"Introduction" ("Cruel Shoes", de Steve Martin)

Vais por uma estrada campestre. Está uma tarde tranquila. Olhas lá mesmo para o fundo da estrada e vês alguém a andar na tua direcção. Estás surpreendido por teres percebido uma pessoa a tão grande distância. Mas continuas a andar, não esperando mais do que um aceno amigável quando se cruzarem. Reparas que ele tem cabelo laranja e brilhante. Está mais perto - um fato de cetim branco com pontos coloridos. Mais perto - uma cara pintada de branco e lábios rubros. Tu e ele estão a cinquenta metros de distância. Tu e um autêntico palhaço com uma buzina, separados por vinte metros. Aproximam-se na solitária estrada campestre. Tu acenas. Ele buzina e passa.

Táxi Mistério

Fiz a viagem até Lisboa a dormir. Dois dias a trabalhar até tarde deram cabo de mim a um ponto de me encontrar perdido no meu cansaço, como se acordar de repente quando as luzes da auto-estrada me batiam na cara fosse emergir de surpresa em água gelada, vir à tona ganhar respiração quando já não se pensava sair. Foi nessa hipnose que entrei no táxi, indiquei o destino e me deixei ficar a ouvir a música que passava lá dentro, que não era nada que se assemelhasse a M80 ou Rádio Amália. Desculpe lá, ò amigo, isso soa muito bem. O que é?, e o homem olhou para mim pelo retrovisor e disse Isto é jazz-rock, tem 30 anos, o disco chama-se "Ripping Stones" e o músico é o Stanley Jordan. Para o caso, é irrelevante que Jordan só tenha começado a editar em 1982 e que não encontre nenhum título remotamente semelhante a esse na sua discografia - relevante é que o taxista, que andava depressa e tinha olhar de quem não é parvo nenhum, perguntou Gosta?, eu respondi que sim, ele continuou Então também vai gostar mais alto, e encheu a noite do Conde Redondo com finger-tapping.

A compostura

Ali atrás a televisão está a dizer que "temos de ser uns para os outros". Ao meu lado está o poster de um filme de que eu nem gostei acima de tudo, mas que pendurei porque sim, porque não há por aí posteres de filmes aos pontapés e este até é bonito, imita o estilo dos posteres de concertos psicadélicos dos anos 60 e está tudo onde deve estar. A janela tem a persiana aberta, mas vivo num quarto andar e ninguém me pode ver. Há um mapa semi-caído, dependurado da parede, mas só o vou ajeitar no domingo, porque esse é o dia que eu reservei para me preocupar com coisas assim. Segunda-feira preocupo-me com outras coisas, no domingo com essas e, de cabelo branco em cabelo branco, tudo se há-de compor, não?

A luta

Quem é que quer alguma coisa com a luta? Temos televisão, internet, jornais, livros, álcool, tabaco, tabaco-que-faz-rir, frigorífico que refresca tão bem a cervejinha, máquina de lavar roupa e loiça, carro, casa, sofá a condizer com os móveis da sala, aparelhagem, aquecimento-central. Luta? Lutar? Para quê?

Justificação dum Pente 4

E, de um momento para o outro, os sentidos perdem-se porque alguma coisa desapareceu. Dormir: porquê? Ir comer: com que fim? O que fazer nos finais de tarde e depois do jantar, aqueles tempos que já tinham donos e fins bem, bem precisos? A questão em causa não é, como a poria um adolescente, a da utilidade da vida, mas a da finalidade daquilo que ela tem de ocupação do tempo. Entretenimento, conhecimento, vaidade: se quisermos ver até ao tamanho mínimo, tudo é passatempo avulso a precisar de justificação, como um preso num tribunal. Eu posso fazer desaparecer o cabelo só porque o cabelo comprido não serve para nada. Eu posso fazer um manifesto anti-sol só porque trabalho numa cave e não tenho uso para a luz natural. Eu posso fugir e isolar-me só porque não tenho utilidade para a companhia. Tudo isso é possível. Porém, este porquê não é um que se responda: é um porquê que se encontra. E, no caso do meu cabelo, foi muito difícil encontrá-lo num momento em que me vi ao espelho pelos meus próprios olhos, sozinho.

O silêncio

Um dos monólogos que mais me tocou aqui na moleirinha foi o da Michelle Pfeiffer no The Fabulous Baker Boys, o da discussão com o Jeff Bridges: "Every time you walk in those places, you're selling yourself cheap. l know all about that. l find myself at the end of the night with some creep, and l tell myself it doesn't matter. You kid yourself you've got this empty place inside to put it. But do it long enough and all you are is empty". É mais uma daquelas coisas à volta das quais anda toda à gente sem saber muito bem como resolver, porque o trabalho e o filho e as aulas e as contas e os terremotos ocupam o tempo todo e fica por responder a pergunta: como se preenche o espaço vazio? Desde os meus amigos jornalistas, que têm as colunas de papel a preencher com letras e imagens e o ar de rádio, que está morto a não ser que seja varado por palavras, até aos meus amigos contabilistas, que todos os dias se sentam ao computador com folhas de Excel a olhar para eles, ninguém é indiferente à questão. E esse é um problema que os aparelhos não têm, porque já enchi o disco do Sony Reader com e-books e o do disco externo com tudo o mais e difícil será que eles fiquem com o peso aligeirado. Ou seja, os aparelhos não têm problemas com o silêncio; esse é um problema só nosso, humano.

