FOTBAL INFINIT (2018)

O diretor romeno Corneliu Porumboiu encontra um homem simples com um emprego burocrático e tenta entender a motivação para o seu projeto de vida: encontrar uma forma alternativa de jogar futebol em que a bola se mova mais e mais depressa do que os jogadores. É um documentário simples, filmado em meia dúzia de sequências, mas o monólogo final do protagonista é tão poderoso que não resisti a traduzi-lo. Quem não quiser "spoiler", fica avisado. 

— Quando tinha 19 anos, já tinha sofrido vários acidentes. Comecei a perguntar-me porque estas coisas aconteciam. Estaria a receber castigo divino por erros do passado? Comecei a olhar para trás, perguntando-me qual erro merecia esta punição. Na Bíblia, em Apocalipse 3:19, Deus diz «eu repreendo e castigo a todos quantos amo». Parece uma contradição total. As pessoas que Deus ama, ele repreende e pune: qual o sentido disso? Quando eu era estudante, encontrei uma versão original da Bíblia em grego, e, para dizer "castigo", eles usavam um termo relacionado à "paideia". Em Filosofia, ao estudar a alegoria da caverna de Platão, aprendera que a palavra "paideia" é usada para expressar "conhecimento". Sob a influência do conhecimento, a pessoa receberia a luz, e a República de Platão descreve uma humanidade que vive dentro de uma caverna escura e deve ser levada até à luz pela "paideia", mas gradualmente, porque, se sai da caverna de repente, a luz pode cegá-la. Mas aqui eu encontrara a palavra "paideia" usada para significar simplesmente "castigo". Também descobri a mesma coisa para "metanoia", "metanoeo" e outras palavras relacionadas, que agora são traduzidas no Novo Testamento como "arrependimento". Na Bíblia atual, Jesus diz «arrepende-te!». Mas, considerando o sentido original da palavra "metanoia", isto deveria ser traduzido como «muda!». Tive uma espécie de revelação, e contatei a minha professora de Grego Antigo, Mihaela Paraschiv. Ela explicou-me que estas palavras originalmente tinham conotações não-violentas. "Paideia" significava "educação não violenta", "metanoia" significava "transformação". Porém, durante o feudalismo, a igreja cristã começou a atribuir a estas palavras conotações violentas, que eram úteis para dar uma justificação espiritual a todo o tipo de abusos e para responder às perguntas das pessoas. Era mais fácil dizer que uma doença é um castigo divino por algo que nós ou os nossos antepassados fizeram. Comecei a entender que, de uma perspectiva moral e espiritual, violência não é boa. Tentar justificar violência usando certa palavras da Bíblia não é coerente. Então, eu entendi que, se conseguirmos encontrar regras, normas e um contexto geral em que as pessoas possam ser menos violentas, é possível viver em maior harmonia. Isto também se aplica ao desporto.
— O teu desporto é uma espécie de utopia política.
— Não.
— É uma utopia.
— Não. É uma solução autêntica. É isso que quero dizer.  Só parece utópico para aqueles que se recusam dar a si mesmos uma certa liberdade.

O que também tenho visto


SOUL (2020). O último da Pixar tem tanto de divertido quanto de comovente e ensina duas lições importantes: os adultos devem aproveitar mais a vida e as crianças devem aprender a gostar de jazz. 

DRUK ("Another Round", 2020). O vencedor dos European Film Awards é marcado pela tragédia pessoal do diretor Vinterberg: a sua filha Ida, que seria atriz no filme, morreu no início das gravações. Talvez por isso, é um filme sobre pessoas que se perdem das outras e também de si mesmas, desde as personagens que seguimos até toda a Dinamarca. É um "coming of age" da meia idade que nalguns momentos nos lembra "Idioterne" de von Trier e noutros "I Vitelloni" de Fellini e que nunca, nem mesmo no seu final aparentemente iluminado, larga inequivocamente a dor que o motivou. É como se o filme nos dissesse que, na vida, segue-se em frente, sim, mas carregado de cicatrizes.

LONG STRANGE TRIP (2017). Na Amazon Prime. De Grateful Dead só conheço a fama, as histórias e a "Dark Star", mas se há uma coisa certa nesta vida é que os documentários sobre músicos produzidos pelo Scorsese entretêm. 

