Sobre uma certa tendência da cinefilia

Ultimamente, parece-me que acontece uma atitude de recusa em vários cinéfilos que não combina muito com a abertura e disponibilidade que considero serem qualidades dessa condição.

Digo "condição", sim, porque quem ama imagens em movimento ama-as de forma inexplicável, com o fascínio de uma criança que vê um mágico fazendo truques no circo, e sabe muito bem o que é estar num bar cheio de gente e, de repente, descobrir-se em transe a olhar qualquer coisa que passa numa televisão ligada.

Os contornos dessa recusa delineiam-se quando uma pessoa não vê A Serbian Film, não porque considera seu conteúdo mais impressionante do que está disposta a aguentar, mas porque acha que ele é apologia de violência pela simples razão de a mostrar.

Ou quando a pessoa não vê Woody Allen, não porque acha que seu humor é chato, mas porque considera que vê-lo é um apoio ao diretor contra os seus acusadores ou que isso a inscreve numa narrativa em que ela não quer ser inscrita (tipo, "vejo filmes para me divertir, não para entrar numa torcida").

Eu argumento que, a menos que a pessoa sofra de uma falta de personalidade que a torna absurdamente influenciável, isso é uma atitude sem sentido.

Reparem: não quero dizer que qualquer pessoa é obrigada a ver o que não quer ou que tem que assistir qualquer coisa.

Eu quero dizer que o cinéfilo não é qualquer pessoa.

Acredito que o cinéfilo acredita no cinema como catarse e, por isso, também vê filmes para se colocar fora de si mesmo, ir psicologicamente aonde normalmente não vai e assim expandir os seus sentimentos e ideias.

Ou seja, eu defendo que uma atitude fundamental do cinéfilo é se aventurar a ver filmes que o fazem sentir-se perdido, indignado, enojado ou com medo para que assim possa pensar melhor o mundo e as pessoas com quem o compartilha.

Ver Henry - Retrato de um Assassino faz-nos pensar sobre violência, mas não é em si mesmo um ato de apoio à violência.

Ver A Centopeia Humana faz-nos pensar sobre psicose, mas em si não nos torna psicóticos ou apologistas dos atos cometidos por quem o é.

Ver O Rei da Morte faz-nos pensar em necrofilia, mas não é sinônimo de considerar a necrofilia recomendável.

Ver Charlotte for Ever faz-nos pensar em incesto, mas não implica uma nossa tolerância com o incesto.

Não defendo um espectador passivo. Ser espectador é um ato extremamente político.

Porém, negar é temer o que se nega, por um lado, e limitar a sua própria capacidade de pensamento crítico. O cinéfilo assiste para pensar, entender e criticar e não tem medo de o fazer.

Quem diz "imagina o absurdo, tentar entender os sentimentos de um pedófilo!" nunca verá a Lolita de Kubrick nem lerá a Lolita de Nabokov e não conseguirá pensar criticamente sobre a sujíssima complexidade do crime da pedofilia.

Quem diz "imagina o absurdo, tentar entender a visão de Hitler" nunca verá Leni Riefenstahl e não conseguirá entender o lado estético do nazismo, o porquê de ele ser tão odioso nem a tentação que ele suscitou e suscita ainda.

Em suma: posso exigir desculpas a alguém por tudo o que essa pessoa fez, mas nunca lhas exigirei pelos filmes que ela viu.

Gabin de 36 a 39

Já aqui falei de Che Strano Chiamarsi Federico, o último, desequilibrado e ternurento filme de Ettore Scola, que homenageia o seu amigo de toda a vida, Federico Fellini. Há nele uma cena muito engraçada, em que a mãe de Marcello Mastroianni interpela Scola e, exaltada, lhe pergunta por que o seu querido filho fica tão feio nos seus filmes enquanto o colega Fellini sempre o deixa tão bonito.

A mãe de Jean Gabin poderia ter perguntado algo parecido a Jean Renoir e a Marcel Carné, que construíram o ator na segunda metade dos anos 1930. Em Renoir, Gabin é simpático e atraente. O espectador cria empatia com ele mesmo que esteja a interpretar um psicótico com tendências homicidas, como em La Bête humaine, e as personagens que ele interpreta parecem querer estar acompanhadas ou, pelo menos, parecem estar rodeadas de pessoas que querem a sua companhia.


