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Criatividade e coiso

Às vezes perguntam-me como é que posso ser criativo (e o fato de ser sempre a mesma pessoa e só quando está bêbeda não importa para o caso). Eu, na verdade, não sei. Conheço pessoas muito mais criativas do que eu e com qualidade muito mais consistente. O que posso dizer é que grande e irrefletida parte da minha vida é ter ideias estúpidas sobre tudo aquilo que estou a ver. A minha cabeça insiste em ver pilas e mamas em arranjos de frutas, pensar "bucetinha" quando ouve "você tinha", ver um homem quase nu a curtir a Rua Augusta à noite e incomodar-se principalmente porque ele pode pisar um caco de vidro com os pés descalços. Para mim, essas coisas estúpidas são o primeiro estádio do que significa ser criativo e todos os artistas e escritores da História têm facilidade em aceder a ele. Por isso é que acredito piamente nas histórias que dizem coisas parecidas com Kafka se mijar a rir sempre que olhava para um par de tomates.

O segundo estádio é um de implicação e de reação contra o mundo. Apetece-te perguntar um "porquê?" permanente, que faz com que perante uma situação simples, como, digamos, um amigo que está com problemas com a namorada, comeces por perguntar quais os problemas e acabes a questionar-te sobre a verdadeira natureza do amor e das relações humanas. É o momento de fedelho ingrato da criatividade, o que demonstra uma superação mal resolvida. Não, à Freud, da fase anal e oral, mas da idade dos porquês, que é muito mais fofinho. Pensando bem, talvez isso venha de as perguntas feitas durante esses anos formadores não terem ficado bem respondidas. Outra característica das pessoas criativas, afinal, é que são teimosas. Daí, quando algum apreciador diz que não gosta, vir a tão criativa resposta "era mesmo essa a intenção".

E isso leva-nos ao terceiro estádio, em que as conexões atrás de conexões deixam de ser ocasionais e se juntam na forma de uma filosofia pessoal sobre o mundo e as pessoas. Toda a filosofia exige uma linguagem, porque o pensamento não existe sem palavras, e a linguagem não se fixa sem registo. Portanto, é a própria visão que exige a sua expressão através da linguagem artística. Este é um estádio ao que se ambiciona chegar e cujo valor só pode realmente ser avaliado por outra pessoa que não o autor, porque não adianta de nada dizer "reparem no valor tão grande daquilo que eu fiz, suas grandes bestas". Essa elaboração, por um lado, e esse apreço, por outro, são ambições permanentes do ser criativo que explicam a sua permanente frustração e o fato de com frequência eles não serem mais do que tristes attention freaks. Ainda, ressalve-se, que o sejam com génio.

Obviamente, há uma questão mais profunda que subjaz a tudo isto: por que fazer o que faço? Por que algumas pessoas se mantém no lado operativo e útil da vida e outras preferem andar a discutir criatividade e fixar em papéis e telas e celulóide coisas que lhe saem da cabeça? Uma reportagem que vi há tempos explicava a criatividade através de uma falha - efetivamente, uma falha - que levava o cérebro a não dar respostas diretas aos problemas e o fazia, em contrapartida, encontrar respostas inusitadas e novas para eles. É uma explicação curiosa, que explica o retardo mental de muita gente genial por esse mundo fora (veja-se Galliano). Mas eu prefiro acreditar que a criação de algo que mexe com os nossos sentimentos, preconceitos e, se tivermos sorte, com os fundamentos com que pensamos e vivemos a vida é tão necessária como aquilo que faz o mundo meramente funcionar. Como disse Oscar Wilde no prefácio do Dorian Gray, "podemos perdoar um homem por fazer uma coisa útil não admirável, mas a única desculpa para fazer uma coisa inútil é que alguém a admire intensamente. E toda a arte é bem inútil". E aí está a resposta à pergunta com que comecei este texto: uma pessoa criativa é uma apaixonada fazedora de coisas inúteis. Parece-me tão boa como outra qualquer.

Sobre não saber falar com as pessoas

Eu sou daqueles que têm algum jeito com palavras, não tanto com pessoas. Ou seja, quando inspirado, consigo comunicar bem as minhas idéias e até, quem sabe, divertir ou emocionar os outros. Para mim, comunicar tem sempre um objetivo. Eu quero que esta pessoa se sinta melhor com ela própria ou com o mundo, quero combater o ponto de vista dela ao ponto de ela se sentir humilhada por ter dito tamanha idiotice, quero convencê-la de que há melhores maneiras de pensar nas coisas e na humanidade. Ou, se ela for o Durão Barroso, quero ridicularizá-lo na frente dos outros. Nessa perspetiva, tudo é válido.

