O espectador duplo

Hoje, o actor disse na rádio que compreendera a raiz do seu novo espectáculo quando, encostado a uma parede observando, se compreendeu espectador de algo que não precisava dele para existir. A parede em causa era a de uma cozinha, onde "chefs" se ocupavam a ser "chefs". E eu pensei: quantos momentos parecidos temos na vida, daqueles em que os outros se nos colocam à frente como páginas de um livro? Bocejos numa paragem de metro. Um diário a ser escrito numa mesa de café. Gemidos numa sala de espera das urgências. Lágrimas num funeral. Pensei naquela vez em que subi uma montanha num dia claro. Tudo tão longe, tão inacessível, as dolorosas consequências do mundo não me alcançavam. Assim os Gregos pensavam a Comédia, como dizia Julian Gough: a perspectiva dos deuses, não a de quem também pode adoecer e morrer. Grande dilema: ver de longe, como um deus, ou de perto, como um homem. E, pensando bem, sempre encostado à parede.

Das Creative Commons ao Acesso Aberto

Se reparou na data deste post, não se preocupe: não sou um viajante no tempo, apenas editei a data para coincidir com o primeiro texto que escrevi sobre as licenças Creative Commons, criadas em 2002 por Lawrence Lessig, professor de Direito em Harvard.



Na época, escrevi a seguinte afirmação, que mantenho:
O sistema Creative Commons [é] interessante, porque ele dá um passo à frente naquilo que é a concepção do direito de autor: aqui, o direito serve menos para o autor se proteger do que para permitir que novo conhecimento possa ser livremente criado a partir das suas obras.
A enorme expansão de blogs que se vivia na época, e a consequente partilha de conteúdo por autores de todo o mundo, criou o “timing” perfeito para a popularização das licenças de Lessig. Com elas, os criadores podiam deixar explícitas as suas intenções para o material que partilhavam online e dar a entender ao público quais os usos que poderia dar a esse material.

Assim, Lessig não pretendia acabar com o direito de autor, mas apontar uma incongruência cruel: o direito de autor fora criado para proteger e beneficiar a comunidade criativa mas, a partir do momento em que as obras podem ser comodificadas, as empresas que adquirem os direitos da sua utilização atuam no sentido de protegerem o seu património, limitando a sua utilização e transformação e, portanto, a criação em geral.

O debate sobre o acesso aberto ao conhecimento passa por premissas bem semelhantes. A favor, temos vários argumentos:

  • Existe hoje uma apropriação corporativa e abusiva do conhecimento;
  • A população tem o direito de aceder à produção científica que é financiada, em grande parte, com dinheiro dos seus impostos;
  • O acesso aberto, rápido e generalizado ao conhecimento maximiza o seu impacto: quanto mais pessoas tiverem acesso a um trabalho académico, maior o seu potencial de repercussão, citação e influência;
  • Membros da academia – alunos, professores, pesquisadores em geral – poderão fazer trabalhos mais informados e relevantes;
  • Pessoas fora dos meios académicos com acesso ao mesmo conhecimento terão a possibilidade de aproveitar-se dele para ajudar as suas comunidades;
  • Novos tratamentos médicos podem expandir-se rapidamente, o número de descobertas simultâneas poderá aumentar e novas máquinas e tecnologias poderão ser implementadas.

Opor-se ao acesso aberto pode ter motivos bem razoáveis: o temor (financeiro e científico) de ser plagiado ou de submeter o seu trabalho a um escrutínio muito grande e eventualmente despreparado para dar críticas construtivas, além de uma certa (e não tão razoável) vaidade académica. Também é verdade que, quanto mais informação é disponibilizada, maior é a confusão: como nos guiarmos por essa Babel serpenteante e reconhecermos a informação mais relevante?

Porém, é precisamente neste espaço que a comunidade académica deve encontrar o seu lugar, servindo como filtro de validação através de mecanismos como o "peer review" ou recensões críticas, além de, claro, como a principal produtora de conhecimento. Como exemplo, diga-se apenas que foi graças à prevalência da ideia de acesso aberto que existe o software do telemóvel Android com que foram gravados os vídeos deste trabalho, o OpenOffice em que foi redigido este texto e a World Wide Web em que se publicou esse conteúdo. Afinal, como o próprio Tim Berners-Lee escreveu no primeiro website, o objetivo da World Wide Web é «to give universal access to a large universe of documents».

Se quiser ouvir um pouco mais sobre isso, é só clicar na imagem.