Nos filmes de Marcel Carné, Gabin torna-se obscuro e lunar, interpretando personagens doloridas que querem ficar sozinhas (um desertor em Le Quai des Brumes, um homicida entrincheirado em Le Jour se lève) ou, no máximo, com uma companhia feminina que distraia dos tormentos. Ele é acossado por dilemas de redenção, que nunca lhe chegará. As histórias de Carné são descidas fatais por escadarias de pathos: nelas, os olhos claros de Gabin enchem-se de sombras.


Sabendo que não se trata de escolher um ou o outro, eu sinto Renoir mais realista do que poético e Carné mais poético do que realista, o que poderá ter a ver com a força de Jacques Prévert no texto. O estilo de Renoir serve as personagens, enquanto que as personagens de Carné servem o estilo do diretor. Carné paira sobre os seus mundos; Renoir mergulha a fundo neles. 

Num ou no outro, Gabin é sempre uma presença na tela que nos hipnotiza e fascina - mas não é o mesmo.

O zoológico

Fui a um zoológico pela primeira vez na minha vida e vi duas coisas que provam definitivamente que somos primos dos outros símios.

Uma foi o orangotango esticando o braço e imitando os visitantes que tiram selfies.

A outra foi o chimpanzé que deliberadamente cagou na mão e, com muito gosto, comeu a própria merda.

Já vi humanos fazendo as duas coisas, muitas vezes ao mesmo tempo.

Um tirano

Um tirano institucionaliza a estupidez, mas ele é o primeiro súdito do seu próprio sistema e o primeiro a ser instalado dentro dele. Escravos são sempre comandados por outro escravo. 
Gilles Deleuze, Diferença e Repetição.

Sono, corrida e mimese

Cheguei a casa e, depois de falar com a C. no telefone, encostei-me no sofá e dormi quase até às 22h. É estranho: não só ontem dormi mais do que o normal como hoje também não tive um dia particularmente esgotante. Agora já é bem tarde e não tenho sono. Gostaria de dormir, mas a minha vida é tão excitante e pouco monótona que não dá.
* * *

Por causa do referido imbróglio, fui correr uma hora mais tarde do que o costume. Comecei há pouco mais de um mês para ajudar com a ansiedade e o risco de aumento de peso durante a abstinência. Corro no asfalto do Minhocão e o meu objetivo sempre foi mais melhorar a capacidade aeróbia do que arrebentar os joelhos, mas estou bem contente. Comecei fazendo o percurso de 3,35km em 28 minutos, com muitas paradas para respirar - a primeira logo depois de uns 100 metros. Depois de um mês, já fazia o percurso todo sem parar e, na quinta feira, consegui fazer em menos de 25 minutos. Entretanto, já vou em 23min30, ou seja, cinco minutos a menos do que no início. Um dia escrevo mais sobre isso.
* * *

Entre outras coisas, tenho andado a estudar Aristóteles no mestrado. Este vídeo não mostrará uma ação elevada e completa, mas raios me partam se ele não é capaz de inspirar mil ensaios sobre a mimosa mimese nos dias de hoje.

11 coisas sobre Us

Talvez contenha spoilers.

1. É um prodígio de imagem e fábula: é um filme sobre cinema que é preciso ver no cinema.

2. Em Get Out, Jordan Peele falava sobre classe, mas principalmente falava sobre cor de pele e História.

3. Ele continua a falar sobre cor de pele, mas fala principalmente sobre classe e História.

4. A duplicação é de personagens, mas também é de tudo o resto: a aranha.

5. "I Got 5 on It" é sobre divisão.

6. Jeremias 11:11: "Por isso, assim diz o Senhor: "Trarei sobre eles uma desgraça da qual não poderão escapar. Ainda que venham a clamar a mim, eu não os ouvirei".

7. A cena da explicação: eu dispensaria, mas não atrapalha.

8. O twist final não está a mais. É absolutamente necessário para mostrar que o filme é mais sobre oportunidade do que sobre conformismo. Também é necessário para nos deixar a pensar se torcemos pelos heróis certos.

9. Sem o twist final, o filme seria tão conformista e fascizóide quanto Eden Lake.

10. Os atores. Lupita Nyong'o.

11. Poderia vê-lo de novo hoje mesmo, e veria um filme completamente diferente.

Dogma, Sony, frio

Lovers é um filme Dogma de 1999 (Dogme #5).

Foi gravado em miniDV, com uma Sony DCR-TRV900. Ou seja, esta:



Foi o primeiro filme Dogma não dirigido por um dinamarquês.

