Não somos nada

Quando percebeste que a vida é frágil? Para mim, foi quando o amigo do meu pai morreu. Ambos eram mais novos do que eu sou agora. O meu pai veio para casa, sentou-se no sofá e ficou em silêncio durante bastante tempo. Eu achava na época que falar é a melhor forma de não ficar triste, por isso pedia-lhe que falasse comigo. Ainda acho isso, pois resta-me algo de criança irritante - mas, pelo menos, agora eu sei que estava a ser uma criança irritante. O meu pai não falava; fazia às vezes um esforço para me sorrir, mas não falava. Depois de uma eternidade, disse "nós não somos nada". Saiu-lhe, como um suspiro. Pouco depois, levantou-se e voltou a falar, mas, nesse dia, ele percebeu que nós não somos nada e eu, que o escutei, também.

Corrida, chuva

Há duas semanas que não tinha vagar para correr à noite. Hoje finalmente consegui, mas por duas vezes tive de reduzir o passo e caminhar. Assim que voltei para casa, começou a chover. Talvez seja a forma de o mundo me dizer que, ainda que eu nunca seja um grande atleta, poderei às vezes ser um atleta sortudo.

A Previdência grega

O adolescente está aborrecido: por mais que tente, não dá para entender esse texto da escola sobre a tragédia grega.
Meio aborrecido, ele lê uma observação no fim da página: na tragédia grega, havia um coro que cantava.
Então, o adolescente pensa "como seria a música que tocava nessa bagaça?".
O adolescente vai ao Youtube, digita "música grega antiga" e, em poucos segundos, está escutando melodias que foram escritas nos primórdios da civilização ocidental.
De repente, o adolescente consegue entender o texto.
A música que achou na web lhe deu um contexto, coisa que faltava à minha geração e ainda mais às gerações que me precederam.
Entusiasmado e ébrio do seu privilégio, o adolescente pensa "e se eu deixar esses velhos se ferrarem mesmo?".
Então, o adolescente fica fazendo campanha pela capitalização da Previdência sem perceber que, se eu e os meus camaradas ficarmos sem aposentadoria, vamos cortar-lhe a internet e ele vai ter que se virar para almoçar sem Tastemade e sem TripAdvisor.
Obrigado.

Karen Finley

For I already have an abortion on my conscience from when a member of my own family raped me. Don't worry, I won't mention your name. Don't worry, I won't mention your name. And the reason why my father committed suicide is that he no longer found me attractive. 
And by now you can tell that I prefer talking about the fear of living as opposed to the fear of dying.
The Constant State of Desire (1986).

Depois do mergulho

De repente, volto. Penso em Nietzsche, mas, principalmente, penso em Deleuze, na diferença e na repetição e nesta sensação de já ter visto o suficiente. Talvez seja coisa da idade, mas as distrações são cada vez mais sobrevivência. Onde estaria sem a minha dose diária de alienação, de sonho? Depois de o conhecermos melhor, o mundo cansa cada vez mais.

Sobre uma certa tendência da cinefilia

Ultimamente, parece-me que acontece uma atitude de recusa em vários cinéfilos que não combina muito com a abertura e disponibilidade que considero serem qualidades dessa condição.

Digo "condição", sim, porque quem ama imagens em movimento ama-as de forma inexplicável, com o fascínio de uma criança que vê um mágico fazendo truques no circo, e sabe muito bem o que é estar num bar cheio de gente e, de repente, descobrir-se em transe a olhar qualquer coisa que passa numa televisão ligada.

Os contornos dessa recusa delineiam-se quando uma pessoa não vê A Serbian Film, não porque considera seu conteúdo mais impressionante do que está disposta a aguentar, mas porque acha que ele é apologia de violência pela simples razão de a mostrar.

Ou quando a pessoa não vê Woody Allen, não porque acha que seu humor é chato, mas porque considera que vê-lo é um apoio ao diretor contra os seus acusadores ou que isso a inscreve numa narrativa em que ela não quer ser inscrita (tipo, "vejo filmes para me divertir, não para entrar numa torcida").

Eu argumento que, a menos que a pessoa sofra de uma falta de personalidade que a torna absurdamente influenciável, isso é uma atitude sem sentido.

Reparem: não quero dizer que qualquer pessoa é obrigada a ver o que não quer ou que tem que assistir qualquer coisa.

Eu quero dizer que o cinéfilo não é qualquer pessoa.

Acredito que o cinéfilo acredita no cinema como catarse e, por isso, também vê filmes para se colocar fora de si mesmo, ir psicologicamente aonde normalmente não vai e assim expandir os seus sentimentos e ideias.

Ou seja, eu defendo que uma atitude fundamental do cinéfilo é se aventurar a ver filmes que o fazem sentir-se perdido, indignado, enojado ou com medo para que assim possa pensar melhor o mundo e as pessoas com quem o compartilha.

Ver Henry - Retrato de um Assassino faz-nos pensar sobre violência, mas não é em si mesmo um ato de apoio à violência.

Ver A Centopeia Humana faz-nos pensar sobre psicose, mas em si não nos torna psicóticos ou apologistas dos atos cometidos por quem o é.

