O que vi em Março

The Return of the Living Dead (1985). George Romero que me perdoe, mas, depois de Night of the Living Dead, este é o melhor filme de zombies de sempre!

Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava (2017). Na Netflix. Não é tanto uma história da pornochanchada quanto um ensaio visual sobre o gênero, o Brasil e a ditadura que é construído com a matéria-prima dos filmes originais. Interessante e muito divertido.

Phantom of the Paradise (1974). Às vezes é paródia, outras é homenagem. Tem Fantasma da Ópera, Fausto, o reflexo de Hoffmann, Psycho de Hitchcock. É uma ópera rock, mas também é uma ópera rock sobre uma ópera rock. Barroco, desequilibrado e muuuuito divertido.

Visages, villages (2017). Mais do que um filme de Varda, é um filme que a celebra, e isso está muito bem. Pelos seus filmes e pelo que era, Varda merece ser celebrada. Viva Varda!

Colectiv (2019). Jornalistas perseguidos, um sistema de saúde colapsado, corrupção enraizada em todos os setores da sociedade e uma balada que pegou fogo matando dezenas. Se não fosse o ministro da Saúde que realmente tenta ajudar as pessoas, poderíamos pensar que é o Brasil.

Riot in Cell Block 11 (1954). Don Siegel. Energia. Ondas de tensão e alívio. Multidões.

Gomorra (2008). O crime que encontramos na vida real não é bonito ou glamoroso, como em The Godfather e Scarface. Ele é sujo, pobre, confuso, filho do caos e da necessidade. Nas décadas entre Ladrões de Bicicletas e Gomorra, a esperança acabou.

Dick Johnson Is Dead (2020). Dores e alegrias muito humanas aqui. Acho raro um documentário sobre a esfera pessoal de quem o faz ser simultaneamente tão engraçado e tão comovente, sem pesar para o confessional, para a autocomiseração ou para a sátira azeda. Kirsten Johnson soube fazer um filme doce sobre a morte, e o mais extraordinário é que ele próprio parece ser parte fundamental da sua estratégia para lidar com os tempos difíceis.

Ma Rainey’s Black Bottom (2020). A Viola Davis é um gigante e o Chadwick Boseman era outro. Belo, belo filme.

Broadcast News (1987). Gosto muito desse filme, mas já há muitos anos que não o via. O mais incrível dos filmes do James L. Brooks é sua capacidade para revelar toda a humanidade das suas personagens, independentemente do contexto em que ele escolhe colocá-las. Sim, é uma história sobre jornalistas, mas não exatamente sobre jornalismo, tal como As Good As It Gets, por exemplo, é uma história sobre um escritor e não necessariamente sobre escrita. O que vemos aqui são pessoas a relacionarem-se, às vezes sendo boas, outras vezes não tão boas, às vezes revelando as suas qualidades e, outras vezes, os seus defeitos. Ótimas personagens, portanto. Uma coisa que a maturidade me levou a apreciar mais: os maneirismos sutis e tortuosos do incrível Albert Brooks.

Butt Boy (2019). Depois do primeiro exame de próstata, um homem descobre uma compulsão irresistível e começa a enfiar no ânus tudo o que lhe aparece pela frente. É trash, mas menos comédia do que a premissa dá a entender, entrando pelo domínio da fantasia e da ação. Para mim, sofre de um problema estrutural: a primeira meia hora é tão competente a surpreender-nos que, quando a história pousa, parte da sua força se esgota. É como se o filme tivesse um início bom demais. Porém, achei admirável que prefira apostar mais na narrativa e nas personagens e menos em deixar explícita a exploração das regiões mais recônditas da humanidade.

Kraftidioten ("In Order of Disappearance", 2014). Não tem investigação policial, um protagonista problemático ou peso narrativo das divisões sociais, como se vê muito em "nordic noir". A história é simples: um homem decide vingar a morte do filho. Descobrimos rapidamente quem matou e por quê, e resta-nos então acompanhar o percurso das personagens. É um filme de gangsters construído com solenidade, nada espetacularizado. Não vi o remake americano de 2019, mas não me surpreendeu nada quando vi que ele era protagonizado por Liam Neeson, homem com um "very particular set of skills". Até adivinho o tratamento que Hollywood deu a isto.

Promising Young Woman (2020). Depois de I Care a Lot, mais uma bela e inesperada junção de comédia e thriller. Carey Mulligan está ótima, tanto no filme quanto na sua carreira: ela traz para as suas personagens peso e profundidade, compondo-as de forma silenciosa e refinada. O melhor filme de vingança que vi desde Blue Ruin (2013).

Almost Famous (2000). Revi pela primeira vez desde a estreia. Lembro-me que, na época, o achei um bom filme, mas não a obra-prima que as críticas entusiasmadas faziam crer. Mantenho a opinião, mas reparo que continua a funcionar muito bem 21 anos depois, e isso não é coisa pouca.

Coming 2 America (2021). O maior problema deste filme é que ele tenta contar duas histórias ao mesmo tempo sem conseguir decidir qual delas é a principal. Por um lado, temos a história de Akeem, agora rei, que se encontra numa crise de meia-idade e é confrontado com um dilema (a solução para problemas políticos pode perigar a estabilidade da sua família). Do outro lado, está o arco de Lavelle, o seu filho recém-descoberto, que tem que decidir se quer ser um príncipe africano ou um rapaz simples do Queens. A falta de decisão sobre qual é a história principal torna o filme confuso, e ele tenta resolver isso colocando-se num espaço de nostalgia, aludindo constantemente ao filme de 1989 dirigido por John Landis. Isso até seria de esperar, mas aqui só aumenta a estranheza: é como se Coming 2 America não fosse uma verdadeira continuação, mas mais uma homenagem ao filme original, que invoca a simpatia que o público e o elenco guardaram por ele sem se comprometer totalmente com a sua herança. Teria sido uma ideia melhor re-abordar o enredo "riches to rags to riches", que Landis e Murphy já tinham desenvolvido no ótimo Trading Places, e criar uma história menos rebuscada. Do jeito que está, sorrimos com simpatia, sim, mas tal como sorriríamos se fôssemos ver um grupo de teatro amador montando uma peça inspirada em Coming to America.

Rock ‘n’ Roll High School (1979). É bobo, caótico, com problemas de timing, momentos de comédia de gosto duvidoso e que parece agitar na nossa frente o tempo todo que tem os Ramones. Ou seja, é um filme extremamente divertido e que exala entretenimento em todos os seus planos!

Matinee (1993). Esta homenagem aos filmes de série B ambientada durante a crise dos mísseis em Cuba talvez seja adolescente demais para adultos e adulta demais para adolescentes, mas é um grande espetáculo e um festival de citações cinematográficas. O Joe Dante é um diretor apaixonado pelo Cinema, e isso faz toda a diferença.

Amadeus (1984). Foi a enésima vez que o vi, mas só a segunda da versão Director's Cut. Sei que há quem a considere redundante, mas discordo: acho que as suas sutilezas são esclarecedoras e os seus pormenores enriquecedores.

Bloody Sunday (2002). Paul Greengrass recria os acontecimentos do Domingo Sangrento em Derry, na Irlanda, contextualizando-os como uma crônica de um desastre anunciado, e põe a sua câmera documental no centro. O seu processo é inteligentíssimo e afinado com os tempos, mesmo já depois de termos conhecido a pós-verdade: se a força da mensagem é conquistada com a franqueza da imagem, a representação ficcional precisa da promessa de real do documentário para se constituir. Angustiante e revoltante. Um grande filme.

People of Earth (2016-...). Uma série de comédia com o Wyatt Cenac que parte da premissa "e se essa teoria da conspiração sobre seres reptilianos fosse verdadeira?". Não é incrível, mas é engraçada e tem personagens muito simpáticas. 

O que vi de Janeiro até agora

The Rider (2017). Ainda não consegui ver Nomadland, mas sabia que este anterior da Chloé Zhao tinha sido bastante aclamado. Não o achei memorável, mas é um filme sensível, que parte do mundo do rodeo para falar sobre coisas em transformação como a masculinidade e os EUA. Grande acerto: os atores amadores, principalmente o protagonista, Brady Jandreau, que praticamente está a representar-se a si mesmo.

The Wolf of Snow Hollow (2020). É trash, excessivo, ostensivamente imperfeito e violento e muito, muito divertido. Se quiserem ver um filme que não pede para ser levado a sério, recomendo.

Derek DelGaudio's In & of Itself (2021). O último espetáculo gravado que tentara ver antes deste fora o filme do Hamilton, e achei-o tão insuportável que parei no meio. Não foi o que aconteceu quando vi In & of Itself. Derek DelGaudio mistura "storytelling", magia e mentalismo com um tom confessional e o objetivo confesso de revelar alguma verdade profunda e sobre todos os espectadores. É difícil encaixar este espetáculo num género, mas há uma questão profunda no seu cerne que é discutida desde Platão: até que ponto é que uma representação — uma ilusão — consegue mostrar o real, ainda para mais o real no que somos? Ao longo da sua duração, sentimos compaixão, rimos, comovemo-nos e desejamos estar lá, naquela plateia, a participar desta catarse coletiva. Isto, senhoras e senhores, não é nenhum Hamilton — é muito melhor.

Jimmy O. Yang: Good Deal (2020). Na Amazon Prime. Já dá para perceber vendo o seu filme Opening Act que o Jimmy O. Yang é um comediante em ótima forma e com muito amor por aquilo que faz. Este especial de stand-up dele não vai mudar a vida de ninguém, mas é bem engraçado e prenuncia uma boa carreira para o rapaz.

Palm Springs (2020). Das melhores comédias que vi nos últimos tempos, e não só — mas também — por cometer o ato temerário de emular Groundhog Day e sair vivo do outro outro lado.

The Dig (2021). Nunca pensei que um filme sobre a escavação de um navio normando poderia ser tão interessante, mas também nunca tinha pensado que um filme sobre agentes imobiliários poderia ser interessante até ter visto Glengarry Glen Ross. Direção sensível (me marcaram as cenas com os diálogos em off sincronizados com os jogos de olhares entre as personagens), mas o mais memorável é Ralph Fiennes, um "character actor" maduro que aprendeu a desaparecer completamente por trás da personagem.

Martyrs (2008). Serviu-me para descobrir que ver pele a ser cortada e pessoas a gritarem muito não me impede de bocejar.

12 Angry Men (1957). Não acredito que haja uma única pessoa que ganhe a vida a escrever (seja para "page, stage or screen", como dizia Robert McKee) que não veja este filme de Sidney Lumet com admiração pelo estudo de personagens e economia de meios. Tudo é como deve ser. Uma preciosidade.