SPOORLOOS (1988). Aparece muito em listas de terror, mas isso é enganoso. "Spoorlos" é, na verdade, um ótimo suspense, apesar das marcas do tempo, como aqueles sintetizadores chatos que de vez em quando se fazem ouvir na trilha. No final, lembra Haneke: o destino das personagens é consequência tanto das suas ações quanto da vontade insaciável do espectador "voyeur" e cruel, que quer saber mais e mais independentemente do que acontecer. 

MONOS (2019). Um filme colombiano sobre um grupo paramilitar de adolescentes que é uma mistura de "Lord of the Flies" com "Apocalypse Now" e que deve ser visto considerando a história do país com as FARC. Fantasioso e com locações incríveis, é um filme poderoso, que nos surpreende constantemente e que parece dizer que a violência é bem menos fluida do que o género.

O que vi no Natal

O Natal longe da família teve momentos de melancolia, por isso, comecei-o revendo filmes. "The Money Pit" (1986) continua a ser uma ótima comédia, que nos faz rir com o "slapstick" e ainda pode ser usada por professores para explicar o que é uma metáfora (a casa = o relacionamento).  "Die Hard" (1988) continua a ser o filme que tirou os músculos do herói de ação e para o bem e para o mal, mostrou que pessoas normais também podem eliminar terroristas. 

Depois entrei numa sequência Bill Murray. Nunca vira "A Very Murray Christmas" (2015), na Netflix, um filminho muito querido. Passei para "The Bill Murray Stories" (2018), documentário sobre as aparições do ator em locais e situações inesperadas (festas privadas, bares, e por aí adiante) que só mostra que ele é um sujeito que parece saber viver bem a vida. Terminei com "Scrooged" (1988), adaptação de "A Christmas Carol" que melhora com os anos passados, mesmo que eu não esteja muito certo se são os anos do filme ou os meus.

"Scrooged" levou-me a uma vibração mais classicamente natalina, então fui atrás de filmes com o Pai Natal. "Santa's Slay" (2005) é uma comédia "trash" divertidíssima com um Pai Natal assassino que é filho de Satanás e uma virgem chamada Erica. Já o finlandês "Rare Exports" (2010) não é exatamente uma comédia e parece sofrer com a falta de dinheiro para efeitos visuais mais impressionantes, mas é atravessado do início ao fim por um humor muito ácido que o sustenta bem.

O período de festas terminou com "The Shawshank Redemption" (1994). A minha mulher nunca o tinha visto, por isso, tive um pretexto para revê-lo pela enésima vez. Para quem não viu, poderíamos dizer que é um filme sobre não perder a esperança de que tudo acabe numa praia paradisíaca. Adequadíssimo aos nossos tempos, portanto.

HOW TO WITH JOHN WILSON (2020)

Uma série intrigante e inusitada. Foi produzida por Nathan Fielder, então, já se esperaria a mistura entre documentário e comédia, mas aqui vai-se mais longe. É uma espécie de videoensaio com cenas do cotidiano que fica entre o riso e a melancolia, entre a inconsequência e a genialidade, entre o hipster e o atemporal. Tem momentos que nos fazem rir descontroladamente, outros que nos deixam em absoluto estado de constrangimento e outros que nos comovem. São seis episódios bem curtinhos e recomendo vê-los em sequência: o final é inesperado e muito, muito bonito.

THE HOWLING e AN AMERICAN WEREWOLF IN LONDON (1981)

Não sei se foi coisa da lua, mas os grandes Joe Dante e John Landis realizaram estes dois filmes de lobisomem no mesmo ano. Ambos têm muitas homenagens cinéfilas e usam o género criticamente ("The Howling" está ao nível de "Network" na sua sátira da televisão e o protagonista de "An American Werewolf" é um americano imbecil que recusa aceitar a responsabilidade pelo estrago que faz no estrangeiro) e mostram um avanço nos efeitos de transformação que Landis levaria a um célebre ápice no "morphing" do vídeo de "Black or White". São filmes de um tempo em que os efeitos ainda pareciam de carne e osso, e destaco a divertida cena do acidente em Piccadilly Circus de "An American Werewolf", que sempre me pareceu um prelúdio para a monumental destruição que Landis encenaria durante a sequência de perseguição em "The Blues Brothers".

