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Porque eu sou por um governo de esquerda

O meu avô ensinou-me a não confiar em políticos e, ao longo da minha vida, os políticos não fizeram grande coisa para me fazer mudar de ideias. Quero dizer, não à partida. Há três coisas de que gosto num político: ter princípios, não ter medo e saber-se mexer. Se me convencem disso, ótimo, e há muito tempo que não me convencem. Apesar disso, eu vejo com bons olhos a possibilidade deste governo de esquerda. Confio que governar acompanhado vai frear aquele impulsozinho chato do PS no poder de distribuir alegremente cargos e dinheiros aos amigos próximos. Quanto ao medo dos comunistas, só posso dizer que por uma vez sinto-me feliz por ter nascido depois do PREC e não ter esses fantasmas a pesarem-me nos ombros. Não acho que o PCP tenha maior capacidade de me decepcionar do que outro partido qualquer. De qualquer forma, nunca achei que comunistas fossem gente sem palavra - nem vi ninguém dizê-lo -, portanto, o respeito à Europa, até prova em contrário, está seguro, certo? Quanto ao resto, há uma frase de Camus que copio sem reservas: "sou de esquerda, apesar de mim e apesar da esquerda". Por favor, então, senhor Cavaco, com quem tenho uma bela história em comum, dê-me a satisfação imeeeeeensa de vê-lo acabar a sua presidência e a sua carreira política a mandatar um Governo de coligação de esquerda, ok?

Os seis "Mas" do Charlie Hebdo

O massacre na redação do Charlie Hebdo revoltou-me.

Primeiro, porque eu entendo o que é sofrer pressão por algo que se escreveu, produziu, lançou para o mundo.

Acreditem ou não, sofro-a quando os realities que roteirizo têm um vencedor e todos os apoiantes do perdedor mandam à merda e insultam o canal e todos os que produziram o programa.

Sofri-a quando quis dizer o meu poema crítico sobre o Durão Barroso num evento que só por acaso aconteceu nas instalações da Comissão Europeia em Lisboa.

E sei que a posso sofrer em tudo o que fizer.

O princípio por trás disto é o mesmo do que aconteceu em Paris: alguém te vai sempre lembrar que há coisas que não se podem dizer.

Mas, para poder trabalhar, eu tenho que dizer coisas.

Se me pudesse dar ao luxo de pensar em toda a gente que pode ficar incomodada com o que escrevo, não conseguiria escrever nada.

Ou seja, não poderia trabalhar.

Segundo, eu sou um cidadão e, como tal, tenho uma consciência muito forte - decidam se é errada ou não - dos direitos que eu e todos temos para fazer e para dizer.

Por tudo isso, houve reações ao atentado que eu simplesmente não engulo.

1- "Estou chocado, mas a culpa é do Islão".

Uma vez, estava a almoçar em Paris.

Reparei num homem, sentado numa mesa próxima, em silêncio total.

Tinha uns 50 anos, bigode, um ar banal de quem saiu do trabalho e foi almoçar.

Estava tão quieto que pensei que tivesse adormecido à mesa.

Mas, de repente, ele levantou os olhos, pousou o livrinho que tinha na mão, esperou o que tinha de esperar pelo almoço, comeu e foi-se embora.

O livrinho era o Corão.

E aquele era o jeito possível de ele cumprir a sua oração a Meca.

Há 1.6 bilhões de muçulmanos no mundo.

Considerar que os seguidores de uma religião são responsáveis pelos atos criminosos de três dos seus integrantes é absurdo.

Eu nem sei quem eles representam. Alguém sabe quem eles representam, além deles mesmos?

Os irmãos Kouachi são muçulmanos que nasceram e cresceram em França.

E a política europeia de integração de imigrantes falha, sim, e tem que ser repensada e balizada pela tolerância e respeito mútuo, sim.

Mas quantos muçulmanos há em França que sofreram com a política de integração e não pegaram em armas para invadir um jornal?

Isto não foi um caso de imigrantes resistirem a polícias que entraram no bairro onde moram e os trataram, inocentes, como criminosos.

Isto foi um caso de fanáticos assassinarem a sangue frio pessoas que estavam numa sala a trabalhar só porque não gostavam do trabalho delas.

