Foi há dias, na hora do almoço, que a
Popota apareceu a cantar Buraka. Na conversa que se seguiu, defendendo o grupo contra algo que já não interessa, disse que o kuduro, o funk carioca e o dancehall jamaicano não são assim tão diferentes, o que faz pensar que, muito provavelmente, quando se está "em vias de desenvolvimento" o desenvolvimento se faz pelo cu do povo, que, portanto, o tem de abanar sob risco de atrofia. Seja como for, a verdade é que, se este ano a Popota descobriu as ancas, a
Leopoldina descobriu as mamas, o que não deixa de ser deprimente: a hipopótama pôs-se a dançar, mas a avestruz pôs silicone. Triste, muito triste.
Hoje subi e desci a Avenida (mentira, só subi). Tive de tratar de um assunto de trabalho e revelou-se a melhor opção para apanhar depois o autocarro. Por acaso, trabalho na área de entretenimento e, também por um natural e perspicaz acaso, o assunto tratou-se perto da Faculdade de Ciências Médicas, onde, a certas horas do dia, não se disfarça o cheiro acre que me entrou pela primeira vez nas narinas quando vi a autópsia de um homem que morrera atropelado e que fora desmontado e voltado a montar tantas vezes que, para o abrir, bastou puxar o fio que lhe unia o peito cortado ao meio. A vida, já se sabe, é uma merda: há por aí animais perdidos a chamar pelos filhotes mortos, há mães e pais sem censura a quem o acaso rouba as crianças para sempre. Por mais que subisse e descesse a avenida, o cheiro ficou-me entranhado outra vez. Se o quiserem reconhecer, pensem em algo proibido, cujo simples pressentimento vos faça mais próximos da perversão. No Reino de von Trier um anatomista compara o medo à intimidade com o medo aos mortos, talvez por isso mesmo: aquele cheiro diz para não estar perto dele a menos que queiramos que a morte nos invada. É um dos casos em que as narinas, e não os olhos, são a entrada para a alma.
Hoje, o actor disse na rádio que compreendera a raiz do seu novo espectáculo quando, encostado a uma parede observando, se compreendeu espectador de algo que não precisava dele para existir. A parede em causa era a de uma cozinha, onde "chefs" se ocupavam a ser "chefs". E eu pensei: quantos momentos parecidos temos na vida, daqueles em que os outros se nos colocam à frente como páginas de um livro? Bocejos numa paragem de metro. Um diário a ser escrito numa mesa de café. Gemidos numa sala de espera das urgências. Lágrimas num funeral. Pensei naquela vez em que subi uma montanha num dia claro. Tudo tão longe, tão inacessível, as dolorosas consequências do mundo não me alcançavam. Assim os Gregos pensavam a Comédia, como dizia Julian Gough: a perspectiva dos deuses, não a de quem também pode adoecer e morrer. Grande dilema: ver de longe, como um deus, ou de perto, como um homem. E, pensando bem, sempre encostado à parede.