SCHITT'S CREEK (2015-)

Estive a gravar em estúdio durante as últimas semanas e o trabalho pesado puxa-me a vontade de ver algo leve, descomplicado e sem compromisso. Decidi experimentar a grande vencedora dos últimos Golden Globes de Comédia, e acertei em cheio. Vê-se com um sorriso, tem um elenco ótimo (Catherine O’Hara e Eugene Levy são enormes, enormes) e principalmente as primeiras duas temporadas são uma mistura encantadora de graça com uma elegia à vida simples.

GAVIN & STACEY (2007-)

James Corden tornou-se famoso por ter sido co-autor (com Ruth Jones) desta série, uma das sitcoms mais vistas de sempre na Grã-Bretanha e que passou em Portugal na RTP2, no lendário espaço "Britcom". Quem hoje vê o ator no papel de apresentador de talk-show que, de vez em quando, convida estrelas para cantar num carro percebe que ele tem uma leve tendência para o histrionismo. Por isso, foi com alguma surpresa que percebi como "Gavin & Stacey" é uma série profundamente humana e sensível. Arrisco dizer que o é por não ser moralista e por fazer justiça às suas personagens: todas têm falhas de caráter, mas nenhuma é tonta. A comédia está toda nas situações cotidianas que aparecem (problemas de relacionamentos, filhos, gravidezes inesperadas, gravidezes impossíveis, etc.) e na forma como estas pessoas lidam com elas. É uma série sensível que não é sentimentalista, coisa rara, ainda mais em comédia.

THE INVISIBLE MAN (2020)

Representou uma mudança de direção no universo cinemático dos monstros da Universal (menos efeitos especiais, mais história e personagem) e é uma absoluta vitória. Revisita a história do Homem Invisível fortalecendo a perspectiva da personagem feminina, revelando aquela como um conto sobre relacionamento abusivo e perseguição, em sintonia com os tempos e conseguindo grandes momentos de suspense.

ENGLAND IS MINE (2017)

Esta biografia ficcional e não-autorizada de Morrissey sofre com os defeitos do próprio: é muito difícil empatizar com uma personagem tão chata e com tamanhas ilusões de grandeza.. 

DARK WATERS (2019)

Na Amazon Prime. Acho que nunca vira um filme do Todd Haynes tão abertamente de denúncia. Fiquei boquiaberto por descobrir, não só como o uso e fabrico do Teflon são nocivos para a saúde, mas também a monumentalidade da ação jurídica que foi necessária para que as suas vítimas fossem compensadas. Depois desta, as minhas frigideiras estão com os dias contados.

ROOM 2806: THE ACCUSATION (2020)

Sinceramente, eu pensava que Dominique Strauss-Kahn estava preso e, se não fosse esta série da Netflix, ainda o pensaria hoje. Ao contrário de outros documentários de "true crime", ela não tenta desenterrar novos fatos e prefere fazer algo que, arrisco, talvez seja até mais interessante: ela revela o ex-dirigente do FMI como a prova cabal de que as brechas do sistema servem para os poderosos se abrigarem. As vítimas de Strauss-Kahn são muitas, mas as do sistema somos todos nós.

SMALL AXE (2020)

Acho que esta obra do Steve McQueen é das coisas mais incríveis que vi na televisão nos últimos tempos. Primeiro, por causa do seu formato inusitado: não é bem uma série, mas uma "série de filmes", o que tem levado à indefinição sobre qual a temporada de prémios a que ela deve concorrer. Ao que parece, o próprio McQueen esteve indeciso e, em algum momento durante os dez anos em que ele andou a desenvolver o projeto, ela assumiu a forma de uma série mais convencional. Porém, quando ele percebeu que tinha material muito rico nas mãos, decidiu que o melhor seria fazer cinco filmes, cada um contando uma história da comunidade afro-caribenha de Londres durante os anos 60 e 70. Alguns filmes contam histórias inspiradas em pessoas reais; outros inventam personagens ficcionais para retratar fatos ou ambientes. Eles também variam em estilo, mostrando as diversas facetas autorais de McQueen: "Mangrove" e "Alex Wheatle" lembram "Hunger" no seu retrato da pessoa contra um Estado opressivo, "Red, White and Blue" e "Education" focam na importância da consciência individual na luta contra a injustiça. Para mim, o mais extraordinário é "Lovers Rock", em que McQueen parece voltar às suas raízes de "video artist" para nos apresentar um baile num "sound system". Enredo fino, extremamente visual e, simultaneamente, totalmente realista, com momentos que me deixaram de queixo caído e completamente preso na tela. Com um elenco extraordinário, quase todo negro, e histórias que tocam em feridas profundas do colonialismo, não consigo entender porque a Amazon Prime ainda não estreou esta série no Brasil.