The Mole: Undercover in North Korea (2020). Ao longo dos seus dois episódios, este documentário dinamarquês surpreende-nos constantemente pelo escopo e pela distância que ele e as suas personagens percorreram para conseguirem construir a sua denúncia. Não é só a Coreia do Norte, regime construído sobre a corrupção e o crime organizado, que nele é exposta — é a geopolítica do mundo inteiro, em toda a sua hipocrisia. Surpreendente e imprescindível.

The Double (2013). Uma adaptação de O.Duplo de Dostoiévski com toques de Kafka, Brazil do Terry Gilliam e After Hours do Scorsese. Jesse Eisenberg muito bem, Richard Ayoade a comprovar que é um diretor bem talentoso.

Cujo (1983). Lembro-me que uma vez estava na praia a ler uma revista e encontrei nela um conto do Stephen King que não consegui largar enquanto não terminei. Não havia nada de sobrenatural nesse conto, tal como não há neste filme que adapta um romance dele, o que só revela como o grande talento do escritor é revelar a profunda humanidade das suas personagens.

Blood & Flesh - The Reel Life and Ghastly Death of Al Adamson (2019). Na Amazon Prime. Um documentário muito inteligente, que se mascara de "true crime" quando, na verdade, é uma biografia do produtor independente de série Z que está no título. Um grande conto de Cinema.

Pretend It's a City (2021). Salve, salve, Fran Lebowitz, os resmungões deste e outros mundos te saudamos como nossa santa padroeira.

Get Duked (2020). Na Amazon Prime. Uma comédia de adolescentes que usa e abusa do "nonsense" para nos tentar surpreender constantemente e que não pede desculpas por ser como é. Vi sorrindo.

Generation Wealth (2018). Na Amazon Prime. Vemos poucos ensaios fotográficos e documentários sobre pessoas ricas porque elas não precisam mostrar o que têm e como vivem para mudarem de vida. Felizmente, a fotógrafa Lauren Greenfield era amiga de ricos e ex-ricos suficientes para fazer este belo documentário sobre eles.

Efterforskningen ("The Investigation", 2020). Nas suas ficções, Tobias Lindholm parece ser um autor muito interessado nos processos das coisas. Em Kapringen ("Sequestro", 2012), por exemplo, ele mostrava-nos o que acontece quando um barco é tomado por piratas, não só dentro do barco, mas também na empresa armadora e nas casas das famílias dos sequestrados. Neste Efterforskningen, inspirado num caso real, ele mostra-nos aquilo que se desencadeou na polícia dinamarquesa quando uma jornalista desapareceu. Se for "nordic noir", é um analítico e humanista, despido dos elementos de thriller e completamente entregue às suas personagens. Não empolga, porque não quer empolgar; interessa, porque quer interessar.

Kuroneko (1968). Kaneto Shindô foi um diretor modelar para cineastas independentes de todo o mundo. Aqui ele segue a mesma receita de Onibaba: imagens poderosíssimas, poucos atores, produção enxuta e uma história sobrenatural intrigante.

Saint Maud (2019). Repito o meu padrão de pensamento para Terror: se não me assustar, que me fascine e, se não me fascinar, que me entretenha. Vi este filme sobre obsessão religiosa ser muito elogiado e, por isso, esperava mais. Porém, entreteve-me, e isso já não é nada mau.

Pose (2018- ) e Paris is Burning (1990). Implico com as séries do Ryan Murphy e os seus maneirismos narrativos desde a terceira temporada de American Horror Story, mas Pose reconciliou-me com ele. É uma série corajosa, com um elenco maioritariamente trans que interpreta uma comunidade criada pelo encontro nas margens da violência, da pobreza e da marginalidade. Paris is Burning é o documentário para quem quer aprofundar a lição, muito menos glamoroso, mas igualmente celebratório.

Battle Royale (2000). Se o tivesse visto no início do século, quando ele era fenómeno de culto em vários continentes, talvez tivesse gostado mais, mas hoje parece que todas as suas novidades já foram absorvidas, desde Tarantino até Hunger Games

La Vita È Bella (1997). Revi-o 24 anos depois, ri-me nos mesmos momentos e voltei a chorar no final.

I Care a Lot (2020). Nunca vira a comédia e o thriller tão bem juntados quanto aqui, e é uma lição sobre como um jogo de alto risco pode substituir a identificação do espectador com personagens ou, talvez melhor, como a empatia não implica necessariamente a identificação. Não há ninguém que se aproveite aqui e, no entanto, vemo-nos e empolgamo-nos com o destino desta gente escrota até ao fim. A anti-heroína é tão detestável que o primeiro ato me fez sentir fisicamente indignado, com um aperto no peito de raiva. Nunca um filme me fizera sentir assim.

The Professor and the Madman (2019). Sean Penn é grande. O filme vê-se.

Wellington Paranormal (2018- ). Uma série criada pelos estelares Taika Waititi e Jemaine Clement sobre dois agentes de polícia da pacata Wellington que são destacados para uma unidade secreta de investigação de fenómenos paranormais. Um "mockumentary" muito divertido, bobo e inteligente nas medidas certas e bom para desanuviar um pouco a cabeça. 

El Agente Topo (2020). Um documentário chileno sobre um idoso que é contratado por um detetive particular para se internar numa casa de repouso e investigar se ela maltrata os seus residentes. Está na "shortlist" para os Oscars de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Documentário e tem tanto de divertido quanto de emocionante.

Ófærð ("Trapped", 2015- ). A Netflix encarregou-se de que este "nordic noir" viciante, a série audiovisual islandesa mais cara de sempre (pelo menos na época em que estreou), se transformasse num sucesso internacional. Filmada em duas cidades minúsculas rodeadas por fiordes e neve, só me lembra aquela frase atribuída ao Tolstoi: «canta a tua aldeia e serás universal». 

Insomnia (1997). Não quero ser injusto, mas, quando vi o Insomnia de Christopher Nolan em 2002, tive a impressão que era um filme que se ia perdendo. O original norueguês, pelo contrário, parece um filme que se vai encontrando.

Wolf (1994). Lembro-me deste filme ter sido muito visto e falado nos anos 90, mas eu nunca o vira. Não me lembrava que ele era do Mike Nichols, mas a surpresa maior ainda foi quando percebi que a Michelle Pfeiffer era mais jovem do que eu sou agora.

Judas and The Black Messiah (2021). Não é um filme espetacular, porque o espetáculo não lhe interessa. A história de Fred Hampton é a história de um dos maiores crimes que o governo dos EUA já perpetrou contra um dos seus cidadãos e ele merecia um filme à altura do que Spike Lee fez para Malcom X. Finalmente conseguiu-o.

Cuba and the Cameraman (2017). Na Netflix. É um puro filme de diretor de televisão, e isso é um franco elogio. As visitas de Jon Alpert a Cuba durante mais de 30 anos e os seus reencontros tanto com Castro quanto com pessoas comuns do campo e da cidade dão-nos um recorte de vida surpreendente, que conta a história recente da ilha melhor do que muitos livros e artigos de jornal. 

COBRA KAI s03 (2021)

As temporadas anteriores de Cobra Kai levaram a história do Karate Kid a um delírio delicioso enquanto faziam algo inacreditável: recuperar um formato de entretenimento que parecia condenado a sobreviver na pura nostalgia e recuperá-lo para o presente utilizando o seu anacronismo e a sua cafonice como uma força. Dito isso, pareceu-me que os novos episódios perderam um pouco a força e entraram perigosamente no terreno do "mais do mesmo". Apesar de momentos muito simpáticos (a viagem de Daniel a Okinawa fará sorrir qualquer pessoa que viu os filmes originais) e de esclarecer a história como a do "bromance" entre Daniel e Johnny, as personagens adolescentes começam a parecer meros sacos de pancada que são empurrados de um lado para o outro. Esperemos que a temporada seguinte feche esta audaciosa aventura audiovisual melhor do que está agora.

O que vi esta semana

The 40-Year-Old Version (2020). Um filme muito pessoal sobre teatro, hip hop e poesia que é também uma comédia sensível e extremamente divertida. Se o tivesse visto antes, é bem possível que o tivesse posto na minha lista de melhores de 2020. Aproveitem enquanto ainda está na Netflix.

Never Rarely Sometimes Always (2020). Não se aventura pela agudeza trágica de 4 luni, 3 săptămâni și 2 zile, de Cristian Mungiu, mas o estilo documental faz dele um filme exemplar para mostrar como o aborto nos EUA, embora liberado, continua a ser um desafio terrível para muitas mulheres. 

The Exorcist 3 (1990). É um erro esperar dele uma simples continuação de The Exorcist. O que William Peter Blatty fez aqui é puro "arthouse film" com um tom bem teatral (no bom sentido) e diálogos sofisticadíssimos, tanto que os seus desequilíbrios têm muito a ver com pedidos do estúdio para que a coisa ficasse mais do mesmo. 

The Trip to Greece (2020). A verdade nua e crua, para o bem e para o mal, é que The Trip é sobre dois homens, ingleses, brancos e ricos a envelhecerem. Pode-se não gostar da premissa ou não achar graça a Rob Brydon e Steve Coogan, mas uma coisa é inegável: The Trip é um caso raro na forma como expõe o humano por trás da celebridade, e muito disso deve-se à realização elegante e respeitosa de Michael Winterbottom. As séries e filmes da franquia são como os filmes do Woody Allen: de uma forma ou de outra, já sabemos o que vamos ver, mas vemos de qualquer forma, como se fosse um remédio periódico. Belas paisagens, comida incrível e imitações de gosto duvidoso? Estou dentro. 

Lorena (2019). Li algumas críticas a este documentário da Amazon Prime que apontavam a falta de crítica ao contexto cultural e social que levou a que Lorena Bobbitt pudesse ter sido abusada e estuprada pelo marido durante anos antes que ela lhe tivesse cortado o pénis e a ridicularização a que foi sujeita depois. Parece-me uma crítica injusta, considerando que o documentário é mais expositivo do que argumentativo e, desse ponto de vista, faz um bom trabalho condensando o antes, durante e depois dos julgamentos que, nos idos anos 90, fizeram todo o mundo parar e pensar um pouco sobre violência doméstica.

North By Northwest (1959). Um ano antes, Hitchock realizara Vertigo. Um ano depois, realizaria Psycho. Que colheita, senhoras e senhores, que colheita.

O MEU TOP 11 DE 2020

Estas são as produções audiovisuais de 2020 de que mais gostei. Não distingo entre séries e cinema, porque, caramba, é 2020, não 1990. Ficaram de fora dois grandes filmes — Portrait De La Jeune Fille en Feu e Martin Eden — porque as primeiras estreias nacionais foram no ano passado e aqui trabalhamos com rigor. 