Confundir estes assassinos com o homem que eu vi almoçar em Paris é um insulto a ele, ao bom senso e à inteligência de todos nós.

2- "Estou chocado, mas a culpa é da globalização/geopolítica ocidental/EUA".

Houve quem dissesse que a culpa é do Bush filho e Bush pai. Da invasão do Iraque. Do apoio a Israel. Da ingerência ocidental no Médio Oriente.

Talvez tenham razão. Mas a Segurança Social também já teve ingerências bem chatas na minha vida e não foi por isso que entrei numa repartição e abri fogo.

Este argumento é vicioso, porque não responde a nada. E não responde a nada porque a ingerência não tem fim.

"Vocês desenharam Maomé", "Mas vocês explodiram o metro de Londres", "Mas o Bush invadiu-nos", "Mas vocês fizeram o 11 de Setembro", "Mas vocês estão feitos com Israel", mas vocês, mas vocês, mas vocês.

Quem define onde parar?

No Lawrence da Arábia? Na invasão do leste europeu pelo Império Otomano? Na expulsão dos mouros da Península Ibérica, que foi árabe quase 600 anos? Na invasão do Médio Oriente por Alexandre o Grande?

A culpa é de quem matou quem está morto, e ponto.

3- "Estou chocado, mas parte da culpa é dos cartunistas, porque atacavam o Islão".

Este argumento implica que se deve regrar o discurso pelo conteúdo.

E esquece que a democracia não foi construída para albergar respeitinhos ou consensinhos.

Ela foi construída para albergar choques.

Esses choques, numa sociedade democrática, dão-se nos tribunais. Nos órgãos representativos. No voto. Nas ruas, nos cafés, na internet. E na imprensa, claro.

O Charlie Hebdo satirizava quem precisasse de satirizar. Religiões, partidos políticos, chefes de Estado, a França.

E também satirizava muçulmanos. Porque não satirizar muçulmanos, afinal? Se satirizava judeus e cristãos, não o fazer seria, de certa forma, uma verdadeira discriminação.

Para quem não gosta, há um bom remédio.

Esse remédio é os tribunais com que se pode processar um jornal, a imprensa em que se pode responder ao jornal, a legislatura que pode criar leis que protejam quem se sentir vítima de um jornal.

E não precisa de Ak-47s.

4- "Estou chocado, mas ironia e sátira não são construtivas".

Este argumento quer regrar o discurso, não pelo conteúdo, mas pelo tipo.

Ele implica que a ironia e a sátira são um discurso de dentro para dentro, que não potencia o diálogo e que o nosso mundo só poderá melhorar se pudermos dialogar com o diferente.

Ele pretende ignorar que a sátira e a ironia geram o riso, mas também o desconforto. Que a provocação gera o pensamento. E que o pensamento gera a discussão.

Por isso é que o humor não é apreciado por ditaduras. Ou por fundamentalistas. Ou por terroristas.

Como se dialoga com terroristas, humoristicamente ou não?

E, além do mais, quem tem autoridade para dizer que tipo de discurso é mais ou menos válido? Eu? Tu? Ele?

Aceitar a liberdade de expressão é aceitar, simplesmente, que a expressão é livre. Que expressar o desacordo é livre. Que uma sociedade esclarecida é mais completa do que a que não o é.

Alguém pode perguntar "E se a sociedade não estiver pronta?".

E eu respondo: com toda a gente calada, ela nunca vai estar.

Não existem discursos mais ou menos meritosos. Só mais e menos arriscados.

5- "Estou chocado, mas ninguém se lembra dos outros jornalistas que morrem por aí e das pessoas todas assassinadas em conflitos pelo mundo".

Assim se diz como quem não quer a coisa que as pessoas são indignas de se indignarem.

Na pior perspectiva, isto é sentimentalista e baixo.

Na melhor, isto passa por cima de uma diferença fundamental do que aconteceu em Paris.

Quem escreve, grava, difunde, ou opina numa sociedade livre, jornalista ou não, sente-se posto em causa mais pelo que aconteceu no Charlie Hebdo. Porquê?