Presente:

s.m. Acto de remediar o passado. O.m.q. "andar constantemente pelo mundo como que a resolver equações com desconhecimento de pelo menos uma das variáveis". Momento cujas existência e percepção nunca se encontram. Geralmente benigno.

The Invention of Lying e Adaptation

Qualquer argumentista, dramaturgo ou alguém que alguma vez tenha lido um manual, sebenta ou rabisco sobre a construção do texto dramático conhece a importância da palavra subtexto. Um literato poderá chamar-lhe uma nuance da metáfora; um psicólogo irá logo decerto sacar para fora o id, ego e superego; e alguém mais preocupado com os reflexos quebradiços entre arte e realidade dirá que não é mais do que uma versão do que acontece no mundo, onde ocultamos a verdade crua do que dizemos e fazemos, até porque, na maior parte das vezes, essa verdade nos escapa. A comédia é a arte do conflito por excelência, por isso, nunca seria de esperar que nela nascesse uma obra como The Invention of Lying, onde Ricky Gervais cria um mundo onde a mentira não existe e, mais longe do que isso, onde toda a gente tende a dizer tudo o que lhe vai pela alma. Ou seja, The Invention of Lying é, à primeira vista,  um filme sem subtexto - ou melhor, um filme onde todo o subtexto é concentrado na personagem principal, a única em toda a Humanidade que consegue mentir (ainda que não saiba que nome dar a isso). O modo como o filme contorna essa quase armadilha que colocou a si próprio é um dos seus aspectos interessantes - vejam o jantar de Anna com Brad Kessler. Outro é o modo como a personagem principal, ao inventar a mentira, inventa também o entretenimento e a religião. Não era mau reler os situacionistas, não. Adaptation, curiosamente, também trata do entretenimento e da vida, traçando o paralelismo entre a construção de ambos. Quando o vi há 8 anos, pareceu-me que o último acto fazia uma concessão àquilo que condenava no primeiro - os clichés superficiais da história holywoodesca - mas compreendo agora que o metadiscurso sobre guionismo nunca poderia estar completo se assim não fosse. O jogo de espelhos é levado a tal ponto, a progressão da escrita está tão enrodilhada na progressão do tempo diegético (e não só) que uma não poderia existir sem a outra. É, com certeza, o antecessor directo na cabeça de Charlie Kaufman de Synechdoche, New York, onde o tempo é o tema e matéria ficcional (nas palavras de Rogert Ebert ao considerá-lo o melhor filme da época, "it isn't about a narrative, although it pretends to be. It's about a method, the method by which we organize our lives and define our realities"), é o filme definitivo sobre a experiência de escrever um argumento e, talvez, o filme definitivo sobre o acto de escrita em si mesmo.

Uma breve história de fracassos

Fui a um museu e vi uma das placas metálicas com que Alves dos Reis falsificou dinheiro. Ou melhor, com que quase falsificou dinheiro, porque o golpe famoso que deu série de televisão era com notas de quinhentos escudos. A placa de mil que vi era para uma fraude posterior, que ele não chegou a levar a cabo porque já tinha sido apanhado.

Também vi as chapas que serviram para as FP-25 criar um cubículo de cerca de 2mx1m no meio de uma floresta, no qual planearam prender a vítima de um sequestro até que chegasse o resgate. Nas fotografias da operação policial que encontrou a coisa por baixo de um monte de galhos e terra, viam-se pacotes de Compal e comida. Seriam a ração. O plano foi descoberto e as placas ficaram sem uso.

No espólio fotográfico havia belos negativos de vidro de fotografias probatórias, as famosas mugshots. Nunca tinha visto um negativo de vidro. Alguns já tinham 90 anos e o detalhe era irrepreensível. A guia disse não resistir a uma provocação e perguntou-me se conseguia adivinhar quem era o homem retratado num positivo que tinha em cima da mesa. Olhei para ele e reconheci o Mário de Sá-Carneiro. Não há notícia de o escritor alguma vez ter estado na prisão, mas A Confissão de Lúcio começa precisamente com a frase "Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonhos… nada podendo já esperar e coisa alguma desejando — eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência". Portanto, talvez aquele não fosse Sá-Carneiro, mas Lúcio. Seja como for, estava demasiado sorridente.

O que o meu avô disse ontem

Amanhã é Domingo
De pé de cachimbo.
E o touro é bravo.
Arreguicha o rabo
e dá uma pinga ao Nelo do Cabo!