É da HBO e empata com Tales From The Loop na categoria "série tão triste que nos faz ansiar por um raiozinho de sol de vez em quando". A entrega de Mark Ruffalo para interpretar dois gémeos é notória, até fisicamente: depois de ele gravar todas as suas cenas enquanto Dominick, a produção parou seis semanas para que ele pudesse engordar 15 quilos e então regravar todas as cenas enquanto Thomas. Porém, não é um puro exercício de comiseração ou de virtuosismo, mas uma história poderosa e melodramática sobre descoberta e autodeterminação com personagens com tantos defeitos e qualidades que evitam julgamentos morais chatos. 

10. Druk 
É um filme centrado no conceito da perda em mais do que um sentido: é a perda de quem chega à meia idade sem perspectivas, mas também a do próprio realizador Thomas Vinterberg, cuja filha morreu num acidente no início da gravação. Isso tudo parece resultar em personagens e numa obra em estado de vertigem, que, na maior parte do tempo, parece arrastar-nos com ela numa queda livre sem que saibamos onde e quando vamos cair. A ambiguidade do seu final é marcante e talvez seja mesmo inevitável. 

Homecoming tinha um problema grande a resolver na segunda temporada: como continuar uma história que parecia fechada sem fazer muitas concessões ao género antológico? Os autores Eli Horowitz e Micah Bloomberg entenderam certeiramente que o elemento central da série é a consciência e o conflito entre o mundo e a nossa percepção, e resolveram a equação de forma brilhante.

Já quase tudo foi dito sobre esta série da Netflix, então, não vou ser repetitivo. Só vou reparar que, após 62 milhões de pessoas a terem visto, as vendas de tabuleiros de xadrez triplicaram, desmentindo qualquer argumento possível sobre o fim da influência da ficção. 

Uma das características de Michaela Coel como atriz que mais me agrada é a forma como ela dá corpo às personagens. É um corpo às vezes forte, outras frágil, às vezes agitado, às vezes destruído, mas sempre presente, nunca se escondendo por trás das palavras. Isso permanece no seu trabalho como autora: Chewing Gum era uma comédia sobre uma jovem evangélica que não conseguia perder a virgindade, I May Destroy You é uma análise pungente sobre o abuso que a própria Coel sofreu. O corpo intocado tornou-se corpo roubado, e a autora não perdoa ninguém — nem ela própria — nesta série que parece ser sobre consentimento, mas acaba por ser sobre o próprio ato de narrar.

6. Ramy
2020 continuou um bom ano para o género "melancómico", com as segundas temporadas de After Life e de Kidding a proporcionarem grandes momentos de televisão. No mesmo tom, Ramy destacou-se por aprofundar o que já parecia impossível em 2019: criar uma comédia romântica através da perspectiva da crise de identidade e do encontro com o sagrado. As personagens e o elenco maravilhosos só ajudam.

Comecei a ver esta série de pé atrás. Nunca fui o maior fã do Luca Guadagnino e acho que ele tem a tendência para resvalar para o pretensioso. Porém, meses depois, há cenas e momentos de We Are Who We Are que ainda me vêm à memória. Por isso, dou o braço a torcer e me retrato do que escrevi sobre ela na época: Guadagnino pode não ter ido ao encontro das convenções televisivas, mas isso acabou por ser o seu maior trunfo. O ritmo, tom e organização narrativa pouco comuns fazem desta série um objeto híbrido, entre cinema e televisão, muito especial e que merece ser visto. 

É uma série discreta e breve, como um sopro. Conduz-nos, não ao longo de uma história ou de um evento, mas de um pensamento, que é desenvolvido de forma hesitante, porém honesta, como se fosse uma conversa com o espectador. Como em qualquer conversa, o que ouvimos nem sempre corresponde ao que vemos, e isso é precioso aqui: as coisas são reveladas lentamente e, no fim, depende de cada um dizer o que viu em How To With John Wilson.

3. Mank
Para explicar porque Mank é tão bom, só consigo fazer uma comparação com a música: da mesma forma que o instrumento de um maestro é a sua orquestra, o instrumento de David Fincher aqui foi toda a história do Cinema americano, e a distribuição de um objeto tão extemporâneo na Netflix também faz parte dessa equação. Um filme cheio de fantasmas (incluindo o falecido pai do realizador, que escreveu o guião) e que constantemente questiona o lugar do passado no presente e no futuro. 

Não gostar de Charlie Kaufman é um direito individual e inegável. A obra do autor americano acontece muito marcadamente dentro do seu espaço mental, e não se pode obrigar um espectador a gostar da sensação de estar dentro da cabeça de outra pessoa. A questão é que não é preciso gostar das idiossincrasias de Kaufman para apreciar a monumentalidade deste filme e a forma musical e fantástica como aborda as suas personagens e mundo. 

Small Axe é uma série de cinco filmes realizados por Steve McQueen para a BBC e a Amazon Prime sobre a comunidade afrocaribenha de Londres nos anos 60 a 80. O formato híbrido já seria suficiente para o considerar um marco de 2020, mas isso não leva em conta a absoluta vitória artística que ele representa. Cada episódio de Small Axe parece espelhar uma dimensão da obra de McQueen, desde a luta contra o Estado até à importância da consciência individual, e parece estar a pedir para ser contado há décadas. Lovers Rock, o segundo filme, tem um enredo fino e não pretende mais do que mostrar como era uma festa acalorada num "sound system". Porém, cada gotícula de suor está carregada de história, tanto com minúscula quanto com maiúscula. As personagens pairam pelo ambiente, como em Chega de Saudade de Laís Bodanzky, e as suas pequenas intrigas vão brotando ao som da música até atingirem o clímax na sequência de "Silly Games", um momento audiovisual majestoso, sagrado, indispensável. Num ano com poucas razões para festejar e em que a doença parece pairar no ar, o melhor filme só poderia ser aquele que entende como uma festa respira. 

FOTBAL INFINIT (2018)

O diretor romeno Corneliu Porumboiu encontra um homem simples com um emprego burocrático e tenta entender a motivação para o seu projeto de vida: encontrar uma forma alternativa de jogar futebol em que a bola se mova mais e mais depressa do que os jogadores. É um documentário simples, filmado em meia dúzia de sequências, mas o monólogo final do protagonista é tão poderoso que não resisti a traduzi-lo. Quem não quiser "spoiler", fica avisado. 

— Quando tinha 19 anos, já tinha sofrido vários acidentes. Comecei a perguntar-me porque estas coisas aconteciam. Estaria a receber castigo divino por erros do passado? Comecei a olhar para trás, perguntando-me qual erro merecia esta punição. Na Bíblia, em Apocalipse 3:19, Deus diz «eu repreendo e castigo a todos quantos amo». Parece uma contradição total. As pessoas que Deus ama, ele repreende e pune: qual o sentido disso? Quando eu era estudante, encontrei uma versão original da Bíblia em grego, e, para dizer "castigo", eles usavam um termo relacionado à "paideia". Em Filosofia, ao estudar a alegoria da caverna de Platão, aprendera que a palavra "paideia" é usada para expressar "conhecimento". Sob a influência do conhecimento, a pessoa receberia a luz, e a República de Platão descreve uma humanidade que vive dentro de uma caverna escura e deve ser levada até à luz pela "paideia", mas gradualmente, porque, se sai da caverna de repente, a luz pode cegá-la. Mas aqui eu encontrara a palavra "paideia" usada para significar simplesmente "castigo". Também descobri a mesma coisa para "metanoia", "metanoeo" e outras palavras relacionadas, que agora são traduzidas no Novo Testamento como "arrependimento". Na Bíblia atual, Jesus diz «arrepende-te!». Mas, considerando o sentido original da palavra "metanoia", isto deveria ser traduzido como «muda!». Tive uma espécie de revelação, e contatei a minha professora de Grego Antigo, Mihaela Paraschiv. Ela explicou-me que estas palavras originalmente tinham conotações não-violentas. "Paideia" significava "educação não violenta", "metanoia" significava "transformação". Porém, durante o feudalismo, a igreja cristã começou a atribuir a estas palavras conotações violentas, que eram úteis para dar uma justificação espiritual a todo o tipo de abusos e para responder às perguntas das pessoas. Era mais fácil dizer que uma doença é um castigo divino por algo que nós ou os nossos antepassados fizeram. Comecei a entender que, de uma perspectiva moral e espiritual, violência não é boa. Tentar justificar violência usando certa palavras da Bíblia não é coerente. Então, eu entendi que, se conseguirmos encontrar regras, normas e um contexto geral em que as pessoas possam ser menos violentas, é possível viver em maior harmonia. Isto também se aplica ao desporto.
— O teu desporto é uma espécie de utopia política.
— Não.
— É uma utopia.
— Não. É uma solução autêntica. É isso que quero dizer.  Só parece utópico para aqueles que se recusam dar a si mesmos uma certa liberdade.

O que também tenho visto


SOUL (2020). O último da Pixar tem tanto de divertido quanto de comovente e ensina duas lições importantes: os adultos devem aproveitar mais a vida e as crianças devem aprender a gostar de jazz. 

DRUK ("Another Round", 2020). O vencedor dos European Film Awards é marcado pela tragédia pessoal do diretor Vinterberg: a sua filha Ida, que seria atriz no filme, morreu no início das gravações. Talvez por isso, é um filme sobre pessoas que se perdem das outras e também de si mesmas, desde as personagens que seguimos até toda a Dinamarca. É um "coming of age" da meia idade que nalguns momentos nos lembra "Idioterne" de von Trier e noutros "I Vitelloni" de Fellini e que nunca, nem mesmo no seu final aparentemente iluminado, larga inequivocamente a dor que o motivou. É como se o filme nos dissesse que, na vida, segue-se em frente, sim, mas carregado de cicatrizes.

LONG STRANGE TRIP (2017). Na Amazon Prime. De Grateful Dead só conheço a fama, as histórias e a "Dark Star", mas se há uma coisa certa nesta vida é que os documentários sobre músicos produzidos pelo Scorsese entretêm. 

SPOORLOOS (1988). Aparece muito em listas de terror, mas isso é enganoso. "Spoorlos" é, na verdade, um ótimo suspense, apesar das marcas do tempo, como aqueles sintetizadores chatos que de vez em quando se fazem ouvir na trilha. No final, lembra Haneke: o destino das personagens é consequência tanto das suas ações quanto da vontade insaciável do espectador "voyeur" e cruel, que quer saber mais e mais independentemente do que acontecer. 

