa". "Uma senhora com a terceira classe", sublinhava ele. Não sei mais do que isso sobre a mulher, mas dele sei que era filho de pescador, que um dia o pai não voltou da faina quando era esperado e que se lembrava de ir para a praia de madrugada com a mãe e a tia mais as mulheres dos outros a pensar que podiam estar viúvas, e que de madrugada gritaram contra o mar e Deus e a vida e o futuro que não sabiam, choraram aquela forma de desespero que não compreendemos, aquela em que não há culpa, só o reconhecimento da nossa derrota no jogo contra o acaso. E gastar dinheiro é isso, é uma certeza recorrente e acessível, como uma bebedeira, uma oração ou a Construção do Chico Buarque. O vício ocidental de gastá-lo não tem a ver com o que se compra, mas com a certeza que comprar implica. Certezas num mundo caótico são coisas raras. E caras também.

Cais

British Bar. O retrato do Cardoso Pires lá em cima, e eu perguntando-me se ele terá estado sentado na mesma cadeira, bebido uma Budweiser checa de pressão porque não têm de garrafa e não há por que sentir pena. De certeza que não estava a dar luta livre feminina  num televisor de canto de parede, que os empregados não eram os mesmos - ou será que estava, ou será que eram? Antes, passear ao lado do Cais do Sodré, ouvir o ar atravessar os respiradouros no chão, ser respingado pelos pingos daquela respiração de animal velho que luta contra a morte, lutou todo o tempo contra a morte. Lá ao fundo, a água muda de cor no momento em que deixa de ser da terra, em que se liberta e transforma em algo de selvagem e elementar que homem algum tocou. Imaginar nadar através dela, o momento em que o corpo muda de água para água. Os barcos ao longe, levando pessoas de uma margem para a outra e eu pensando: "nunca fui à outra margem de barco". Mas, pensando melhor, "nunca" também é longe demais.

SÓ HOJE: PORTES DE GRAÇA NA BUBOK



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Mas, já agora, se não o fizerem... comprem este, que é provavelmente do melhor que lá anda.

Amador

Hoje estive na Loja do Cidadão a pensar no tempo fenomenológico e como os minutos passam tão devagar quando se está à espera e tão depressa quando se age. Por isso, decidi sair e agir e, portanto, fui a um sítio aonde nunca tinha ido: à livraria do Teatro Nacional D. Maria II. Não é o sentido mais vantajoso para a expressão "tempo é dinheiro", mas encontrei a revista n.º3 dos Artistas Unidos, de que andava diletantemente à procura desde que em 2007 fiquei de boca aberta a ver a peça Amador - e, não, isso não quer dizer que bocejei, mas que fiquei pasmado com aquele quase-monólogo e muito curioso sobre o modo como a peça estaria escrita. Depois de uns 15 minutos à procura nas coisas do Jon Fosse, lá descobri que a peça é na verdade de Gerardjan Rijnders, que eu nunca conheci, mas que de certeza possui um grande par de testículos, pois qualquer pessoa que escreva uma peça quase em verso que começa com a indicação "o texto representado pode divergir do texto publicado" e contém a didascália "(peter faz amor com a mãe, orgasmo)" só pode ter um grande par de testículos. E isso não impediu que ainda tivesse de voltar à Loja do Cidadão e esperar que umas 100 pessoas fossem atendidas até chegar a minha vez, orgasmos não incluídos.

"Introduction" ("Cruel Shoes", de Steve Martin)

Vais por uma estrada campestre. Está uma tarde tranquila. Olhas lá mesmo para o fundo da estrada e vês alguém a andar na tua direcção. Estás surpreendido por teres percebido uma pessoa a tão grande distância. Mas continuas a andar, não esperando mais do que um aceno amigável quando se cruzarem. Reparas que ele tem cabelo laranja e brilhante. Está mais perto - um fato de cetim branco com pontos coloridos. Mais perto - uma cara pintada de branco e lábios rubros. Tu e ele estão a cinquenta metros de distância. Tu e um autêntico palhaço com uma buzina, separados por vinte metros. Aproximam-se na solitária estrada campestre. Tu acenas. Ele buzina e passa.