Porque isto não foi um jornalista atingido por uma bala perdida, assassinado numa esquadra ou que aparece furtivamente enforcado em casa no momento em que se preparava para lançar uma notícia sobre um político corrupto.

Essas pessoas merecem o nosso respeito e memória e a sua morte não vale menos do que a de ninguém.

Tal como não vale menos do que a sua morte a de polícias. Ou a de soldados. Ou a de civis. Ou a de qualquer pessoa que morre injustamente.

Mas pensem que os assassinos não gritaram "Matamos o Charb", ou o Cabu, ou o Wolinski, ou o Tignous.

Eles gritaram "Matamos o Charlie Hebdo".

Eles não queriam apenas eliminar uma voz incômoda, mas dizer "este lugar já não é seguro para fazer o que faz". E, como tal, mais nenhum o é.

Em vez de um jornal, poderia ter sido uma igreja. Uma sinagoga. Uma mesquita. Ou uma escola.

Poderia ser qualquer representante de qualquer bastião que consideramos necessários para a nossa sociedade democrática funcionar.

Portanto, isto foi um ataque à nossa ideia de democracia, sim, e por isso mais espantoso, e por isso mais memorável.

6- "Estou chocado, mas há muitos hipócritas que agora dizem 'Je Suis Charlie'".

É verdade, há gente hipócrita.

E eu só tenho a dizer que espero que não o estejam a ser quando dizem isso.

Afinal, diferentes valores juntam-nos a pessoas diferentes.

Se pessoas de quem não gosto se chocaram com o que aconteceu, pelo menos sei que temos isso em comum.

Se assim for, espero que isso lhes tenha servido para pensar na vida e serem menos hipócritas no futuro.

Se não forem, pelo menos saberão que não podem mandar ninguém calar-se.

Cara Isilda Pegado,

Quando foi a primeira vez que ouvi falar de ti? No referendo para o aborto, que perdeste? No do casamento gay, que perdeste também? Não me lembro já. Desculpa, aconteceu muita coisa e muita gente na minha vida nos últimos tempos e alguns inícios perderam-se. Mudei de país, mas não como quem muda de equipa, se é que me entendes, por isso, continuo atento ao que se passa por aí.

Percebo que muitas pessoas te odeiam, mas eu não te odeio. Na verdade, tu fascinas-me. Fico sempre a pensar no que te motiva a correr atrás de tantas causas, apesar de perderes tantas. Não digo isto com desdém, a sério, não penses que escrevo com ácido nas véias. Não vemos o mundo da mesma forma e frequentemente acho que distorces os fatos a favor dos teus argumentos, mas o empenho quixotesco com que o fazes intriga-me. Pergunto-me o que te leva a fazer isso, que histórias tens que te levam a ser assim. Não te vou mentir, eu acho que a tua visão do mundo é retrógada e, às vezes, completamente irrealista. Mas porque tanto ardor, Isilda?

Eu acho que tu és sincera. Queres intervir na sociedade para a deixar de um jeito que tu consideras melhor. Quando acredito que a intimidade de cada um é assunto seu, de certa forma estou a ser egoísta. Para ti, a intimidade define uma posição social e, como tal, a sociedade deve participar da forma como ela aparece. Talvez sejas melhor pessoa do que eu. À tua maneira, tu importas-te mais com os outros.

Há uns dias li este artigo teu e voltaste-me à mente. Estás igual ao que me lembro de ti, com um raciocínio labiríntico que serve a tua visão moral.

Dizes que agora uma "mãe decide que quer ter um filho, só seu, cujo pai fique incógnito (dador anónimo) e faz inseminação artificial a partir do banco de esperma para poder gerar a criança que é “só sua”. Só se for escondida na Espanha, não é, Isilda, porque na lei portuguesa, que citas, (ainda) não pode.

Dizes com reprovação que "a co-adopção vem reconhecer e legalizar práticas que estão proibidas por lei", mas isso é muito normal quando uma lei é mudada, certo, Isilda? Foi assim com a IVG, com o casamento homossexual e também terá de ser assim se, como tu reclamas, um dia houver um revogação destas. Se novas leis não legalizassem "práticas que estão proibidas por lei", a lei nunca seria mudada e o mundo não evoluiria.