MONOS (2019). Um filme colombiano sobre um grupo paramilitar de adolescentes que é uma mistura de "Lord of the Flies" com "Apocalypse Now" e que deve ser visto considerando a história do país com as FARC. Fantasioso e com locações incríveis, é um filme poderoso, que nos surpreende constantemente e que parece dizer que a violência é bem menos fluida do que o género.

O que vi no Natal

O Natal longe da família teve momentos de melancolia, por isso, comecei-o revendo filmes. "The Money Pit" (1986) continua a ser uma ótima comédia, que nos faz rir com o "slapstick" e ainda pode ser usada por professores para explicar o que é uma metáfora (a casa = o relacionamento).  "Die Hard" (1988) continua a ser o filme que tirou os músculos do herói de ação e para o bem e para o mal, mostrou que pessoas normais também podem eliminar terroristas. 

Depois entrei numa sequência Bill Murray. Nunca vira "A Very Murray Christmas" (2015), na Netflix, um filminho muito querido. Passei para "The Bill Murray Stories" (2018), documentário sobre as aparições do ator em locais e situações inesperadas (festas privadas, bares, e por aí adiante) que só mostra que ele é um sujeito que parece saber viver bem a vida. Terminei com "Scrooged" (1988), adaptação de "A Christmas Carol" que melhora com os anos passados, mesmo que eu não esteja muito certo se são os anos do filme ou os meus.

"Scrooged" levou-me a uma vibração mais classicamente natalina, então fui atrás de filmes com o Pai Natal. "Santa's Slay" (2005) é uma comédia "trash" divertidíssima com um Pai Natal assassino que é filho de Satanás e uma virgem chamada Erica. Já o finlandês "Rare Exports" (2010) não é exatamente uma comédia e parece sofrer com a falta de dinheiro para efeitos visuais mais impressionantes, mas é atravessado do início ao fim por um humor muito ácido que o sustenta bem.

O período de festas terminou com "The Shawshank Redemption" (1994). A minha mulher nunca o tinha visto, por isso, tive um pretexto para revê-lo pela enésima vez. Para quem não viu, poderíamos dizer que é um filme sobre não perder a esperança de que tudo acabe numa praia paradisíaca. Adequadíssimo aos nossos tempos, portanto.

HOW TO WITH JOHN WILSON (2020)

Uma série intrigante e inusitada. Foi produzida por Nathan Fielder, então, já se esperaria a mistura entre documentário e comédia, mas aqui vai-se mais longe. É uma espécie de videoensaio com cenas do cotidiano que fica entre o riso e a melancolia, entre a inconsequência e a genialidade, entre o hipster e o atemporal. Tem momentos que nos fazem rir descontroladamente, outros que nos deixam em absoluto estado de constrangimento e outros que nos comovem. São seis episódios bem curtinhos e recomendo vê-los em sequência: o final é inesperado e muito, muito bonito.

THE HOWLING e AN AMERICAN WEREWOLF IN LONDON (1981)

Não sei se foi coisa da lua, mas os grandes Joe Dante e John Landis realizaram estes dois filmes de lobisomem no mesmo ano. Ambos têm muitas homenagens cinéfilas e usam o género criticamente ("The Howling" está ao nível de "Network" na sua sátira da televisão e o protagonista de "An American Werewolf" é um americano imbecil que recusa aceitar a responsabilidade pelo estrago que faz no estrangeiro) e mostram um avanço nos efeitos de transformação que Landis levaria a um célebre ápice no "morphing" do vídeo de "Black or White". São filmes de um tempo em que os efeitos ainda pareciam de carne e osso, e destaco a divertida cena do acidente em Piccadilly Circus de "An American Werewolf", que sempre me pareceu um prelúdio para a monumental destruição que Landis encenaria durante a sequência de perseguição em "The Blues Brothers".

SCHITT'S CREEK (2015-)

Estive a gravar em estúdio durante as últimas semanas e o trabalho pesado puxa-me a vontade de ver algo leve, descomplicado e sem compromisso. Decidi experimentar a grande vencedora dos últimos Golden Globes de Comédia, e acertei em cheio. Vê-se com um sorriso, tem um elenco ótimo (Catherine O’Hara e Eugene Levy são enormes, enormes) e principalmente as primeiras duas temporadas são uma mistura encantadora de graça com uma elegia à vida simples.

GAVIN & STACEY (2007-)

James Corden tornou-se famoso por ter sido co-autor (com Ruth Jones) desta série, uma das sitcoms mais vistas de sempre na Grã-Bretanha e que passou em Portugal na RTP2, no lendário espaço "Britcom". Quem hoje vê o ator no papel de apresentador de talk-show que, de vez em quando, convida estrelas para cantar num carro percebe que ele tem uma leve tendência para o histrionismo. Por isso, foi com alguma surpresa que percebi como "Gavin & Stacey" é uma série profundamente humana e sensível. Arrisco dizer que o é por não ser moralista e por fazer justiça às suas personagens: todas têm falhas de caráter, mas nenhuma é tonta. A comédia está toda nas situações cotidianas que aparecem (problemas de relacionamentos, filhos, gravidezes inesperadas, gravidezes impossíveis, etc.) e na forma como estas pessoas lidam com elas. É uma série sensível que não é sentimentalista, coisa rara, ainda mais em comédia.

THE INVISIBLE MAN (2020)

Representou uma mudança de direção no universo cinemático dos monstros da Universal (menos efeitos especiais, mais história e personagem) e é uma absoluta vitória. Revisita a história do Homem Invisível fortalecendo a perspectiva da personagem feminina, revelando aquela como um conto sobre relacionamento abusivo e perseguição, em sintonia com os tempos e conseguindo grandes momentos de suspense.

ENGLAND IS MINE (2017)

Esta biografia ficcional e não-autorizada de Morrissey sofre com os defeitos do próprio: é muito difícil empatizar com uma personagem tão chata e com tamanhas ilusões de grandeza.. 

DARK WATERS (2019)

Na Amazon Prime. Acho que nunca vira um filme do Todd Haynes tão abertamente de denúncia. Fiquei boquiaberto por descobrir, não só como o uso e fabrico do Teflon são nocivos para a saúde, mas também a monumentalidade da ação jurídica que foi necessária para que as suas vítimas fossem compensadas. Depois desta, as minhas frigideiras estão com os dias contados.

ROOM 2806: THE ACCUSATION (2020)

Sinceramente, eu pensava que Dominique Strauss-Kahn estava preso e, se não fosse esta série da Netflix, ainda o pensaria hoje. Ao contrário de outros documentários de "true crime", ela não tenta desenterrar novos fatos e prefere fazer algo que, arrisco, talvez seja até mais interessante: ela revela o ex-dirigente do FMI como a prova cabal de que as brechas do sistema servem para os poderosos se abrigarem. As vítimas de Strauss-Kahn são muitas, mas as do sistema somos todos nós.

SMALL AXE (2020)

Acho que esta obra do Steve McQueen é das coisas mais incríveis que vi na televisão nos últimos tempos. Primeiro, por causa do seu formato inusitado: não é bem uma série, mas uma "série de filmes", o que tem levado à indefinição sobre qual a temporada de prémios a que ela deve concorrer. Ao que parece, o próprio McQueen esteve indeciso e, em algum momento durante os dez anos em que ele andou a desenvolver o projeto, ela assumiu a forma de uma série mais convencional. Porém, quando ele percebeu que tinha material muito rico nas mãos, decidiu que o melhor seria fazer cinco filmes, cada um contando uma história da comunidade afro-caribenha de Londres durante os anos 60 e 70. Alguns filmes contam histórias inspiradas em pessoas reais; outros inventam personagens ficcionais para retratar fatos ou ambientes. Eles também variam em estilo, mostrando as diversas facetas autorais de McQueen: "Mangrove" e "Alex Wheatle" lembram "Hunger" no seu retrato da pessoa contra um Estado opressivo, "Red, White and Blue" e "Education" focam na importância da consciência individual na luta contra a injustiça. Para mim, o mais extraordinário é "Lovers Rock", em que McQueen parece voltar às suas raízes de "video artist" para nos apresentar um baile num "sound system". Enredo fino, extremamente visual e, simultaneamente, totalmente realista, com momentos que me deixaram de queixo caído e completamente preso na tela. Com um elenco extraordinário, quase todo negro, e histórias que tocam em feridas profundas do colonialismo, não consigo entender porque a Amazon Prime ainda não estreou esta série no Brasil.

STUART: A LIFE BACKWARDS (2007)

Um telefilme com uns jovens Tom Hardy e Benedict Cumberbatch que, no fundo, serve como veículo para eles se mostrarem e anunciarem os estilos de representação que ainda hoje os caracterizam: o sutil, "posh" e pontualmente arrogante Cumberbatch em contraste com o excesso de Hardy que o leva tanto à genialidade quanto à caricatura.

HARD EIGHT (1996)

Que grande personagem é o Sydney de Philip Baker Hall, e como a rapaziada independente americana dos anos 90 sabia subverter as expectativas e surpreender com grandes filmes. Esperei tempo demais para revê-lo. Juro que a próxima não demorará tanto.

I, TONYA (2017)

Foi realizado por Craig Gillespie, o mesmo de "Lars and the Real Girl", e confirma o apreço do cineasta por figuras da América escondida atrás das luzes e da purpurina. Nos cursos de guião, ensina-se muito que é necessário respeitar as personagens, os seus caminhos. Este filme é o exemplo claro de que isso não significa deixar-se enganar por elas: ele é povoado por pessoas desprezíveis e não esconde a ironia (até o humor) com que olha para elas. A honestidade só lhe fica bem.

REQUIEM FOR A DREAM (2000)

20 anos depois, apeteceu-me revisitar esta descida aos infernos. Envelheceu muito bem, com a sua montagem sensorial, o uso narrativo do som e da música do Kronos Quartet e o pensamento sobre as imagens enquanto espelhos, que levaria a coisas como "Black Mirror", por exemplo. Uma fraqueza: a ocasional concessão em demasia à estética MTV, explorando a materialidade da imagem (interferências, saturação, etc.) de forma um pouco inconsequente. Mesmo assim, não dá para desviar o olhar em nenhum momento.

BELUSHI (2020)

Excelente documentário sobre esse meteoro de comédia que foi John Belushi. Além da pesquisa notável, que qualquer "comedy buff" apreciará, chama a atenção o formato de "oral history". Sem mostrar os entrevistados e recorrendo ao material de arquivo para ilustrar as suas falas, concentra-se completamente no esforço biográfico, e as contradições nos testemunhos parecem revelar mais do que apareceria se se tivesse escolhido uma visão predominante.

