THE DUKE OF BURGUNDY (2015)

Os filmes de Jean Rollin e Jess Franco poderiam ser categorizados como "sexploitation", apesar de eu preferir o termo "eurotica". De qualquer forma, foi com essa estética que Peter Strickland vestiu o seu filme de 2015. Digo "vestiu" porque, apesar de a referência ser óbvia no estilo e na temática, "The Duke of Burgundy" é uma história de amor que explora a humanidade das suas personagens em tudo o que ela tem de afetuoso, obsessivo e contraditório. Note-se, por exemplo, a cena em que Cynthia repete a cena de "roleplay" com cuidado para não falhar as suas deixas enquanto Evelyn, no outro quarto, lhe limpa as botas, mostrando a inversão dos papeis de dominadora e submissa. Strickland, que não incluiu personagens homens, usa este tipo de pormenores para construir um olhar que desmonta o género que referencia: mais do que um corpo feminino que passou de objeto a sujeito do desejo, trata-se aqui de performar a rotina dos afetos que está oculta e que impossibilita qualquer fantasia.

BANDE À PART (1964) e PIERROT LE FOU (1965)

Vi os dois na sequência, e percebi algo que nunca percebera. 

No final de BAP, o próprio Godard diz-nos que «um próximo filme vai revelar, em CinemaScope e Technicolor, as novas aventuras de Odile e Franz nos países quentes». Ora, PLF é em CinemaScope e Technicolor (na verdade, é em Techniscope e EastmanColor, mas não me estraguem o raciocínio) e acontece nas belíssimas e ensolaradas praias da Riviera. Então, uma pessoa vê isto e já pensa "tu queres ver que". 


Anna Karina interpreta Odile em BAP e Marianne em PLF. No início de PLF, há uma Odile, mas não a vemos: é a ama das filhas de Ferdinand, que a deixa ir ao cinema nessa noite e a vê ser substituída por Marianne. Seria a mesma Odile? Em arte, tudo é uma escolha. Talvez seja problemático não haver nenhum Franz em PLF: Ferdinand é interpretado por Jean-Paul Belmondo, não por Sami Frey. Porém, da mesma forma que Franz via Odille preferir Arthur, também Ferdinand vê Marianne escapar-lhe para outros amores, tal como Pierrot via Columbina fugir-lhe para Arlequim. 

Estão a entender aonde quero chegar?

Ferdinand/Pierrot fala-nos muito de duplos, de reflexos, do "William Wilson" de Poe. Marianne olha para a câmera entre as suas falas, talvez porque Karina espera indicações de Godard entre planos. Godard, então, é diretor, mas também marido, e o seu olhar replica tanto o de Ferdinand/Pierrot quanto o do espectador. A dado momento, Ferdinand/Pierrot vai ver um filme no cinema, no qual vê Jean Seberg virar-se para ele e apontar-lhe uma câmera. Jean Seberg, lembre-se, fora a coprotagonista de Belmondo em "À Bout de Souffle". O olhar devolvido para quem olha parece lembrar Ferdinand que ele foi Michel numa encarnação anterior ou lembra-o que ele ocupa, tal como Michel ocupara, um homem chamado Jean-Paul Belmondo? 

Arrisco a leitura lacaniana: o desejo e a angústia nascem do "regard" que nos mostra o abismo entre o real e o simbólico. Então, talvez Franz e Ferdinand/Pierrot se reflitam um no outro, e talvez Odile e Marianne se reflitam uma na outra, e talvez as personagens e os seus atores se reflitam uns nos outros, e talvez elas e os espectadores se reflitam uns nos outros. 

Não é só porque, em BAP, se diz que «Franz pensa se o mundo se transforma num sonho ou se o sonho se transforma no mundo» e, em "Pierrot", Ferdinand/Pierrot diz que «nós somos feitos de sonhos e os sonhos são feitos de nós». 

É também porque "Franz Ferdinand" é o nome da pessoa cuja morte inaugurou as guerras europeias do século XX, e a guerra é uma presença constante em PLF. 

É também porque Franz é um nome tão parecido com "France" e Ferdinand/Pierrot, a dada altura, nos diz ser "só um enorme ponto de interrogação que paira sobre o horizonte do Mediterrâneo". 