Tu sabes disso. E também sabes que a comparação que fazes entre os pais incógnitos do Estado Novo e os "filhos sem pai" que a co-adoção geraria é desonesta. A filiação tem sobretudo a ver com uma coisa - a capacidade de herdar. Os filhos legítimos dos senhores do Estado Novo ficavam protegidos de terem de partilhar o seu património aquando da morte destes; estavam salvaguardados os bolsos dos filhos e a fornicação do pai.

Mudar essa lei, acima de tudo, garantiu o direito de sucessão dos filhos ilegítimos. E a lei da co-adoção, irá ter o mesmo efeito. Vou-te dar um exemplo. Imagina que a Helena, solteira, tem um filho, o Diogo. A Helena trabalha, paga os seus impostos e cria o Diogo com amor. Entretanto, a Helena assume a sua homossexualidade e casa-se com a Márcia, que, naturalmente, vai criar uma relação parental com o Diogo. Segundo tu, a Márcia nunca poderá tratar o Diogo como filho; e, caso a Márcia morra, o Diogo nunca vai, por lei, poder herdar dela.

Ou seja, para salvaguardar os direitos do Diogo da mesma forma que os direitos dos filhos ilegítimos foram salvaguardados revogando a lei da ditadura, a co-adoção é o caminho mais lógico. Eu sei que tentaste impor a tua visão moral do que a sociedade deve ser - crianças nascidas e criadas no seio de uma família devidamente casada e heterossexual -, mas esqueceste do resto. O Diogo e a Márcia vão ser filho e mãe, mas, na tua visão, eles nunca poderão realmente sê-lo. A Márcia não poderá assinar as fichas da escola do Diogo, autorizar uma cirurgia, sei lá mais o quê que tem de ser um pai a fazer. A lei estará constantemente a lembrá-los de que não são realmente mãe e filho. E eu acho que o Estado não tem o direito de humilhar os seus cidadãos assim. Se queres mesmo defender o Diogo, tu tens que defender esta mudança legal, Isilda.

Eu sei que nunca vais aceitar isto, porque, para ti, "casal do mesmo sexo" já é uma expressão contraditória. Imagino que, para ti, o amor de uma homossexual para com o filho sempre será de segunda categoria, porque, na tua visão, ela será um ser desequilibrado e incapaz de afeto verdadeiro. Tenho muita pena. Espero continuar a ouvir-te, Isilda, e a ver-te defender com convicção aquilo em que acreditas. Espero que, como sempre, continues a remar contra a maré de pessoas bem mais razoáveis que discordam de ti. E espero que, um dia, percebas que estás errada em opor a moral ao amor. Até lá, um grande abraço.

"A adoção de crianças por casais homossexuais põe em risco a família"


Assim diz uma vereadora do Recife, Michele Collins. É uma das minhas lógicas preferidas nos tempos que correm. Apliquemos o argumento a outras dimensões da realidade.

A adoção de iPhone por quem tem PC põe em risco a tecnologia.
Claro.

A adoção de um carro por quem dirige bicicleta põe em risco o transporte.
É muito certo.

A adoção de cachorro por quem tem gato põe em risco a vida animal.
Porque não se fala isso mais vezes?

A adoção de vegetais por quem come carne põe em risco a comida.
Com certeza.

A adoção de panelas por chapeiros põe em risco a culinária.
Surpreende-me que ninguém tenha pensado nisso antes.

A adoção de regras por quem é desregrado põe em risco a ética.
Faz todo o sentido.

E por aí poderíamos ir. Agora, só fico muito curioso por saber o que Michele Collins diria sobre esta piada sobre a cidade que ela administra. Aposto que seria um comentário muito inteligente.

A Lei Maria da Penha deveria ter sido aplicada no caso da agressão a Luana Piovani?

Primeiro, achava que não.

A decisão de não aplicar a lei Maria da Penha foi baseada pelo relator do TJRJ no fato de que "a indicada vítima (...) não pode ser considerada uma mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade".

Portanto, eu, estrangeiro, desconhecedor, pensei que a Lei Maria da Penha precisava das condições "relação afetiva estável", "hipossuficiência" ou "vulnerabilidade" para ser aplicada.