BLOW THE MAN DOWN (2019)

Uma daquelas histórias de faca e alguidar que constroem a mitologia das cidades piscatórias, com a originalidade de dar a mulheres o protagonismo de motores da ação. Um belo filme na Amazon, com alguns ares do "neorrealismo mágico" que parece andar em voga.

MANK (2020)

Muitas pessoas não gostam de Citizen Kane porque lhes disseram que deviam gostar e acabaram por ficar de pé atrás. Ver ou gostar de Citizen Kane não é pré-requisito para gostar de Mank, mas pelo menos conhecê-lo ajuda. O novo filme de David Fincher é como a segunda fala de uma conversa. É uma resposta ao filme de Welles e ao cinema clássico americano que às vezes é homenagem (a mistura de áudio, com todos os canais centralizados, e a edição tensa marcada por diálogos rápidos emulam os filmes da época) e outras crítica, mas, na maior parte do tempo, prefere mostrar que o passado ainda nos acompanha no presente, num pernicioso eterno retorno. Além disso, é uma espécie de homenagem de Fincher ao pai Jack, que lhe escreveu o filme e morreu antes que o filho conseguisse fazê-lo. É um feito cinematográfico extraordinário e arriscaria dizer que é um dos melhores filmes da década.

TENET (2020)

Sempre gostei bastante de Christopher Nolan, mesmo sabendo que muita gente o considera irritante e pretensioso. Justo. Cada um gosta do que gosta. Porém, diria duas coisas sobre Tenet. Primeiro, que metade das coisas que se barafustaram sobre ele não teriam sido barafustadas se Nolan não tivesse feito Inception há dez anos. Segundo, que Nolan cumpre aquilo que se espera dele no seu melhor: criar um jogo de engodos com o seu espectador. Sim, Tenet é um filme de espionagem mascarado de ficção científica. E daí?

SWALLOW (2019)

Começa na linha "épater la bourgeoisie", segue na onda do "body horror" e termina concluindo-se metáfora forte sobre o trauma e a maternidade. Um belo pequeno filme, e acho que ainda veremos Haley Bennett, a atriz protagonista, a interpretar muita coisa boa.

TIME (2020)

Na Amazon. A plasticidade deste documentário é tão grande, aquele olhar a preto e branco tão maravilhoso, que não poucas vezes dei por mim a pensar que o tema - o encarceramento da população negra enquanto instrumento de repressão e os seus duros reflexos sociais e pessoais - não deveria ser tratado desta forma. De qualquer forma, filme forte e recomendável.

CASSANDRA'S DREAM (2007)

Dois filmes depois de Match Point, um antes de Vicky Cristina Barcelona, Woody Allen fez esta espécie de Crime e Castigo. Não é um dos filmes maiores de Allen, mas eu tenho a pequena teoria de que, mesmo quando não surpreende, ele sempre nos dá algo interessante para ver. No caso, é o desenrolar absolutamente clássico da tragédia, lembrando-nos que, acima de tudo, Allen é um grande e sabidíssimo guionista.

ZAPPA (2020)

Descobri o Frank Zappa quando era adolescente, graças ao VHS que o meu pai tinha do "Does Humor Belong in Music?". Vi aquele concerto dezenas de vezes e, quando fui para a universidade, às vezes aproveitava algum dinheiro que sobrava no fim do mês para comprar um álbum dele. Isto era a época do pré-Napster: bons tempos. Tenho períodos preferidos (nunca gostei muito da fase do Synclavier), mas sempre foi dos músicos que mais admirei. Com este filme, Zappa finalmente ganhou um documentário com a estatura que ele merece, principalmente por focar num aspecto importantíssimo e pouco falado da sua obra: a busca constante e revolucionária por independência criativa e financeira.

SALINUI CHUEOK ("Memories of murder", 2003)

Quando há mais ou menos um ano eu louvava "Parasita" e dizia que todos os outros filmes de Bong Joon-ho que vira me tinham parecido bons com um "mas", um amigo foi perspicaz e disse-me "vê o 'Memories of Murder' e depois diz o que achaste". Finalmente segui o conselho e ele tinha a mais absoluta razão. Que lição de cinema monumental este filme é.

JOHN MULANEY: THE COMEBACK KID (2015) e JOHN MULANEY & THE SACK LUNCH BUNCH (2019)

Na Netflix. Acho admirável como o John Mulaney me faz gostar tanto da "persona" cómica dele, porque, em princípio, eu não a consideraria nada apreciável: "mais um homem branco, filho de uma família de classe média alta, privilegiado como poucos, a ser irónico e azedo"? O que me parece brilhante é a forma como, ao ser honesto sobre a sua origem e ao mostrar as contradições e vulnerabilidades da sua vida, ele consegue criar empatia e conquistar o público. Depois de ver o seu show de stand-up de 2015 (hilariante e nada datado), tive curiosidade de ver o especial de 2019, em que ele adota os tropos da "Sesame Street" e os adapta à sua comédia. "The Sack Lunch Bunch" é incrível por ser um programa infantil que não infantiliza as crianças (as que lá aparecem e as que o possam ver), mas, ao mesmo tempo, nunca se esquece de que elas são crianças. Parece que, ao fazer isso, ele tem mais respeito pela pequenada do que metade dos programas que são feitos para ela. Aqui há Broadway, há "mockumentary", referências a clipes e filmes clássicos. Acima de tudo, há o desenvolvimento constante de um pensamento sobre a melhor forma de remontar um formato clássico, com uma sofisticação que eu não via desde o "Horace and Pete" do Louis C.K. Muito, muito bom.

MEET THE CENSORS (2020)

Da Amazon Prime. Um cineasta norueguês (Håvard Fossum) viaja pelo mundo e conversa com pessoas que, ou estão encarregadas de organizar a censura no seu país, ou convivem diariamente com algum tipo de censura do seu trabalho. A sua insistência é admirável, tal como as revelações nas suas viagens (Sudão do Sul, Alemanha, Índia, China, Irão e EUA), mas a construção do documentário enquanto viagem de autodescoberta resulta numa certa redundância narrativa: como Fossum não consegue tirar grandes conclusões, parece que voltamos ao ponto de partida. A pergunta que fica é se isso faz dele um documentário falhado ou se, pelo contrário, chegamos exatamente ao lugar aonde deveríamos chegar: ao impasse sobre como uma democracia pode limitar as mensagens antidemocráticas.

LORD OF WAR (2005)

Conhecia Andrew Niccol como o homem de "The Truman Show" e "Gattaca", por isso, não esperava que este seu filme sobre o tráfico de armas fosse tão fortemente baseado na realidade, com inspiração em figuras verdadeiras e uma precisão da história geopolítica pouco habitual no cinema americano "mainstream". Duas coisas limitam-lhe a força: espetaculariza demais a morte, esvaziando-a, e, por não focar numa figura específica, não deixa que a sua denúncia vá muito longe. Ponto extra por um Nicholas Cage contido.

ROLLING STONE: LIFE AND DEATH OF BRIAN JONES (2019)

Quando se fala sobre a vida de uma estrela (do rock, no caso), é preciso lidar com duas possibilidades: pesar mais no fato ou na lenda. Este documentário na Amazon Prime escolhe o primeiro caminho,  mas não lhe teria feito mal se tivesse equilibrado o jornalismo de investigação com um pouco de imaginação. De qualquer forma, é uma investigação bem contada, tanto que quase esquecemos que, por questão de direitos, não se ouve uma única música dos Rolling Stones.

THE JUNIPER TREE (1990)

Um belíssimo filme com uma Björk muito jovem. Livremente inspirado num conto macabríssimo dos irmãos Grimm, deixa-nos a pensar sobre como o Cinema tem, para o ambiente e o folclore, um lugar muito maior do que o Terror.

THE FOG (1980)

A mãe solteira que ama o seu menino acima de todas as coisas, a pequena cidade no litoral perturbada por uma ameaça extraordinária, as personagens que precisam sair das suas "ilhas" e comunicarem umas com as outras para poderem sobreviver: descontados o fascínio pelo sobrenatural e pela morte, é curioso como este filme de John Carpenter está tão próximo dos temas e motivos do Steven Spielberg da mesma época.

ONIBABA (1964)

Telúrico, sensual, elementar e assustador. "Onibaba" é um filme construído com sensações, mas com a moralidade a persegui-las de perto. Nem vinte anos tinham passado sobre as bombas em Hiroshima e Nagasaki e a catástrofe de Minamata tinha sido pouco antes. Isso talvez explique porque pareça sempre pender sobre ele a interrogação sobre o que faz de nós humanos, principalmente num lugar em que a violência e a crueldade extremas parecem ter um lugar reservado de relativização. Uma poderosa experiência de Cinema.

SERIAL MOM (1994)

Sempre que quero passar hora e meia a rir, vejo um filme do John Waters. A característica mais fascinante do realizador é a forma como, mesmo já longe da sua raiz "underground", ele mantém a sua acidez e predisposição para expor e ridicularizar a sociedade estadunidense pelas suas hipocrisias burguesas. Aqui, Kathleen Turner interpreta uma dona de casa que se torna "serial killer" de forma tão tranquila que até surpreende como isso não acontece mais vezes. Ou será que acontece?...

THE 13TH WARRIOR (1999)

Antonio Banderas interpreta um árabe que é "adotado" por um grupo de vikings e levado para batalhas em países do Norte distante. Por baixo desta manta de retalhos, esconde-se um filme de guerra que foi um fracasso de bilheteira, mas que hoje se vê relativamente bem, principalmente pelo espetáculo da grandeza de produção pré-CGI.

THE HAUNTING (1963)

É incrível o quão prolífica foi a carreira de Robert Wise e como ele se movimentava tão bem entre géneros. Entre a realização dos eternos musicais "West Side Story" e "The Sound of Music", ele fez este filme a preto e branco, com tão poucas personagens e cenários que poderia ser uma peça de teatro. O que torna "The Haunting" uma das obras fundamentais do terror psicológico tem muito a ver com a sua atriz principal, Julie Harris, a interpretar uma protagonista que é talvez das mais fascinantes que o Cinema viu: uma mulher de meia idade cheia de invejinhas e irritações e frustrada com a sua vida banal. É uma personagem tão pequena que é grandiosa na sua pequenez — e como ela cresce aos nossos olhos, e como toda a dor da sua vida comezinha aflora ao longo do filme! Por entre o estilo eminentemente clássico de Wise rompem os ecos da modernidade subjetiva que logo viria. Um filme fascinante.

INDIANA JONES AND THE LAST CRUSADE (1989)

Porque a morte de Sean Connery me deixou melancólico e porque o "tatarata" do tema do Indiana Jones sempre dá aquele calorzinho na alma.

