R (2010)

Tobias Lindolhm é um cineasta dinamarquês que já escreveu várias coisas que vocês provavelmente viram ("Borgen", "A Caça", "A Comunidade") e dirigiu outras que vocês ainda vão ver ("Krigen", "Kapringen"). "R" é o seu primeiro filme e o começo da sua colaboração com Pilou Asbæk, que hoje deve estar no pelotão de atores dinamarqueses mais reconhecíveis  logo atrás de Mads Mikkelsen. Não é difícil ver "R" e dizer algo como «um filme de prisão num lugar em que cada preso tem para si um quartinho melhor do que aqueles em que muita gente mora? Uau, deve ser muito difícil». Ironias à parte, o filme é uma análise bem pesada das hierarquias complexas que se criam dentro de uma prisão e termina com uma moral bem clara: por muito que nos imponhamos divisões e diferenças, no fundo somos todos réplicas uns dos outros.

MICHELLE WOLF: JOKE SHOW (2019)

O show da Ilana Glazer foi tão chatinho que achei que merecia algo melhor. Apostei que o especial da Michelle Wolf para o Netflix não me iria decepcionar, e ganhei a aposta. Foi até interessante ver os dois na sequência para perceber o porquê. Wolf fala exatamente sobre os mesmos temas que Glazer — menstruação, feminismo, sexualidade — e vai mais longe, abordando o cancelamento, o estupro e até o aborto que ela fez no passado. A diferença entre as duas comediantes consiste num ponto muito simples: em nenhum momento Glazer põe algo em causa. Ela é um dado adquirido e o mundo não é um problema complexo a ser resolvido, mas um simples pretexto para ela dar a sua opinião. Ora, o show de Wolf é exatamente o oposto. Ela e o mundo aparecem como lugares complexos, onde nada é adquirido e onde é possível fazer punchlines com frases como «as mulheres brancas são as vítimas mais privilegiadas» ou «quando fiz o meu aborto, senti-me poderosa». Como qualquer grande comediante, Wolf deixa-nos pensativos depois de passar 1 hora a fazer-nos sentir o perigo que as palavras podem conter.

STARSHIP TROOPERS (1997)

Se há alguém que se pode queixar de ter sido mal entendido, essa pessoa é Paul Verhoeven. Lembro-me bem de quando este filme estreou e de todas as acusações que o realizador ouviu: efeitos digitais maus e a mais, violência gratuita, elogio ao totalitarismo, e por aí adiante. A grande injustiça é que a ironia de Verhoeven não é tão difícil de compreender. A artificialidade dos efeitos, da história e das personagens e a forma como a nação, a ordem, o militarismo e o ódio ao inimigo são exaltados em excertos de noticiários (como ele já tinha feito em "Robocop") diz-nos outra coisa: «este filme é fascista porque ele faz parte de um sistema de imaginário — o cinema, a informação, as imagens que vocês veem — que é fascista». Torcemos pelos heróis de Verhoeven, porque queremos que o herói vença, mas, ao mesmo tempo, reconhecemos o absurdo do imperialismo militarista de que eles fazem parte porque o realizador deixa evidente que o meio audiovisual é um elemento fundamental para a construção desse imperialismo. Verhoeven foi castigado por ter colocado o género e o espectador moralmente em causa, e isso não se lhe podia permitir.

ILANA GLAZER: THE PLANET IS BURNING (2020)

Gostava muito de "Broad City", principalmente das primeiras temporadas. Por isso, quando vi este especial de stand-up da Ilana Glazer no catálogo da Amazon Prime, não resisti, mas antes tivesse resistido. Glazer tem um grande problema que nunca consegue resolver (apesar de começar o "set" falando sobre ele): a distância entre a sua personagem na série e ela própria. O seu "delivery" do texto é preguiçoso, como se ela não tivesse conseguido dominar o tempo específico do stand-up, e, enquanto fala sobre menstruação e sexualidade, não diz nada de novo ou de particularmente engraçado. Além disso, o público não ajuda. Aquelas pessoas estão lá mais para ver Glazer, rainha dessa espécie em vias de extinção que é o hipster de Brooklyn, do que para ouvir o seu número. É só ela gritar «xana!» ou «gosto 60% de homens e 40% de mulheres» que toda a gente irrompe numa saraivada de aplausos e vivas. Muito, muito fraquinho.