Cabe dizer que não aplicar a lei Maria da Penha não significa que a agressão não seja punida. Simplesmente, sê-lo-á pelas leis gerais sobre agressão, sem os agravamentos previstos por aquela.

Portanto, se a lei Maria da Penha é especial, é preciso ver em que situações especiais ela deve ser aplicada.

Fui lê-la.

Pesquisei "estável": nada.

Pesquisei "hipossuficiência": nada.

Pesquisei "vulnerabilidade": nada.

"Raio", pensei, "vou ter mesmo de ler isto". Fico sempre relutante por voltar aos meus tempos de jurista, mas lá foi.

E então reparei no artigo 5º.
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
(...)
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Ou seja, "estabilidade", "hipossuficiência" e "vulnerabilidade" não são critérios necessários para a sua aplicação.

Não é necessário filhos, não é necessário um casamento, não é necessário coabitar, não é necessário dependência económica.

O que é necessário é convívio e uma relação íntima de afeto.

O art. 5º/III é claro, e esquecê-lo só pode revelar uma incompetência grave e uma argumentação desnecessária e circular. O TJRJ, como mostra o acórdão, incorreu nesses dois defeitos ao ir buscar a justificação numa ratio legis meio inventada ("violência intra-familiar, levando em conta a relação de gênero, diante da desigualdade socialmente constituída") quando a lei contem uma norma concreta claríssima.

Porque o tribunal fez isso, eu não sei. Mas, no caso de Luana Piovani, a sua decisão foi errada.

Aparando Relvas


Pode ser porque estou no Brasil e não estou a ver bem as coisas, mas comicham-me umas perguntas quando vejo as reações ao fato de os ministros portugueses, principalmente Miguel Relvas, estarem a ter os seus discursos calados por pessoas cantando o "Grândola Vila Morena".

Uma dessas ocasiões foi numa conferência no ISCTE, instituição que depois afirmou cultivar "as liberdades individuais e a participação democrática” e lamentar "que a liberdade de expressão não tenha podido ser exercida” por Miguel Relvas. O líder parlamentar do partido do Governo disse até que “a democracia foi abalroada”.

Primeira pergunta: porque é que cidadãos se manifestarem de uma forma que perturba um governante é antidemocrático?

Se reprovarmos a perturbação, estaremos a assumir que uma manifestação não deve perturbar um governante. Que ela só deve ser feita segundo moldes e padrões de comportamento pré-combinados e bem educadamente, reduzindo a desobediência cívil, ainda que pacífica, ao mínimo. Ora, não sei se sou só eu, mas isso não parece lá muito democrático. Estou enganado?

Segunda pergunta: claramente tem havido um choque entre o direito de expressão do ministro e o direito de manifestação dos cidadãos. Mas, se assumirmos que o primeiro vale mais que o segundo e os cidadãos se tem que calar quando um ministro fala, não estamos a assumir algo, digamos, antidemocrático? Eu acho que ser cidadão ainda é, ou deve ser, mais do que só ir de 4 em 4 anos à urna. É um erro assumir isto? Se for, digam-me, hã.

Terceira pergunta: um ministro exerce um poder soberano que lhe é entregue pelos eleitores. Se o desencontro de opiniões entre eles chega ao ponto de ninguém o querer ouvir, não será hora de o ministro concluir que o seu poder está esvaziado e se demitir - ou, no mínimo, ficar calado?

Ao longo destes dias, vi comentários no Facebook e no Twitter que discordavam das minhas suposições e não viam nenhum problema em fazerem-no. Um post expressivo dizia até que "o Zeca não merecia que transformassem o "Grândola, Vila Morena" num fenómeno viral".

Quarta pergunta: os atenienses que inventaram a democracia mereciam Miguel Relvas?

Quinta pergunta: porque o Zeca não merecia?

Qual o problema de um país - afogado em impostos, dívidas, desemprego e as consequências de uma crise que o deixou a sentir-se perante o FMI e a UE como se sentiu perante a Inglaterra no Ultimato de 1890 - cantar a canção fundadora do seu atual regime político como quem diz "apesar de tudo, a democracia portuguesa ainda existe, e está nas mãos de todos que cantam estas palavras"? E qual o problema de propagar essa mensagem?