ALTERED STATES (1980)

Filme do Ken Russell, esse grande cineasta dos excessos da década de 70. Foi o primeiro papel de William Hurt no cinema, e cai-lhe como uma luva a personagem de um professor universitário que se submete a experiências com alucinógenos em busca de uma conexão primordial entre espírito, mente e corpo. Uma mistura de ficção científica com misticismo "new age" e a boa e velha viagem psicotrópica. Muito divertido.

THE PARTY (1968)

A minha memória tem uns caprichos curiosos, e às vezes ela retém pormenores banais sem qualquer razão aparente. Por exemplo, lembro-me perfeitamente de ter visto a cena final deste filme numa sessão da tarde da televisão portuguesa. Nunca mais me esqueci, apesar de ela estar muito longe de ser a mais memorável dele. Blake Edwards era um cineasta extremamente elegante e aqui ele conseguiu juntar o humor físico de Jacques Tati, a crítica à futilidade da burguesia de Buñuel e o maravilhoso excesso visual de Fellini. O "brown face" de Peter Sellers ainda será controverso hoje em dia, mas há um aspecto que não pode ser desconsiderado: o seu indiano Hrundi V. Bakshi é a personagem mais simpática de todas e é com ela que o público acaba por se identificar, caindo o peso da sátira sobre todas as demais. Isto terá que contar para alguma coisa.

RAMY S02 (2020)

A forma como explico "Ramy" rapidamente para quem não a conhece é «uma espécie de "Master of None", mas em que a personagem principal é um jovem muçulmano». Sendo uma definição rápida, é também insuficiente, mas continuo a defendê-la. A busca pela identidade em "Master of None" passa pela posição do filho de imigrantes e pela experiência moderna do amor, tal como aqui. Porém, Ramy complica a equação juntando-lhe o questionamento permanente sobre a religião e o encontro com o sagrado. Tenho ainda um prazer especial: os episódios isolados centrados na personagem da mãe, interpretada pela maravilhosa Hiam Abbass.

BILL AND TED'S BOGUS JOURNEY (1991)

Ser divertido já não é pouco, mas acho que os filmes da franquia "Bill and Ted" têm um encanto especial porque, como os seus protagonistas, eles aparentam ser bem mais burros do que realmente são. De qualquer forma, se só quiserem ver uma comédia para rir um pouco, as citações de Bergman não vos vão distrair.

THE THIRD DAY (2020)

Esta série intrigou-me mais do que me fascinou. Ainda assim, intrigou-me tanto que a vi até ao fim, o que é mais do que se pode dizer sobre muita coisa. Apreciadores de "folk horror" vão ter interesse especial.

LA 92 (2017)

Documentário monumental sobre os motins em Los Angeles que se seguiram ao julgamento dos polícias que espancaram Rodney King. Composto só por material gravado e transmitido na época, o seu gigantesco trabalho de pesquisa mostra como as tensões sociais e a desigualdade são barris de pólvora sempre prestes a explodir. Depois de 2020, vê-lo é obrigatório.

SOCIETY (1989)

O filho adotado de uma família rica sofre de alucinações psicóticas e, das duas, uma: ou está tudo normal ou os seus pais e irmã entregam-se a orgias incestuosas e satânicas. "Body horror" trash com jeito de luta de classes: como não gostar?

YOU'VE BEEN TRUMPED TOO (2016)

Depois que obtivemos o resultado das eleições nos EUA, encontrei na Amazon Prime este documentário que conta como, para fazer o seu campo de golfe na Escócia, Trump e filho cortaram o acesso à água duma senhora de 90 anos e nunca mais o repuseram. Mostra aquilo que já todos sabíamos: que a nação mais poderosa do mundo, durante quatro anos, foi comandada por escória.

ON THE ROCKS (2020)

O novo da Sofia Coppola começa morno, tentando encontrar-se num território geográfico e narrativo próximo do de Woody Allen. Porém, quando Bill Murray entra, o filme transfigura-se. Não é apenas por ele ser um grande ator, mas por principalmente por ser uma criatura do Cinema, uma espécie de património performático ambulante que chega para reclamar o seu território. Mais do que um filme com Bill Murray, este é um filme do Bill Murray.

THE FUGITIVE (1993)

Revi-o um dia destes para desanuviar a cabeça. É a prova cabal de que, para ser comercial, um filme não precisa sacrificar a caracterização das personagens ao espetáculo. Na verdade, "The Fugitive" é tão honesto nas suas intenções que as confessa abertamente quando Harrison Ford diz "I didn't kill my wife" e Tommy Lee Jones responde "I don't care". Certo, a razão narrativa é que ele é um agente íntegro empenhado em cumprir a missão que lhe é atribuída, mas o subtexto é claro: se ele dissesse "ora, meu caro, acredito em você, vamos lá então cuidar desse problema", não teríamos o fascinante jogo de gato e rato que procuramos neste thriller.

NERUDA (2016)

Gosto dos filmes do Pablo Larraín, mas neste parece-me que o realizador ficou no meio, e isso não ajudou. Esta mistura da linha narrativa do fato e da biografia de Neruda com a da imaginação e do simbolismo deixou-me meio perdido, sem saber em qual chão pisava e com a sensação de que teria sido melhor ir para um lugar ou para outro. Filme bonito, mas falhou o alvo.

THE QUEEN'S GAMBIT (2020)

Sempre se poderia criticar esta série dizendo-a previsível, mas isso seria uma patetice. A sua grande genialidade é a forma como, a partir da personagem, une dois géneros — a história de desporto, à falta de melhor termo (como "Rocky" ou "Karate Kid"), e a "coming of age". O caminho da vitória para Beth enquanto jogadora de xadrez encontra-se com o que a leva a tornar-se uma mulher adulta e independente, às vezes da forma mais crua possível. Mais do que ver, é uma série que se devora.

I KNOW THIS MUCH IS TRUE (2020)

Se algum dia estiverem a procurar um melodrama recente, e não se importarem com ele contrariar as tradições do género, tendo como protagonista um homem de classe média-baixa, vejam esta série da HBO. O primeiro episódio é tão triste, tão triste, que cheguei a levar as mãos à cabeça. Acabamos por recuperar do baque inicial e o Mark Ruffalo está incrível a interpretar dois irmãos gémeos, mas, meu deus, nem um raiozinho de sol de vez em quando...

BORAT SUBSEQUENT MOVIEFILM (2020)

O novo Borat tem um final amarradíssimo, arma uma cilada monumental para o Rudy Giuliani e tenta ir além da caricatura dos seus "alvos" (por exemplo, os sujeitos que recebem Borat na sua casa são, ao mesmo tempo, teóricos da conspiração e defensores dos direitos das mulheres), mas a direção mais limpa não tem aquela tensão suja e caótica da do Larry Charles no primeiro filme. Além disso, quando o primeiro Borat saiu, estávamos no segundo mandato do George W. Bush e os absurdos nacionalistas e racistas dos EUA pareciam nunca terem sido explorados em humor daquela forma tão crua. O impacto então foi muito forte, mas, na era Trump, não só o radicalismo tomou o poder como é pauta diária e constante de todo o humor que se faz no mundo, incluindo a série "Who Is America?" do próprio Sacha Baron Cohen. O que antes era "cringe" agora é banal.

QUINCY (2018)

É um documentário realizado pela Rashida Jones, filha do músico, e dá tudo o que se poderia esperar dele: um acesso fenomenal, com cenas que outra pessoa não teria conseguido filmar, e também o tom hagiográfico de quem prefere mostrar o Quincy heróico ao Quincy controverso. Altamente recomendável para fãs do artista, de jazz e de música negra no geral.

THE HAUNTING OF BLY MANOR (2020)

Sobre terror, tenho um lema: se não me assustar, que me fascine; se não me fascinar, que me assuste; se não me fascinar nem me assustar, que me entretenha. Esta série cumpriu a última opção, ainda que, a dado momento, tenha parecido que começou a complicar sem necessidade aquilo que parecia simples.

LAZZARO FELICE (2018)

Será o filme mais bonito na Netflix? A momentos, lembrou-me o "Dom za vesanje" ("Vida Cigana" em BR, "O Tempo dos Ciganos" em PT) do Kusturika, mas, acima de tudo, fez-me pensar como o final da década de 2010 foi pródigo em filmes sobre os excluídos do capitalismo e como vários destes ("Bacurau", "Martin Eden") configuraram uma espécie de género próprio. Proponho até um nome: "neorrealismo mágico".

LARS AND THE REAL GIRL (2007)

Mais de dez anos depois, revi e confirmei aquilo que o torna um filme extraordinário. Não é só por mostrar que o Ryan Gosling é um ótimo ator, capaz de papéis memoráveis mesmo quando não faz um galã. É também por ser talvez o único filme que assumidamente dessexualiza a fetichização, mostrando-a como uma ferramenta que religa a pessoa ao mundo e permite que ela intervenha sobre ele e o reordene.

OPERAZIONE PAURA (1966)

Os filmes do Mario Bava são sempre fascinantes pela forma como, por trás da capa de escândalo e de "pulp", revelam um cineasta extremamente detalhista e técnico, com um domínio absoluto sobre as imagens que constrói e a capacidade de engrandecer uma cena com a sua câmara. A história misteriosa e o ambiente de terror gótico de "Operazione Paura" atraem, mas, no fundo, Bava segura-nos porque os filmes dele são, literalmente, para serem vistos.

THE TRIAL OF THE CHICAGO 7 (2020)

Gosto muito do Aaron Sorkin e, mesmo que não gostasse, um filme de tribunal escrito e realizado pelo homem que escreveu a frase "you can't handle the truth" é sempre de saudar. Nos seus "biopics", ele nunca foi um maníaco pela fidelidade às datas, por isso não vale a pena entrar na onda da verificação histórica. De resto, Sorkin entrega aquilo a que nos habituou: um bando de ótimos atores a interpretar personagens carismáticas com excelentes diálogos no contexto duma história política muito bem contada. Porém, tenho que dizer que o final me pareceu precipitado e sentimentalista, bem aquém do resto do filme.

DR. NO (1962)

O primeiro filme do James Bond é, ao mesmo tempo, adoravelmente "kitsch", mais próximo da aventura do que da ação e um festival de atrocidades neocoloniais que só poderia provir de um lugar que ainda tinha uma memória fresquíssima da queda do seu império. Bond, na verdade, revela tudo o que há de atroz na ideia de "gentlemen" britânico: branco, tão fluente nas sutilezas de salão quanto nas peripécias atléticas e uma espécie de farol imperialista que leva a tranquilidade da civilização às partes menos esclarecidas e tranquilas da Commonwealth. Se acham que estou a exagerar, revisitem e deleitem-se com este festival de "cringe".