Jean-Marc Barr, que atua muito para o Lars von Trier, aprendeu algumas coisas com ele. Infelizmente, aguentar o segundo ato sem enrolar não foi uma delas.

Porém, a sua câmera capta o frio francês com uma veracidade que eu não vi nem nos irmãos Dardenne.




Talvez não devamos comemorar a prisão de Temer

Ontem, 20 de Março, foi notícia que Bolsonaro perdeu 15% nos índices de popularidade.
Nos últimos dias, soube-se também que Moro e Rodrigo Maia estão irritadinhos um com o outro.
O ministro da Justiça mandou mensagens de Whatsapp a Maia durante a madrugada, cobrando a aprovação do pacote anticrime.
Maia, que aparentemente não gosta de ser acordado de madrugada, disse que Moro estava "confundindo as bolas" e que ele era um "funcionário do Bolsonaro”.

Hoje, 21 de Março, é aniversário de Jair Bolsonaro.

Na Lava Jato carioca, o juiz Marcelo Bretas (amigo de Moro, amigo de Witzel, alinhado com o governo) mandou prender o ex-presidente Temer.
A popularidade do presidente e do governo provavelmente deixará de cair.

Prendeu-se também Moreira Franco, antigo ministro de Temer.
Moreira Franco é sogro de Rodrigo Maia.
Há quem fale em vingança.
O pacote anticrime provavelmente não demorará tanto a ir a Plenário.

O mito de nós todos.

Revisitando a Poética
de Aristóteles,
relembro que

uma das partes
da tragédia
é o mythos,
ou fábula,
ou enredo.

Dito de outro modo,

é o mito
que confabula
e nos enreda

e por fim
se encerra
numa tragédia.

Causa
piedade
e temor

mas não
creio muito
nessa catarse.

Toda a verdade sobre Michael Jackson


Leaving Neverland lembrou-me várias vezes uma frase em Spotlight:
If it takes a village to raise a child, it takes a village to abuse one.
Porém, também me lembrou o Dave Chappelle:
Every time there’s wars going out of control, or the economy is bad or something is wrong with the world at large it’s always these moments in history that Michael Jackson will coincidentally jerk off a kid.
A comédia de Chappelle acaba perdendo um pouco da graça depois de ver o documentário, mas o seu argumento continua válido. Porquê agora? Talvez porque agora é melhor do que nunca. Uma coisa não invalida a outra. Essa é uma lição que fica.

É possível que Jackson tenha abusado, é possível que quem o acusou quisesse dinheiro, é possível que ele tivesse a mente de uma criança, é possível que ele não tenha tido infância, é possível que ele não visse maldade naquilo que fazia. Uma coisa não invalida a outra.

As histórias detalhadas destes dois homens fazem-nos cruzar o limite das intimidades do abuso. Por um lado, não queremos entrar nesse mundo: sentimos que há coisas que não deveríamos saber. Ao mesmo tempo, assumindo que ouvi-los faz parte do seu processo de cura, nós, espectadores, tomamos esse encargo como uma expiação e, por isso, aceitamos que o documentário não procure ouvir  a outra parte.

Há coincidências nas suas histórias que parecem satisfazer a nossa inquietante vontade de tornar definitivo o nosso juízo. Outros detalhes parecem contraditórios. Não importa: nós queremos escutar. Porquê?

Leaving Neverland não é desconfortável de assistir apenas porque estampa em Jackson o carimbo de abusador, mas também porque mostra que todas estas pessoas foram culpadas de alguma coisa.

Pais cegos pela fama deixaram que os seus filhos fizessem festas de pijama com um homem de 30 anos. As vítimas defenderam Jackson em tribunal e mantiveram relacionamentos pessoais com ele até à idade adulta. Quem trabalhava para o artista, presumivelmente, não disse coisas que deveria dizer.

Não é tanto a figura de Jackson que é monstruosa quanto toda a situação, à qual - ironia das ironias - este filme não deixa de pertencer enquanto possível e marcante epílogo.

Toda a gente colaborou para que, numa peça com atores cegos pela luz da fama, todas as inocências acabassem. E nós assistimos Leaving Neverland porque também fomos culpados de algo enquanto espectadores de uma fábula com feridas reais, de um eclipse da ilusão que se tornou real e ilusão de novo.

Assistir Leaving Neverland é o final de uma história também nossa e a nossa penitência por permitirmos que, ao consumi-lo como entretenimento, nos tenhamos tornado peças do profundo e terrível grotesco do mundo.