Aparentemente, nenhum, pois nem a polícia sabe com que crime justificar a identificação que fez de alguns dos manifestantes.

Mas confesso que, de tudo o que li, nada me intrigou tanto como o comunicado da JSD, principalmente porque me pareceu tão idiota, mas tão idiota, que a dada altura confirmei se o site em que o estava a ler não era o do Inimigo Público. Aqui seguem algumas passagens ilustrativas (mas muito pouco ilustres).

"Nos últimos dias, pessoas têm recorrido à perseguição e impedido o direito constitucional de um ministro expressar a sua opinião."
Ir a locais de acesso aberto onde o ministro discursa é perseguição? E, como já perguntei antes, o direito à manifestação dos detentores do poder soberano não é mais importante do que o direito de expressão do seu executor?

"A democracia vive do contraditório e nele se baseia, de forma a respeitar todo o tipo de pensamentos. Não há contraditório quando só uma parte fala (ou grita), e quando não há contraditório a democracia não funciona!"
Não é um pouco exagerado falar em "contraditório" quando falamos da relação entre o ministro e o seu povo - ainda para mais quando a mensagem daquele não parece ter sofrido grandes variações ao longo do tempo? Se não for, pensando que as manifestações respondem às políticas do Governo, não são elas um exercício de "contraditório" pelos cidadãos?
Já agora, há um tom de voz correto para protestar contra o Governo? A JSD conhece-o? Pode divulgá-lo, por favor?

"As pessoas que se manifestaram têm organização, mas carecem de mobilização".
Só para confirmar, estamos a falar das pessoas que fizeram algumas das maiores manifestações do Portugal democrático? Estamos, né?

"A atitude dos manifestantes configura "censura"."
Aqui, por acaso, não tenho perguntas. Só observo que cantar à frente de um ministro parece ter tudo a ver com julgar, arrancar unhas e mandar para o exílio quem diz coisas desconfortáveis para o regime.

Democracia não é um Governo, e um Governo não é democracia. Por isso, o que está em risco quando o povo protesta contra o Governo não é a democracia - é o Governo. Quando a JSD confunde as duas coisas, revela-se ingénua, impreparada e simplória. Mas, acima de tudo, revela medo. Não um temor, um receio, mas o medo infantil de perder alguma coisa. E isso é muito, muito idiota.

Para os meus amigos brasileiros

Gostaria que vocês entendessem que hoje faz 38 anos que Portugal se tornou uma democracia com uma das revoluções mais bonitas que já houve. Desculpem-me dizer isto assim, eu sei que parece presunçoso e uma espécie de patriotismo babaca. Mas eu acho isso mesmo. Foi uma revolução linda, porque teve flores, canções, quase nenhum sangue derramado. Os militares, em vez de fazerem uma nova ditadura, derrubaram a que lá estava e vigiaram todo o processo que levou até à democracia. As senhas para eles saberem quando avançar foram dadas pela rádio, com duas canções, "E Depois do Adeus" e "Grândola Vila Morena". Eu tenho orgulho disso. Eu tenho orgulho que a revolução do meu país, um país que começou então a descobrir quem realmente é, tenha começado nas palavras "quis saber quem sou, o que faço aqui, quem me abandonou, de quem me esqueci" e "dentro de ti, ó cidade, o povo é quem mais ordena" sendo cantadas na rádio. Não choradas, não só faladas: cantadas, por uma voz que rompeu a noite como se rompesse o breu onde até aí tinha vivido. Os presos políticos regressaram às famílias. Todos os jovens souberam que deixariam de ir ter de matar pessoas para África. E, acima de tudo, o mais belo, o mais pungente, é que todo um povo estava unido em volta da mesma esperança. O mais extraordinário sobre o 25 de Abril é isso. Os portugueses podem ser quezilentos, problemáticos, reclamões e, ao mesmo tempo, conformados com a situação e incapazes de mudar seja o que for. Mas no 25 de Abril todos nós nos unimos por sabermos que todos somos iguais enquanto donos do nosso país e do nosso destino. Que Portugal, ao fim e ao cabo, não é de um primeiro-ministro, da Igreja ou dos grandes grupos económicos - ele é nosso. Ainda hoje, o 25 de Abril é o dia em que os portugueses se lembram disso. Por isso, eu não digo que não é por eu estar no Brasil que Portugal deixa de ser meu. Eu digo que não é por eu estar no Brasil que Portugal deixa de ser nosso.
httpv://www.youtube.com/watch?v=uMiAYRRp-cE