DE PALMA (2015)

Nunca foi o meu preferido dos "movie brats", mas é inegável que o De Palma filma muito bem. Vocês sabiam que o primeiro filme do De Niro foi realizado por ele? Eu não!

LET THE RIGHT ONE IN (2008)

A primeira vez que ouvi falar sobre este filme foi numa palestra do Robert McKee na FNAC do Chiado, que precedeu o primeiro seminário que ele deu em Portugal. Ele elogiou o filme, dizendo que tinha sido dos últimos que vira que, no final, o fizera soltar um "uau". Seria injusto revelar todos os seus segredos aqui para quem não viu, mas é um filme que continuo a apreciar, principalmente pela forma como administra o subtexto ao longo de toda a sua duração. Adiantaria o seguinte: o resumo que se fez na época — "Twilight feito por Bergman" — é muito redutor: precisaria incluir o Sternberg de "O Anjo Azul" também.

SCORE (2016)

Gosto sempre de ver documentários sobre a área em que trabalho para descobrir coisas novas sobre artistas de que gosto — mesmo que essas coisas sejam apenas coisas como "Hans Zimmer era o tecladista dos The Buggles".

Assinei a Carta Aberta pelo cinema e audiovisual portugueses

Apesar de trabalhar no Brasil há dez anos, continuo a considerar-me, agora e sempre, um guionista português. Por isso, acompanhei a discussão sobre "a morte ou a salvação do cinema português" que ocupou as redes sociais nos últimos tempos. Já se falou muito sobre o tema e vou tentar não me estender.
Este artigo do Diário de Notícias é bem claro ao delinear o problema — que, para começar, não parece assim tão problemático, já que o ICA terá mais 5 milhões de euros anuais para apoios (30% do seu orçamento atual). 
A questão que sobra, como muito bem resumiu o João Nunes, é se o dinheiro adicional recolhido de plataformas sem publicidade, como a Netflix e a HBO, "deve ser redistribuído pelo ICA ou elas devem poder optar entre dar ao ICA ou investir diretamente em produtores independentes portugueses?". Sublinho o "podem optar"; nem isso é automático.
Lembrou-me a lei das quotas brasileira, que impôs um número mínimo de horas de programação independente nacional no "prime time" dos canais de cabo. Na época em que ela foi implementada, fui entrevistado por um jornalista português. Ele disse-me que a ideia também estava a circular em Portugal e «há quem ache que isso significará uma invasão por programas de qualidade menor». Repito o que respondi então: nenhum canal tem interesse em comprar programas de qualidade menor apenas para cumprir quota. Se uma produtora independente entregar um programa com resultado insatisfatório, o canal vai simplesmente contratar outro programa de outra produtora no ano seguinte. As produtoras sabem disto e, por isso, ninguém vai desleixar o resultado final por causa de uma quota. O efeito da lei foi incrível e o audiovisual brasileiro beneficiou-se muito dela até à era de Bolsonaro, mas isso é outra história.
A discussão em Portugal é diferente, eu sei, mas as suas consequências podem ser bem parecidas. Quantos mais clientes, maior o setor do audiovisual. Um projeto pode rodar e interessar quem não interessou antes. Mais produtoras podem surgir, alargando o circuito além de duas (que, na verdade, são uma) cidades portuguesas e contando histórias com géneros e pontos de vista diferentes daqueles que têm prevalecido, o que me parece sempre ser a chave para atrair públicos maiores e mais diversos. Como minhoto, é algo que me agradaria muito.
Repare-se que isto não seria uma grande questão se o ICA cumprisse cabalmente o papel de construir um mercado audiovisual forte, variado e amplo. Como podemos saber se o fez? Aqui entra o texto magistral do Luis Campos, fruto da sua pesquisa para uma prometedora tese de doutoramento. Chamou-me particularmente a atenção este trecho: «entre 2004 e 2019, (...) [num universo de 2090 empresas], mais de metade dos montantes atribuídos (53%) ficaram concentrados na actividade de apenas 10 produtores, sendo que 20% do total do dinheiro atribuído ficou concentrado na actividade de apenas dois produtores». O total de entidades beneficiadas em 15 anos é de 202, menos de 10% do setor. Parece muito pouco, mas é o suficiente para responder a pergunta no início do parágrafo. 
É muito normal que questões deste tipo caiam no tudo ou nada. O ICA é importantíssimo para o audiovisual português e é por isso que a sua atuação é merecedora de discussão. De certa forma, todos querem o mesmo: que o setor cresça pujante e saudável. Eu considero que esta lei é um bom começo.

MARTIN EDEN (2019)

Este é um filme sobre individualismo e, ainda que não seja o mais importante, fico pensativo sobre se é um elogio ou uma advertência. A transformação súbita da personagem no último ato custou-me a engolir: não entendi muito bem como é que um proletário, de repente, parece o Ozymandias do Jeremy Irons. As referências literárias dão pistas, enfim. A forma é o que torna este filme intrigante, com o uso de planos de filmes antigos enquanto elemento e a sua construção enquanto objeto extemporâneo, que adapta um romance de 1909 com uma linguagem visual que às vezes lembra o neorrealismo e outras as montagens cinematográficas dos anos 80. Deixou-me com muita vontade de ver os outros filmes do realizador Pietro Marcello.

WE ARE WHO WE ARE (2020)

Nunca fui o maior fã de Luca Guadagnino, e parece-me que aqui ele sofre o mesmo problema que o seu conterrâneo Paolo Sorrentino sofreu quando desenvolveu "The Young Pope": a dificuldade de passar dos ritmos próprios do Cinema para a linguagem televisiva, que pede um estímulo constante (ainda que não necessariamente narrativo) e ganchos mais fortes. O primeiro episódio é desconcertante e marca pela originalidade, mas depois reina uma sensação estranha, como se supusesse que o grande ponto de interesse fosse um realizador a fazer exercícios de estilo autoral. Isso não é suficiente. Se os próximos episódios me fizerem mudar de ideia, eu aviso.

THE TWILIGHT ZONE (1959)

Tenho andado a ver a série original e a confirmar o seu estatuto de canónica. Os episódios têm meia hora, 8 a 10 cenas se tanto e não mais do que 3 ou 4 personagens principais. Ainda assim, com tão pouco, faz mais do que muito boa gente hoje, o que me deixa a pensar se não devemos considerar o teatro e, mais especificamente, a radionovela como a raiz fundamental a partir da qual deve entendida a ficção televisiva. A primeira temporada de 1959-60 começa lúgubre e trágica, termina cómica e fantasiosa e lança pistas para toda a ficção científica (e talvez não só) que se fez depois. O episódio "The Monsters Are Due on Maple Street" deveria ser ensinado no mundo inteiro em aulas de Educação Cívica.

RATCHED (2020) e ONE FLEW OVER THE CUCKOO'S NEST (1975)

Pode ser por "American Horror Story: Coven" ter esgotado a minha paciência para o Ryan Murphy, pode ser por ver os mesmos trejeitos narrativos e estilísticos a repetirem-se série após série, mas não acho que esta nova enfermeira Ratched seja comparável à personagem nada glamorizada e esvaziada de compaixão que Lousie Fletcher interpretou no filme clássico de Miloš Forman. Nalgumas coisas, definitivamente, menos é mais.

REPO MAN (1984)

Há dias, li sobre algum filme a crítica de que “tinha ideias demais”. “Repo Man” também tem. A sinopse do filme na Wikipedia descreve-o assim: «a 1984 American science fiction black comedy film (...). Set in Los Angeles, the plot concerns a young punk rock enthusiast who is recruited by a car repossession agency and gets caught up in the pursuit of a mysterious Chevrolet Malibu that might be connected to extraterrestrials». É muita coisa, cada uma mais inaudita do que a outra. Porém, por alguma razão, o filme funciona muito bem. Talvez seja o fato de tudo ser muito divertido e ter ótima música como fundo, mas eu acho que é porque ele deixa as ideias passarem sem se acumularem, transpondo o absurdo da sua premissa para a construção da sua própria narrativa. Às vezes, seria muito fácil dizer “isto não faz sentido algum”, mas isso seria cair na sua doce armadilha. É como se o filme nos dissesse “eu posso levar-me a sério – mas vocês não”. Não vejo a hora de o ver outra vez.

REAL LIFE (1979)

Uma bela comédia de Albert Brooks que, de certa forma, prevê o que seriam os caminhos futuros da “reality TV” numa época em que o único exemplar era a série seminal “An American Family”, da PBS. Também parece firmar o estilo de “mockumentary” que hoje identificamos com o género e que seria depois desenvolvido por Christopher Guest (Harry Shearer, que co-escreveu o filme e contracenou com Guest em “Spinal Tap”, é também uma das suas figuras proeminentes). Porém, no final ficou-me a sensação de que há Brooks demais e de que a família filmada merecia mais tempo de ecrã.

SCREAM (1996)

Parece impossível só ter visto “Scream” agora, mas a verdade é que, sempre que o apanhava na televisão, ele parecia-me “teen” demais e acabava por me desinteressar. Fiz um esforço para me concentrar e decidir finalmente se ele fica à altura de “Wes Craven's New Nightmare” (1994), um dos meus filmes de terror mais adorados de sempre. Percebi uma coisa: “Scream” não é exatamente um filme de terror. É claro que ele é realizado por um mestre imortal do género, é claro que ele é cheio de citações e é claro que ele é uma belíssima obra meta-narrativa. Porém, acho que lhe falta um elemento que considero essencial para dizer que algo é “terror”: o motor da sua narrativa não é a superação da normalidade interrompida por uma força que desafia a Razão, mas sim descobrir quem é o assassino. Ele não nos dá vontade de exclamar “sai daí”. Na verdade, nós queremos é que a Neve Campbell fique, para conseguir arrancar a máscara do sujeito que a atormenta. Ele não nos confronta com o absurdo e o medo, mas com a lógica do “whodunnit”, que nos leva a juntar mentalmente as pistas e tentar  descobrir o culpado antes da protagonista. De qualquer forma, fiquei muito contente por finalmente ter feito as pazes com o ótimo “Scream”.

RBG (2018)

Documentário sobre a falecida juíza Ruth Bader Ginsburg, com um foco curioso na forma como, em anos recentes, ela ganhou fama online e se tornou ícone da cultura popular. Respeitoso, mas interessante.