THE HATER (2020)

Conhecido no Brasil como "Rede do Ódio", é um filme que vem a calhar para estes tempos de divisões e que mostra bem como as redes sociais — surgidas como promessa de uma comunicação sem obstáculos entre as pessoas — são espaços de manipulação e distorção com consequências terríveis no mundo. Uma espécie de "Nightcrawler" (2014) do mundo digital, não resiste a alguns clichês, mas é interessante na sua crítica ao jogo político, da esquerda caviar à direita nacionalista, e termina com uma moral curiosa: num mundo de imagens, quem se esconde é rei.

MA LOUTE (2016)

Foi-me recomendado este filme que o Bruno Dumont filmou entre Quinquin e Coincoin. Há algo em Dumont que me lembra o saudoso João César Monteiro: a capacidade subversiva de impor um ritmo lento, que intriga e faz com que nos surpreendamos ainda mais quando algum absurdo aparece. Pensamos outra e outra vez "peraí, eu vi mesmo aquilo que penso que vi?" enquanto Dumont nos vai atirando realismo mágico, canibalismo, uma aristocracia podre e incestuosa, referências cinéfilas (Laurel & Hardy, "O Atalante") e assassinatos mil. Como nas suas séries, a história é um pretexto que serve para nos presentear com tudo isso e que não precisa de um fim convencional. Divertidíssimo.

CAR WASH (1976)

Ao ver esta comédia de "blaxploitation" que passava em sessões da tarde na televisão, dei por mim a pensar em que momento é que nos perdemos de nós mesmos. O filme é bem simples: um dia numa lavadora de carros, acompanhando os empregados, o chefe e os clientes. Há uma prostituta, um ex-presidiário, um latino, um nativo americano, uma transsexual, um revolucionário negro e um universitário riquinho maoista. O patrão sai com a balconista às escondidas e queixa-se de ganhar pouco dinheiro. Enquanto o disco e o funk-soul passam na rádio, os empregados armam partidas uns aos outros e tentam animar as horas. Os pequenos dramas e comédias dessa gente passam à frente dos nossos olhos sem ironia, sem julgamento, num roteiro sem firulas escrito pelo — surpresa — Joel Schumacher. Por trás da sua aparência falsamente bobinha, "Car Wash" é um filme absolutamente real, feito por quem soube observar a vida e fazer comédia com isso. É melhor do que carregamentos inteiros de coisas que se produzem por aí até hoje.

THE WOMAN IN BLACK (1989)

Antes do filme de 2012 com Daniel Radcliffe, o romance de Susan Hill foi adaptado para um telefilme da ITV que, numa decisão histórica de programação, o transmitiu na noite do dia 24 de Dezembro, aterrorizando crianças e estragando o Natal das famílias do Reino Unido. Naturalmente, o orçamento foi menor do que o do seu irmão mais novo, e os efeitos especiais não são tão desenvolvidos, mas a austeridade fica-lhe bem: a história é enxuta, sem tempo para se distrair com acessórios, a construção da tensão é imaculada e diria mesmo que o paralelismo entre assombração e perda da sanidade é mais bem conseguido.

DELLAMORTE DELLAMORE (1994)

Este filme italiano, realizado por um colaborador de Dario Argento e com Rupert Everett no papel principal, adapta o romance do mesmo nome de Tiziano Sclavi, mas também se inspira livremente numa banda desenhada chamada "Dylan Dog", criada pelo mesmo Tiziano Sclavi e com um protagonista inspirado no próprio Rupert Everett. Começa parecendo uma comédia de terror à "The Evil Dead". Um pouco depois, parece que vamos afinal ver um "gothic horror" à Mario Bava... ou talvez um terror erótico à Jess Franco? Mas o erotismo dura pouco e retrocede para o que parece uma sátira política. Mais um pouco e estamos em plena "Night of the Living Dead", mas, no final, parece que o que vimos foi um thriller psicológico. Se isso vos faz pensar que talvez seja incoerente, desenganem-se. Sob a capa de série B "eurotrash", "Dellamorte Dellamore" é apenas um filme incrível.

SE TIL VENSTRE, DER ER EN SVENSKER (2003)

O mundo roda, as epidemias mudam e é fácil a gente esquecer-se como, em 2003, ser infetado com o HIV ainda parecia uma sentença de morte ou, pelo menos, de uma qualidade de vida muito inferior. Não que este filme Dogma faça disso uma tragédia à "Les Nuits Fauves", muito pelo contrário: é uma comédia romântica leve e humana, muito mais na linha de Lone Sherfig do que na de von Trier e Vinterberg. Seis anos depois de começar, o Dogma já não sobrevivia bem e levava a histórias, lugares e emoções que já pareciam vistas, mas o seu efeito "corretivo" no cinema dinamarquês e mundial era incontornável. O movimento esgotara-se, não porque morrera, mas porque fora absorvido.