Coisas de Portugal: João César das Neves


Desde que moro no Brasil e faço os possíveis para aproximar as duas margens deste lago atlântico, tenho principalmente falado aos portugueses sobre coisas brasileiras. Por isso, talvez tenha chegado a hora de falar aos amigos brasileiros sobre Portugal. E escolhi para começar algo bem especial, tanto que me intriga saber se conseguirei explicá-lo bem: João César das Neves.

Então, digamos assim: César das Neves é professor universitário, doutorado em economia pela Universidade Católica Portuguesa. É uma das caras mais conhecidas do conservadorismo português pelas suas aparições frequentes na TV e a sua coluna de jornal Não Há Almoços Grátis, sendo populares as suas apologias da família e dos valores tradicionais. César das Neves tem algumas ligações com pessoas importantes do Partido Social Democrata, o partido de centro-direita que está agora no poder. E ele tem uma barba muito viril e cara de quem não muda de roupa interior muitas vezes só para a poder usar como ataque para com interlocutores adversários, do estilo "este gajo a falar e a sentir-me o cheiro das cuecas: como lhe deve estar a custar!". Mas César das Neves é, além disso tudo, capaz de algumas das afirmações mais corretas e certeiras na história das afirmações. Peguemos por isso nalgumas da sua crónica de 20 de Junho, de título "O poder dos bobos" (sendo que "bobos" não deve ser tomado necessariamente no sentido brasileiro de "fracos de espírito", mas mais no de bobos da corte, jograis, ou seja, gente do entretenimento em geral).
Hoje a opinião mediática despreza e ridiculariza as referências morais tradicionais - pais, professores, sacerdotes, chefes e responsáveis - enquanto exalta as opiniões de artistas, bandas de música, comediantes e celebridades.
Reparem que César das Neves aqui não fala especialmente mal da autoridade moral destas últimas categorias de gente. Ele só não gosta que eles não sejam tradicionais. Se estivermos a falar de um ator com 80 anos, ele já é tradicional. Aí tudo bem. O único problema desta afirmação é que permite uma série de situações ambíguas. Como é que os media devem tratar alguém que é artista, mas também é pai? Ou um sacerdote que é também celebridade? Um comediante que é chefe numa empresa? E o meu pai, que é músico - como é que eu o devo tratar? Deverei sempre tentar entender se ele me está a falar como pai - e aí devo ouvi-lo e considerá-lo - ou como malvado e perigoso boémio? Seja como for, ao colocar "responsáveis" de um lado e os entertainers do outro, César das Neves implica que estes não são responsáveis, o que só lhe fica bem, pois é bem sabido que todas as pessoas do meio artístico não são sérias, não cumprem compromissos e, no geral, não merecem a confiança de ninguém.
Será que as séries, filmes e canções que hoje nos inundam a vida moldam o nosso comportamento? Se o fazem, não será para o bem. As preocupações oficiais com a moralidade nos filmes perderam-se nos anos 1960, passando a liberdade de expressão a critério ético absoluto, acima de todos os valores. Como os bons exemplos e temas educativos não criam emoção, cinema e televisão entraram numa espiral imparável de crime, vício, erotismo e aberração. Tem graça que os jornais, que mais apregoam essa influência, sejam os primeiros a declarar a inocência do espectáculo quando se verificam consequências nefastas.
César das Neves tem, mais uma vez, toda a razão. Monstros, vampiros, sexo e crime nunca tinham sido representados em momento algum da história da narrativa visual ou literária e não se compreende essa mania dessas séries e filmes agora andarem com esses temas que nada têm de apologético à saudável e fabulosa família tradicional, trabalhadora, casada e heterossexual. Foi só desde que as preocupações oficiais com a moralidade terminaram que eles começaram a ser tratados por esses perversos artistas, o que nos leva a pensar no que poderá ter levado sociedades inteligentes e racionais a terminar com os controlos prévios que impediam que eles surgissem antes dessas famigeradas revoluções - ou deveria dizer involuções? - morais dos anos 60. Na Bíblia, meus senhores, não existe nem um indício desses patricídios, fraticídios, infanticídios, mutilações, seduções, decapitações, purgas coletivas, onanismos e prostitutas que pululam na cultura atual.