Mas entender, em relações ou momentos concretos, o que é que as pessoas querem sentir é sempre um mistério para mim. Um desafio permanente, como um jogo de xadrez que nunca acaba. Esse desencontro entre o conhecimento do objetivo e o da técnica é uma equação que estás sempre a tentar resolver. E por isso às vezes magoas quem não queres, e por isso dizes as coisas erradas.

A tua ingenuidade pode ser de diversa ordem. Não entenderes o que as pessoas querem de ti pode fazer com que peques por excesso ou por defeito, por dizer demais ou por dizer de menos. E, por muito que gostasses de pensar o contrário, entre a sinceridade e a mentira existem muitos níveis. O fato de não teres sentimentos maus dentro de ti contra alguém (exceto, ocasionalmente, o Durão Barroso) não quer dizer nada. Tens constantemente que escolher as palavras. Ou, então, escolher o silêncio. Isso pode significar pecar por defeito. Mas às vezes é a melhor solução.

Acidentes

heitor penteado, ao lado do martelinho de ouro: um anão acende um cigarro.
Poderia ser um poema surrealista ou as palavras de um louco. Mas foi isso que eu vi: na avenida Heitor Penteado, junto a uma oficina chamada Martelinho de Ouro, um anão acendia um cigarro enquanto franqueava o portão de uma casa. Isto me importa porquê? Uma das citações que tenho no meu perfil do Facebook é de uma carta que W.H.Auden escreveu a Frank O'Hara, onde ele o aconselha e ao John Ashberry para terem "atenção àquele que é sempre o grande perigo de qualquer estilo 'surrealista', nomeadamente o de se confundir autênticas relações não-lógicas, que causam espanto, com as acidentais, que causam uma mera surpresa e, no final, cansaço". Mas os acasos como o do anão lembram sempre que o surrealismo é diminutivo de super-realismo - a realidade vista de tão perto que a perspetiva se perde e ficamos apenas com isso mesmo: a realidade em macro, sem foco, bruta e absurda. As cabeças com flores no casamento do rei. O elástico que abraça um lápis. A madeira na perna de Roberto Carlos. Tudo no mundo pode ser revelação de deus ou do diabo. Estas palavras também.

Sobre a minha participação como guionista no filme "Um funeral à chuva"

As notícias sobre o filme Um Funeral à Chuva, que estreia hoje em Portugal, e principalmente uma entrevista publicada ontem no blog do João Nunes onde o meu nome é mencionado, levaram a que eu e o guionista Luís Campos fôssemos questionados  sobre a possível existência de atritos entre nós e sobre a minha posição neste processo. Para esclarecer os mal-entendidos, fica aqui uma explicação breve.

Em 2006, logo após ter escrito a curta Utensílios do Amor para o realizador Telmo Martins, produzida por aquilo que viria a ser as Lobby Productions, foi-me passada uma história original sobre o reencontro de estudantes universitários na Covilhã com a missão de a transformar em guião. Na altura, fui pago com uma soma justa e, ao longo de dois anos, escrevi mais dois drafts enquanto a produção tentava conseguir fundos pelas vias normais dos subsídios públicos, a fundo perdido ou não. Em 2009, após uma aprovação com reservas pelo FICA, eu desliguei-me do processo e a Lobby decidiu passar o guião ao Luís Campos para uma reescrita. O Luís foi mais longe e transformou o guião em algo novo, algo dele e, naturalmente, mais próximo da visão da produção, já que todos eles foram estudantes na Covilhã e partilhavam um património comum. Após uma rejeição desse guião pelo FICA, a Lobby decidiu avançar para a produção da maneira heróica que é conhecida, e agora o filme está aí a estrear em 20 salas por esse Portugal fora.

Não tenho qualquer tipo de conflito com o Luís Campos, com quem troco guiões e opiniões frequentemente e que considero um excelente profissional. Enquanto excelente profissional que também penso ser, acredito que, num mercado audiovisual maduro e saudável, a reescrita deveria acontecer mais vezes e, arrisco, de forma bem mais conflituosa (quando se justificar um departamento de arbitragem na APAD semelhante ao da WGA, o negócio vai estar bem). De resto, o assunto resume-se a isto: eu fui compensado e a minha contribuição criativa creditada; o Luís escreveu o guião de uma longa-metragem com resultados felicíssimos, tão eficaz que foi o empurrão final para a concretização do projecto; e a Lobby, depois de muitos sacrifícios durante 4 anos, produziu a primeira longa-metragem independente de qualidade em Portugal, estreando em 20 salas da Zon/Lusomundo. Acredito que o futuro da produção audiovisual portuguesa passa necessariamente pelo modo como se trabalhou em Um Funeral à Chuva e, aqui do meio da selva de pedra paulista, espero que o público o veja e aprecie.