Táxi Mistério

Fiz a viagem até Lisboa a dormir. Dois dias a trabalhar até tarde deram cabo de mim a um ponto de me encontrar perdido no meu cansaço, como se acordar de repente quando as luzes da auto-estrada me batiam na cara fosse emergir de surpresa em água gelada, vir à tona ganhar respiração quando já não se pensava sair. Foi nessa hipnose que entrei no táxi, indiquei o destino e me deixei ficar a ouvir a música que passava lá dentro, que não era nada que se assemelhasse a M80 ou Rádio Amália. Desculpe lá, ò amigo, isso soa muito bem. O que é?, e o homem olhou para mim pelo retrovisor e disse Isto é jazz-rock, tem 30 anos, o disco chama-se "Ripping Stones" e o músico é o Stanley Jordan. Para o caso, é irrelevante que Jordan só tenha começado a editar em 1982 e que não encontre nenhum título remotamente semelhante a esse na sua discografia - relevante é que o taxista, que andava depressa e tinha olhar de quem não é parvo nenhum, perguntou Gosta?, eu respondi que sim, ele continuou Então também vai gostar mais alto, e encheu a noite do Conde Redondo com finger-tapping.

A compostura

Ali atrás a televisão está a dizer que "temos de ser uns para os outros". Ao meu lado está o poster de um filme de que eu nem gostei acima de tudo, mas que pendurei porque sim, porque não há por aí posteres de filmes aos pontapés e este até é bonito, imita o estilo dos posteres de concertos psicadélicos dos anos 60 e está tudo onde deve estar. A janela tem a persiana aberta, mas vivo num quarto andar e ninguém me pode ver. Há um mapa semi-caído, dependurado da parede, mas só o vou ajeitar no domingo, porque esse é o dia que eu reservei para me preocupar com coisas assim. Segunda-feira preocupo-me com outras coisas, no domingo com essas e, de cabelo branco em cabelo branco, tudo se há-de compor, não?

A luta

Quem é que quer alguma coisa com a luta? Temos televisão, internet, jornais, livros, álcool, tabaco, tabaco-que-faz-rir, frigorífico que refresca tão bem a cervejinha, máquina de lavar roupa e loiça, carro, casa, sofá a condizer com os móveis da sala, aparelhagem, aquecimento-central. Luta? Lutar? Para quê?

Justificação dum Pente 4

E, de um momento para o outro, os sentidos perdem-se porque alguma coisa desapareceu. Dormir: porquê? Ir comer: com que fim? O que fazer nos finais de tarde e depois do jantar, aqueles tempos que já tinham donos e fins bem, bem precisos? A questão em causa não é, como a poria um adolescente, a da utilidade da vida, mas a da finalidade daquilo que ela tem de ocupação do tempo. Entretenimento, conhecimento, vaidade: se quisermos ver até ao tamanho mínimo, tudo é passatempo avulso a precisar de justificação, como um preso num tribunal. Eu posso fazer desaparecer o cabelo só porque o cabelo comprido não serve para nada. Eu posso fazer um manifesto anti-sol só porque trabalho numa cave e não tenho uso para a luz natural. Eu posso fugir e isolar-me só porque não tenho utilidade para a companhia. Tudo isso é possível. Porém, este porquê não é um que se responda: é um porquê que se encontra. E, no caso do meu cabelo, foi muito difícil encontrá-lo num momento em que me vi ao espelho pelos meus próprios olhos, sozinho.

O silêncio

Um dos monólogos que mais me tocou aqui na moleirinha foi o da Michelle Pfeiffer no The Fabulous Baker Boys, o da discussão com o Jeff Bridges: "Every time you walk in those places, you're selling yourself cheap. l know all about that. l find myself at the end of the night with some creep, and l tell myself it doesn't matter. You kid yourself you've got this empty place inside to put it. But do it long enough and all you are is empty". É mais uma daquelas coisas à volta das quais anda toda à gente sem saber muito bem como resolver, porque o trabalho e o filho e as aulas e as contas e os terremotos ocupam o tempo todo e fica por responder a pergunta: como se preenche o espaço vazio? Desde os meus amigos jornalistas, que têm as colunas de papel a preencher com letras e imagens e o ar de rádio, que está morto a não ser que seja varado por palavras, até aos meus amigos contabilistas, que todos os dias se sentam ao computador com folhas de Excel a olhar para eles, ninguém é indiferente à questão. E esse é um problema que os aparelhos não têm, porque já enchi o disco do Sony Reader com e-books e o do disco externo com tudo o mais e difícil será que eles fiquem com o peso aligeirado. Ou seja, os aparelhos não têm problemas com o silêncio; esse é um problema só nosso, humano.