A promoção de aborto, divórcio, promiscuidade e pornografia tem no espectáculo sólidos aliados. A enorme campanha à volta do casamento homossexual deve-se à influência dos artistas, principal meio poderoso e endinheirado onde essa orientação domina. Assim se entende que uma questão que interessa apenas à ínfima minoria, com implicações só na imagem, consiga mudar em poucos anos as regras seculares das sociedades. O suicídio colectivo do Ocidente por destruição da família sustenta-se por este meio.
É incrível o poder de argumentação de César das Neves. Afinal, como é que esses artistas se atrevem a encher este mundo de casais desfeitos, fetos abortados, sexo e perversão? Isso não é forma de se construir uma civilização. Para ajudarmos o progresso, temos de nos organizar, a todo o custo e independentemente dos nossos sentimentos, desgostos e situações particulares, em casais unidos, com uma prole gorda que aumenta a cada relação sexual (na razão de um filho a cada dois anos) e a quem a masturbação é interdita. Homossexuais, que não podem procriar, não deveriam estar casados, ou melhor, deveriam estar casados com mulheres, a quem eles encheriam o ventre frequentemente, estando depois livres para fazer o que quiserem com os amigos do café, onde, claro, recusariam beber tudo o que fosse alcoólico. São eles que nos matam enquanto sociedade. Se eles recusassem a sua homossexualidade, haveria muito mais crianças no mundo e a Europa poder-se-ia impor a todos os outros países como o avançado, educado e cristiano colosso que já foi em áureos tempos.
Esse poder traz horríveis efeitos sobre os próprios. O filme Sunset Boulevard, de Billy Wilder (1950), com William Holden, Gloria Swanson e Erich von Stroheim, revelou a miséria humana escondida atrás do brilho de figurinos e cenários. (...) A Forbes Magazine declarou a 18 de Maio Lady Gaga a celebridade mais poderosa do ano. Elton John, de 64 anos, e o seu parceiro David Furnish, de 48, foram nomeados candidatos ao prémio de Pai do Ano, (...) Que significa isto? Nada. Meros truques mediáticos que escondem mal a miséria de pessoas infelizes, embriagadas ou sacrificadas à imagem.
É por isso que tenho saudades de Portugal: porque lá, posso ver César das Neves vezes sem conta na televisão a falar sobre pessoas embriagadas pela própria imagem. E a sua autoridade, neste particular, é incontestável. Há muito pouca gente que sabe disto, meus amigos... mas a verdade é que César das Neves é o único português amigo tanto de Lady Gaga e de Elton John, a quem liga frequentemente sempre que anda de autocarro ou a sua higiene íntima está a demorar um bocadinho mais. Se alguém sabe se Elton John e o seu companheiro de 18 anos estão míseros depois de terem casado, assumido uma relação estável e adotado um bebé a quem darão uma vida confortável enquanto pais, é César das Neves. Se alguém sabe se Lady Gaga, a mais brilhante esteta pop da atualidade, é infeliz e sacrificada à imagem que ela parece fabricar e manipular sem problemas, é ele.

César das Neves deveria ter uma estátua erigida - uma estátua falante, no centro de Lisboa, que todos os turistas pudessem ouvir, só para levarem um pouquinho dos seus ensinamentos de volta para o seu país. E, só para um esclarecimento final, este texto não contém nem um pingo de ironia e eu não penso que João César das Neves é um aglomerado de qualidades ridículas e ignóbeis, das quais a pior é o modo como ele critica os media por estarem comprometidos com uma agenda de perversa imoralidades, os mesmos media que lhe dão repetidamente espaço para ele libertar as suas frustrações em diatribezecas baratas que atira para um mundo que felizmente, se está a cagar para o que ele diz. Não penso isso mesmo nada. Ouçam-no, meus amigos, ouçam-no bem.