24 HOUR PARTY PEOPLE (2002)

Rever este filme provocou-me um movimento duplo da memória: o tempo que passou desde a sua estreia é mais ou menos o mesmo que o separava da “Madchester” dos anos 70-80 que retrata. Sempre fico um pouco melancólico quando me lembro dos cinemas Avenida em Coimbra, mas aqui a melancolia não dura muito, porque, mal começamos a ouvir Happy Mondays, a gente quer é dançar e ser tão feliz quanto o Bez.

GANJA & HESS (1973)

Um filme difícil de encontrar, cuja versão original só existiu, durante anos, numa única cópia guardada no Museum of Modern Art de Nova Iorque. É também um filme extremamente inteligente: o realizador Bill Gunn manipula os tropos da “blaxploitation” (violência, erotismo, crime) para, na verdade, construir uma história muito sofisticada sobre vício e assimilação cultural. Um apontamento final: se o fabuloso Duane Jones não tivesse morrido em 1988, hoje ele teria um estatuto comparável ao de Morgan Freeman.

APT PUPIL (1998) e 1408 (2007)

Duas adaptações honestas de Stephen King. Veem-se bem, apesar de nenhuma ser perfeita. “Apt Pupil” é muito eficaz ao montar um jogo de gato e rato que nos faz duvidar constantemente sobre quem é herói e quem é vilão. “1408” parece uma espécie de exegese dos temas em “The Shining”, mas ainda dá para dar uns pulos de susto  no sofá.

DAZED AND CONFUSED (1993)

Mereceria um lugar na história da cinefilia apenas por ser o primeiro filme em que Matthew McConaughey diz “alright, alright, alright”. Porém, é muito mais do que isso. Enquanto retrato geracional, poderia formar um díptico com o “American Graffiti” de George Lucas, feito vinte anos antes e sobre uma noite vinte anos anterior à que vemos aqui. Se considerarmos o quanto Richard Linklater gosta de abordar a passagem do tempo enquanto tema (“Boyhood”, a trilogia “Before”), talvez isso não seja apenas pura coincidência.

THE MIDNIGHT EXPRESS (1978)

Não sei se é por os últimos 40 anos de filmes terem mostrado prisões muito cruéis (“The Shawshank Redemption” vem-me imediatamente à mente só por mencionar o género), mas, sinceramente, não achei as prisões turcas assim tão más. O sistema jurídico, sim. De qualquer forma, pela forma como cria um Outro primitivo e incapaz de lidar com as suas próprias limitações, este é um filme modelo de olhar hegemónico norte-americano, não é?

LES ANGES DU PÉCHÉ (1943)

Um filme sobre freiras escrito por um frade e primeiro longa de Robert Bresson. O estilo e temas são convencionais, mas os filmes franceses da era da ocupação alemã sempre me fascinam: em tempo de clandestinidade e Resistência, uma das primeiras sequências, em que as freiras executam um plano de fuga noturna para conseguirem levar uma prisioneira para o convento, não pode ser vista como mero e inocente elogio ao êxtase religioso. De resto, pergunto-me se não terá servido de inspiração para o "Entre Tinieblas" de Almodóvar.

THE SOCIAL DILEMMA (2020)

O debate sobre este filme nas redes sociais foi mais um daqueles que se fazem por não haver muito mais a falar. Não diz nada de novo? Talvez não, mas manter o público em alerta constante sobre os perigos da partilha de dados nas redes sociais e a forma como elas podem ser usadas para atingir objetivos odiosos é hoje uma necessidade tão premente como a de lembrar sempre as pessoas que o cigarro faz mal.  Ainda assim, a ficção e o tom final de "vai ficar tudo bem" espetacularizam a mensagem de forma dispensável.

CHEF'S TABLE: BBQ (2020)

A gente diz que o Chef's Table está velho, mas depois ele atira-nos com uma velhinha norte-americana que faz um brisket que sai da churrasqueira a derreter e com mulheres maias que nos ensinam a "cochinita pibil" e vamos fazer o quê? Comer pelos olhos, certamente.

MAD MEN (2007)

Foi das poucas séries da "nova era dourada" que não vi em modo "binge". De 2007 a 2015, no início da semana, eu sentava-me e via um episódio, normalmente depois de "Game of Thrones", um costume que devo à TVI dos anos 90 quando, aos sábados, passava um episódio de "Third Rock From The Sun" seguido de dois de "The X-Files". Revê-la hoje permite-me reparar em algumas sutilezas de que não me apercebera. Pete Campbell tem mais de anti-herói patético do que de vilão, a Peggy parece ainda mais fria e, sempre que Don Draper acende um cigarro, ele estará a lembrar-se daquele momento definidor da sua vida (não o vou mencionar, mas quem viu a série lembra-se) que aconteceu por causa de um isqueiro mal apagado.

PEEP SHOW (2003)

Acabo muitas noites a ver vídeos de programas de auditório ingleses no YouTube, como "QI" ou "Would I Lie To You", porque assim é a vida. O ator David Mitchell é convidado frequente neles e, no outro dia, enquanto procurava algo para ver na Netflix, reconheci-lhe o rosto na imagem que me sugeria esta série. Tinha a sensação que já tinha ouvido falar ou lido algo sobre ela e, quando a vi, lembrei-me logo: uma série admiradíssima e cultuada do início do século, com comédia de embaraço filmada em planos subjetivos. Envelheceu muito bem e faz rir muito — tanto que vi a primeira temporada numa única noite. Para quem gosta de perguntar "mas tem na Netflix?", é do melhor que podem encontrar por lá.

DUNE (1984)

Não achei grande graça ao trailer do "Dune" de Denis Villeneuve. Aliás, tirando "Enemy" ("O Homem Duplicado", 2013), nunca achei grande graça ao Villeneuve. Fui rever o filme do Lynch (que deveria ter sido do Jodorowsky, mas não foi) e confirmei o que já se sabia: são precisamente as esquisitices de estilo e o tom "new age" exagerado que dão a este filme toda a sua graça. Curiosamente, isso revela algo sobre o Cinema que se faz hoje em dia: a maquia que custa fazer um filme é hoje tão grande que toda a gente morre de medo de espantar o público com um pouco de bizarria. É como se, por ver tantos belos voos, as pessoas se tivessem esquecido de como é belo ver Ícaro queimar as asas.

THREADS (1984)

Descobri "Threads" graças a posts muito elogiosos em grupos de cinéfilos no Facebook, aos quais um amigo meu sempre adicionava um comentário mais elogioso ainda. Depois de vê-lo, só posso dizer o seguinte: nunca pensei que o filme pós-apocalíptico mais assustador de sempre fosse um telefilme da BBC de 1984, mas assim é.

I'M THINKING OF ENDING THINGS (2020)

Vi-o há algumas semanas, um dia depois da estreia. Nessa mesma ocasião, escrevi a anotação: "quem gosta de Charlie Kaufman vai adorar. Quem não gosta vai odiar. Quem não sabe se gosta ou não gosta, nunca viu Charlie Kaufman". É um filme que encanta e assombra e fica a pairar na alma, e acho que em breve o vou ver outra vez.

THE CRUCIBLE (1996)

Deu-me vontade de ver este filme escrito pelo Arthur Miller a partir da sua peça. Por alguma razão, uma história que mostra como o ardor religioso e a fofoca podem levar toda uma comunidade à chacina - principalmente se tiverem um tribunal disposto a fazer-lhe as vontades - pareceu-me adequada aos dias de hoje. E vocês, o que acham?

SUBMARINE (2010)

Conhecia Richard Ayoade como ator e comediante e não sabia que ele também realizador. Aqui, eu diria que ele até é mais do que isso: é o criador refinado de duas das melhores e mais complexas personagens adolescentes do cinema recente.

BLACK EARTH RISING (2018)

Eu já tinha visto o primeiro episódio desta série antes e ela não me agarrou, talvez porque me faltava um anzol que me prendesse mais seguro. Nesta segunda tentativa, esse anzol, claro, foi Michaela Coel, e ainda bem que assim aconteceu, porque bastou só um pouquinho de atenção a mais para confirmar que o autor Hugo Blick é hoje o grande criador de narrativas que mostram a interdependência entre o pessoal e o geopolítico no mundo globalizado.

I MAY DESTROY YOU (2020)

Saber que Michaela Coel sofreu o abuso aqui abordado enquanto escrevia a 2ª segunda temporada de "Chewing Gum" deixa um travo amargo. "I May Destroy You" impressiona, não só pela honestidade bruta com que aborda o tema, mas também pela forma (assumida) como, de história sobre consentimento, se transforma em história sobre o próprio ato de contar uma história, em tudo o que este tem a ver com a memória e a reconfiguração do tempo segundo a perspetiva humana. O seu episódio final é uma obra-prima.

EAT MY SHIT (2015) e PIELES (2017)

A curta-metragem "Eat My Shit" é uma mistura ultrajante de "body horror" com comédia ácida, "Pieles" é como se Douglas Sirk tivesse concebido um projeto de homenagem ao "Freaks" de Tod Browning que Almodóvar concluiu no século XXI, e eu espero muito filmes novos do realizador Eduardo Casanova.

FEMALE TROUBLE (1974)

Divine já era tão importante para a obra de John Waters e uma figura tão culturalmente marcante que o realizador fez-lhe a história de origem que ela merecia: absurda, e divertidíssima.

THE PINK PANTHER (1963)

Quando era miúdo, odiava os filmes da série "The Pink Panther", porque não conseguia acreditar que só tinham o desenho da pantera no início e depois se transformavam numa comédia policial que não interessava ninguém. Hoje, já penso diferente. Vê-se a Claudia Cardinale numa coprodução internacional gigante lançada no mesmo ano de "8½", vê-se o Peter Sellers a esbanjar brilhantismo e vê-se o Blake Edwards a dinamitar a estrutura teatral do policial clássico ("um hotel, cada pessoa no seu quarto, será que se vai descobrir quem é o criminoso?") com um ato final absolutamente delirante.

FORBRYDELSER (2004)

A estagnação do Dogma 95 não foi tão formal quanto foi temática. Os filmes do séc. XXI do movimento perdem a malícia agitadora de "Idioterne" e "Festen" (1998) e a "malaise" profunda de "Julien Donkey Boy" (1999). Parafraseando o manifesto do movimento, o cinema antiburguês tornou-se burguês ao preferir o melodrama amoroso ("Elsker dig for evigt", 2002) ou o neorrealismo ligeiro deste "Forbrydelser".

VARIAÇÕES (2019)

No ano passado, vi algumas polémicas na minha timeline do Facebook sobre este filme. Não entendo porquê. É um "biopic" musical bem escrito, bem realizado, bem interpretado. Ficaria bem na cinematografia de qualquer país. Porque não na de Portugal?