STUART: A LIFE BACKWARDS (2007)

Um telefilme com uns jovens Tom Hardy e Benedict Cumberbatch que, no fundo, serve como veículo para eles se mostrarem e anunciarem os estilos de representação que ainda hoje os caracterizam: o sutil, "posh" e pontualmente arrogante Cumberbatch em contraste com o excesso de Hardy que o leva tanto à genialidade quanto à caricatura.

HARD EIGHT (1996)

Que grande personagem é o Sydney de Philip Baker Hall, e como a rapaziada independente americana dos anos 90 sabia subverter as expectativas e surpreender com grandes filmes. Esperei tempo demais para revê-lo. Juro que a próxima não demorará tanto.

I, TONYA (2017)

Foi realizado por Craig Gillespie, o mesmo de "Lars and the Real Girl", e confirma o apreço do cineasta por figuras da América escondida atrás das luzes e da purpurina. Nos cursos de guião, ensina-se muito que é necessário respeitar as personagens, os seus caminhos. Este filme é o exemplo claro de que isso não significa deixar-se enganar por elas: ele é povoado por pessoas desprezíveis e não esconde a ironia (até o humor) com que olha para elas. A honestidade só lhe fica bem.

REQUIEM FOR A DREAM (2000)

20 anos depois, apeteceu-me revisitar esta descida aos infernos. Envelheceu muito bem, com a sua montagem sensorial, o uso narrativo do som e da música do Kronos Quartet e o pensamento sobre as imagens enquanto espelhos, que levaria a coisas como "Black Mirror", por exemplo. Uma fraqueza: a ocasional concessão em demasia à estética MTV, explorando a materialidade da imagem (interferências, saturação, etc.) de forma um pouco inconsequente. Mesmo assim, não dá para desviar o olhar em nenhum momento.

BELUSHI (2020)

Excelente documentário sobre esse meteoro de comédia que foi John Belushi. Além da pesquisa notável, que qualquer "comedy buff" apreciará, chama a atenção o formato de "oral history". Sem mostrar os entrevistados e recorrendo ao material de arquivo para ilustrar as suas falas, concentra-se completamente no esforço biográfico, e as contradições nos testemunhos parecem revelar mais do que apareceria se se tivesse escolhido uma visão predominante.

BLOW THE MAN DOWN (2019)

Uma daquelas histórias de faca e alguidar que constroem a mitologia das cidades piscatórias, com a originalidade de dar a mulheres o protagonismo de motores da ação. Um belo filme na Amazon, com alguns ares do "neorrealismo mágico" que parece andar em voga.

MANK (2020)

Muitas pessoas não gostam de Citizen Kane porque lhes disseram que deviam gostar e acabaram por ficar de pé atrás. Ver ou gostar de Citizen Kane não é pré-requisito para gostar de Mank, mas pelo menos conhecê-lo ajuda. O novo filme de David Fincher é como a segunda fala de uma conversa. É uma resposta ao filme de Welles e ao cinema clássico americano que às vezes é homenagem (a mistura de áudio, com todos os canais centralizados, e a edição tensa marcada por diálogos rápidos emulam os filmes da época) e outras crítica, mas, na maior parte do tempo, prefere mostrar que o passado ainda nos acompanha no presente, num pernicioso eterno retorno. Além disso, é uma espécie de homenagem de Fincher ao pai Jack, que lhe escreveu o filme e morreu antes que o filho conseguisse fazê-lo. É um feito cinematográfico extraordinário e arriscaria dizer que é um dos melhores filmes da década.

TENET (2020)

Sempre gostei bastante de Christopher Nolan, mesmo sabendo que muita gente o considera irritante e pretensioso. Justo. Cada um gosta do que gosta. Porém, diria duas coisas sobre Tenet. Primeiro, que metade das coisas que se barafustaram sobre ele não teriam sido barafustadas se Nolan não tivesse feito Inception há dez anos. Segundo, que Nolan cumpre aquilo que se espera dele no seu melhor: criar um jogo de engodos com o seu espectador. Sim, Tenet é um filme de espionagem mascarado de ficção científica. E daí?