Ver O Rei da Morte faz-nos pensar em necrofilia, mas não é sinônimo de considerar a necrofilia recomendável.

Ver Charlotte for Ever faz-nos pensar em incesto, mas não implica uma nossa tolerância com o incesto.

Não defendo um espectador passivo. Ser espectador é um ato extremamente político.

Porém, negar é temer o que se nega, por um lado, e limitar a sua própria capacidade de pensamento crítico. O cinéfilo assiste para pensar, entender e criticar e não tem medo de o fazer.

Quem diz "imagina o absurdo, tentar entender os sentimentos de um pedófilo!" nunca verá a Lolita de Kubrick nem lerá a Lolita de Nabokov e não conseguirá pensar criticamente sobre a sujíssima complexidade do crime da pedofilia.

Quem diz "imagina o absurdo, tentar entender a visão de Hitler" nunca verá Leni Riefenstahl e não conseguirá entender o lado estético do nazismo, o porquê de ele ser tão odioso nem a tentação que ele suscitou e suscita ainda.

Em suma: posso exigir desculpas a alguém por tudo o que essa pessoa fez, mas nunca lhas exigirei pelos filmes que ela viu.

Gabin de 36 a 39

Já aqui falei de Che Strano Chiamarsi Federico, o último, desequilibrado e ternurento filme de Ettore Scola, que homenageia o seu amigo de toda a vida, Federico Fellini. Há nele uma cena muito engraçada, em que a mãe de Marcello Mastroianni interpela Scola e, exaltada, lhe pergunta por que o seu querido filho fica tão feio nos seus filmes enquanto o colega Fellini sempre o deixa tão bonito.

A mãe de Jean Gabin poderia ter perguntado algo parecido a Jean Renoir e a Marcel Carné, que construíram o ator na segunda metade dos anos 1930. Em Renoir, Gabin é simpático e atraente. O espectador cria empatia com ele mesmo que esteja a interpretar um psicótico com tendências homicidas, como em La Bête humaine, e as personagens que ele interpreta parecem querer estar acompanhadas ou, pelo menos, parecem estar rodeadas de pessoas que querem a sua companhia.


Nos filmes de Marcel Carné, Gabin torna-se obscuro e lunar, interpretando personagens doloridas que querem ficar sozinhas (um desertor em Le Quai des Brumes, um homicida entrincheirado em Le Jour se lève) ou, no máximo, com uma companhia feminina que distraia dos tormentos. Ele é acossado por dilemas de redenção, que nunca lhe chegará. As histórias de Carné são descidas fatais por escadarias de pathos: nelas, os olhos claros de Gabin enchem-se de sombras.


Sabendo que não se trata de escolher um ou o outro, eu sinto Renoir mais realista do que poético e Carné mais poético do que realista, o que poderá ter a ver com a força de Jacques Prévert no texto. O estilo de Renoir serve as personagens, enquanto que as personagens de Carné servem o estilo do diretor. Carné paira sobre os seus mundos; Renoir mergulha a fundo neles. 

Num ou no outro, Gabin é sempre uma presença na tela que nos hipnotiza e fascina - mas não é o mesmo.

O zoológico

Fui a um zoológico pela primeira vez na minha vida e vi duas coisas que provam definitivamente que somos primos dos outros símios.

Uma foi o orangotango esticando o braço e imitando os visitantes que tiram selfies.

A outra foi o chimpanzé que deliberadamente cagou na mão e, com muito gosto, comeu a própria merda.

Já vi humanos fazendo as duas coisas, muitas vezes ao mesmo tempo.

Um tirano

Um tirano institucionaliza a estupidez, mas ele é o primeiro súdito do seu próprio sistema e o primeiro a ser instalado dentro dele. Escravos são sempre comandados por outro escravo. 
Gilles Deleuze, Diferença e Repetição.

Sono, corrida e mimese

Cheguei a casa e, depois de falar com a C. no telefone, encostei-me no sofá e dormi quase até às 22h. É estranho: não só ontem dormi mais do que o normal como hoje também não tive um dia particularmente esgotante. Agora já é bem tarde e não tenho sono. Gostaria de dormir, mas a minha vida é tão excitante e pouco monótona que não dá.
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Por causa do referido imbróglio, fui correr uma hora mais tarde do que o costume. Comecei há pouco mais de um mês para ajudar com a ansiedade e o risco de aumento de peso durante a abstinência. Corro no asfalto do Minhocão e o meu objetivo sempre foi mais melhorar a capacidade aeróbia do que arrebentar os joelhos, mas estou bem contente. Comecei fazendo o percurso de 3,35km em 28 minutos, com muitas paradas para respirar - a primeira logo depois de uns 100 metros. Depois de um mês, já fazia o percurso todo sem parar e, na quinta feira, consegui fazer em menos de 25 minutos. Entretanto, já vou em 23min30, ou seja, cinco minutos a menos do que no início. Um dia escrevo mais sobre isso.
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Entre outras coisas, tenho andado a estudar Aristóteles no mestrado. Este vídeo não mostrará uma ação elevada e completa, mas raios me partam se ele não é capaz de inspirar mil ensaios sobre a mimosa mimese nos dias de hoje.