É também porque Ferdinand/Pierrot tem as cores vermelha, branca e azul a aparecerem repetidamente nas suas roupas e termina o filme com a cara pintada de azul ou porque ele, tal como a França da época, está perdido num mundo novo enquanto carrega a cultura do passado. 

É também porque Marianne é o nome da personificação da República francesa desde a Revolução de 1789 e, em BAP, um bêbedo anuncia que "les empires s'écroulent, les républiques s'effondrent et les imbéciles demeurent" ("os impérios desmoronam, as repúblicas colapsam e os imbecis permanecem").

Ou seja, estes dois filmes parecem ser o duplo ou o reflexo um do outro — e talvez o sejam também dos seus atores, dos seus espectadores, de toda a obra de Godard e, quem sabe, da relação entre o real e o Cinema.

BERBERIAN SOUND STUDIO (2012)

Este filme é um primor e confirma uma impressão que começava a ter sobre Peter Strickland. Vejo os filmes dele serem classificados como "thriller" ou "terror", mas eles não encaixam exatamente nesses géneros. Ou melhor, o que há de género neles serve apenas para que cumpram um outro propósito: abordar a expressividade (mesmo a material) do meio do Cinema enquanto tema. Também falei antes sobre a influência do "giallo" no diretor, mas corrijo-me: apesar de esse ser pensamento mais óbvio quando lhe sentimos o estilo, no "giallo" havia um crime a ser resolvido que dava a toda a história uma matiz de intriga policial. Em Strickland não há crime, e a inquietude e a tensão permanente que ele cria têm mais do terror italiano não "giallo" dos anos 60 e 70, como os filmes de terror gótico de Mario Bava ou mesmo "Suspiria" de Argento. Porém, também se pode dizer que em Strickland não há exatamente "sobrenatural", e é verdade. O que me parece é que o diretor substitui Demónio, fantasmas e quejandos pelo poder da imagem e do som e a forma como estes dialogam com o inconsciente, o sonho e as emoções das personagens.

MALCOLM X (1992)

Nunca consegui decidir se este épico é longo demais (principalmente na parte anterior à prisão) ou se ele só tem a duração necessária para garantir a sua monumentalidade. É uma súmula temática e estilística da primeira fase da obra de Spike Lee e faz a justiça de fixar Malcolm X como figura incontornável na história política dos EUA e do mundo. Há filmes que seriam importantes apenas por existirem. Este é um deles.

O processo de escrita de séries de Adam Price

Adam Price escreveu algumas ótimas séries, incluindo a magistral Borgen, por isso fiquei muito atento a esta palestra em que ele explica o seu processo de escrita. 

Resumindo, Price gosta de trabalhar com equipes pequenas: 2 a 3 roteiristas além dele enquanto roteirista-chefe/"showrunner". Cada roteirista escreve um roteiro (60-65 páginas) de cada vez. O processo que ele detalha é o seguinte:
  1. Toda a equipe discute o arco da temporada, definindo grandes ideias e momentos: 2 semanas.
  2. Toda a equipe faz uma storyline detalhada do ep. 1: 2 semanas
  3. Toda a equipe faz uma storyline detalhada do ep.2: 2 semanas.
  4. Cada roteirista faz um tratamento detalhado (20 a 30 páginas) do seu episódio: 1 semana.
  5. Os roteiristas recebem notas de Price sobre os tratamentos: 2-3 dias
  6. Cada roteirista escreve o 1º "draft" do seu episódio: 3 semanas.
  7. Os roteiristas recebem notas de Price sobre os 1ºs "drafts": 2-3 dias.
  8. Cada roteirista escreve o 2º "draft" do seu episódio: 2 semanas.
  9. Price escreve o 3º "draft" e discute-o com as equipes de direção e produção e com os atores principais: 1 semana.
  10. Price escreve os "drafts" 4 a 6: 2 semanas.
  11. Leitura com o elenco e equipe técnica.
  12. Price escreve o "shooting script": 2 dias.
Os passos 2 a 8 são repetidos pelos roteiristas até que eles terminem todos os seus textos, o que só me deixa pensando na loucura que deve ser para Price a partir do momento em que ele acumula os últimos "drafts" com a coordenação da equipe. Ainda assim, acho que nenhum roteirista vai olhar para este calendário e não sentir um pingo de inveja.

KUNG-FU MASTER (1988)

— Oi, Marcelo. Olha, este filme de 1988 é dificílimo de encontrar hoje em dia. Você não teria interesse em distribuí-lo? Foi dirigido pela Agnès Varda...
— Ah, a lendária diretora francesa com as raízes do cabelo à mostra? Interessante. É sobre artes marciais?
— Bem, é sobre uma mulher de 40 anos que está deprimida...
— Quem é a atriz?
— A Jane Birkin. Sabe? 
— A mãe da Charlotte Gainsbourg?
— Exato. Aliás, a Charlotte também entra no filme. Elas são mãe e filha, como na vida real.
— Que curioso. E o que acontece? Tem muita ação?
— Não tem muita ação, o que não significa que seja um filme parado... é construído com diálogos, com olhares...
— Bem francês, hein? Mas essa Jane Birkin, ela faz kung-fu, é isso?
— Não, ela só se apaixona por um amigo da filha, que passa a vida jogando videogame de kung-fu.
— O quê?! Mas, assim, apaixona-se que nem mãe, tipo, começa a tratar ele como filho, né?
— Não, não, ela se apaixona como uma mulher mesmo. Tem cena de beijo, fica subentendido que ela o inicia sexualmente...
— E que idade tem esse moleque?!
— 14 anos. Aliás, o filme já teve o título "Le Petit Amour". 
— E ela é presa no final?!
— Então, não, presa ela não é.
— E o rapaz? Fica traumatizado para sempre?
— Ele não fica nada traumatizado.
— E a Charlotte? Corta relações com a mãe?
— Então, não... uma das últimas cenas mostra elas conversando de boa... O que acha? Bom, né?
— ...
— É um filme muito bonito e sensível, profundamente humano... Marcelo? Tá tudo bem?
— ...
— Olha... acho que entendi. Obrigado pelo seu tempo, então... a gente ainda vai jogar tênis no final de semana?
— ...
— Certo... a gente se fala então. Obrigado...

KATALIN VARGA (2009)

Um dia, Peter Strickland recebeu 25 mil libras numa herança e, com elas, pagou o seu primeiro longa sobre uma mulher que atravessa os Cárpatos com o filho para se vingar dos homens que a estupraram. O filme é falado em romeno e em húngaro, e Strickland penou para encontrar produtores e distribuidores que lhe adiantassem dinheiro para finalizá-lo. Heroico em tudo.

A morte de Bruno Candé

Discutir o racismo no homicídio de Bruno Candé não é mera filosofia. Provando-se o ódio racial, a pena possível do seu assassino passa de 8-16 anos para 12-25. Há dias, o assassino tropeçou na cadela de Bruno. Eles discutiram. O assassino insultou-o e, no rol, não se esqueceu dos insultos racistas. Imagino que o tradicional "vai para a tua terra" tenha sido incluído, mais alguma menção à guerra colonial. Nos dias seguintes, o assassino ficou a pairar pela mesma avenida, à espera que Bruno passasse. Quando isso aconteceu, o assassino terá dito "vai para a sanzala" e disparou três tiros. Considerando que o assassino já tem 80 anos, não sei o que o juiz vai decidir. Porém, já apareceram os patos-bravos a dizer que não houve nada de racismo no caso. Bruno deixou três filhos. Expliquem-lhes a eles que o pai morreu só porque há pessoas que não gostam de cães.

IN FABRIC (2018)

Há muito que estou a adiar os filmes de Peter Strickland, e decidi começar pelo mais recente. É descrito como a história de um vestido mal-assombrado, não é tanto isso quanto um poderoso ensaio visual que recorre à imagética dos "giallo" do Dario Argento (o vermelho, o "pop", os corpos) para falar sobre a relação íntima e profunda da Moda e do consumismo com o desejo e o sonho. Inclui alguns "comic reliefs" pelo meio que, pensando agora, fazem parecer que o filme cria um distanciamento irônico de si mesmo, talvez salientando a sua própria característica de objeto de consumo. Ótimo filme para ver com amigos e discutir depois.

MANDY (2018)

Tenho ouvido falar de "Mandy" como filme de visual incrível, cheio de simbolismos e redentor de Nicolas Cage. Porém, não se verifica. Isto é uma simples história de vingança adornada com misticismo "new age" e interpretada por gente cabotina. Ver "Mandy" é como visitar a casa de um gótico que decora as paredes com mandalas. É David Lynch sem pensamento, Jeremy Saulnier com penduricalhos, irmãos Quay com miopia. Nem para "trash" tem graça.