O mito de nós todos.

Revisitando a Poética
de Aristóteles,
relembro que

uma das partes
da tragédia
é o mythos,
ou fábula,
ou enredo.

Dito de outro modo,

é o mito
que confabula
e nos enreda

e por fim
se encerra
numa tragédia.

Causa
piedade
e temor

mas não
creio muito
nessa catarse.

Toda a verdade sobre Michael Jackson


Leaving Neverland lembrou-me várias vezes uma frase em Spotlight:
If it takes a village to raise a child, it takes a village to abuse one.
Porém, também me lembrou o Dave Chappelle:
Every time there’s wars going out of control, or the economy is bad or something is wrong with the world at large it’s always these moments in history that Michael Jackson will coincidentally jerk off a kid.
A comédia de Chappelle acaba perdendo um pouco da graça depois de ver o documentário, mas o seu argumento continua válido. Porquê agora? Talvez porque agora é melhor do que nunca. Uma coisa não invalida a outra. Essa é uma lição que fica.

É possível que Jackson tenha abusado, é possível que quem o acusou quisesse dinheiro, é possível que ele tivesse a mente de uma criança, é possível que ele não tenha tido infância, é possível que ele não visse maldade naquilo que fazia. Uma coisa não invalida a outra.

As histórias detalhadas destes dois homens fazem-nos cruzar o limite das intimidades do abuso. Por um lado, não queremos entrar nesse mundo: sentimos que há coisas que não deveríamos saber. Ao mesmo tempo, assumindo que ouvi-los faz parte do seu processo de cura, nós, espectadores, tomamos esse encargo como uma expiação e, por isso, aceitamos que o documentário não procure ouvir  a outra parte.

Há coincidências nas suas histórias que parecem satisfazer a nossa inquietante vontade de tornar definitivo o nosso juízo. Outros detalhes parecem contraditórios. Não importa: nós queremos escutar. Porquê?

Leaving Neverland não é desconfortável de assistir apenas porque estampa em Jackson o carimbo de abusador, mas também porque mostra que todas estas pessoas foram culpadas de alguma coisa.

Pais cegos pela fama deixaram que os seus filhos fizessem festas de pijama com um homem de 30 anos. As vítimas defenderam Jackson em tribunal e mantiveram relacionamentos pessoais com ele até à idade adulta. Quem trabalhava para o artista, presumivelmente, não disse coisas que deveria dizer.

Não é tanto a figura de Jackson que é monstruosa quanto toda a situação, à qual - ironia das ironias - este filme não deixa de pertencer enquanto possível e marcante epílogo.

Toda a gente colaborou para que, numa peça com atores cegos pela luz da fama, todas as inocências acabassem. E nós assistimos Leaving Neverland porque também fomos culpados de algo enquanto espectadores de uma fábula com feridas reais, de um eclipse da ilusão que se tornou real e ilusão de novo.

Assistir Leaving Neverland é o final de uma história também nossa e a nossa penitência por permitirmos que, ao consumi-lo como entretenimento, nos tenhamos tornado peças do profundo e terrível grotesco do mundo. 

Antonin Artaud

Quando tudo nos incita a dormir, olhando com olhos fixos e conscientes, é duro acordarmo-nos e olharmos como num sonho, com olhos que não sabem mais para que é que servem, e cujo olhar está virado para dentro.
O Teatro e o Seu Duplo (1938).

Johnny

Estava vendo um filme com um homem chamado Johnny que sofre um acidente e entra em coma. A namorada chorosa vem visitá-lo e diz "Você vai ficar bom, Johnny! Eu sei que você vai ficar bom!".

Ou seja, ela queria que Johnny be good.

Pé no chão

O potencial criativo do porsche-alapata é bem conhecido. Kant bolou o imperativo categórico enquanto caminhava. Thoreau refletiu sobre a desobediência civil enquanto dava os seus passeios. E, agora, ouso dizer que chegou a minha vez. Hoje mesmo, enquanto corria, eu me lembrei que sei de cor as falas do primeiro comercial de teleshop em Portugal. Era um diálogo entre um locutor em off e Suzanne Somers em on e era assim:
- Que pernas! Lindas!
- Obrigada.
- Qual é o segredo?
(A câmera sobe das pernas para o rosto de Suzanne)
- Eu costumava fazer ginástica até que descobri o Thighmaster!

Obrigado!

Sinestesias

Olha, cara,

ele não toca
porque não tem som.

e eu sei que isso não tá

cheirando nada bem,
mas encaro

como uma prova.

Parar (9)

Permito-me uma indulgência por dia.Às vezes, quando saio, uma ou outra a mais. Não mais do que isso. Continua-me na mente uma certeza íntima. Sei-a algo ridícula, mas é sincera: não quero chegar aos 40 com vontade de ter um palito em fogo entre os dedos.

Noite

Dois homens, uma mulher, por baixo do Minhocão. Ela era magra. Trazia uma garrafa de cerveja na mão, mas não bebia. Eles eram gordos. Um deles tinha vestida uma camiseta da Vai-Vai. Cantavam, mas tristes.A canção acabou e não os ouvi dizerem mais nada.

A estranheza do presidente

Acho esta história do José de Abreu presidente divertida, ao mesmo tempo que algo nela me deixa desconfortável. Na Folha de hoje, Bruno Boghossian exprime bem essa sensação de "andamos a brincar com coisas sérias". Por outro lado, são as coisas mais deliciosas com que se brincar.

George Steiner

Nenhuma língua divide o tempo ou o espaço exactamente da mesma maneira que outra língua faz (tenhamos em consideração os tempos dos verbos hebraicos, se assim lhes podemos chamar); nenhuma língua tem tabus idênticos ao de qualquer outra (daí o profundo donjuanismo do acto de fazer amor em línguas diferentes; nenhuma língua sonha exactamente como outra qualquer.
De "O que é a Literatura Comparada?", in Paixão Intacta

Parar (8)

Para parar, o mais difícil é repetir as situações em que não se parava.
Ver um filme. Concluir uma tarefa no trabalho. Fazer amor. Esperar por alguém na rua. Tomar um drinque.
À decisão de não o fazer o corpo e a mente perguntam "Porque não? E, se não, fazer o quê?".
É preciso recusar, porque, na segunda recusa, eles já não perguntam tanto. 

Parar (7)

Já estou na terceira semana (ou quarta?). 
Um por dia apenas, depois de jantar.
Há quem diga que, por causa disso, eu não parei verdadeiramente.
Talvez tenham razão. Porém, também não vejo a diferença entre transitar assim ou com um adesivo. O problema é inspirar o fumo?
Só um dia de São Paulo já deve dar tóxicos equivalentes.
Não me chateiem.
As fissuras impossíveis já passaram, os períodos de mau humor também.
Não piorem as coisas.
Continuo a correr, pelo menos três vezes por semana.
O fôlego melhora todos os dias. E inventei um momento para escutar rádio, coisa de que já tinha saudade.
Não pareço diminuir de peso, mas também não tenho aumentado. Bom.
Não como bobagens, nem estou com fomes absurdas e súbitas.
Só deixo na minha mesa de trabalho uns frutos secos (lascas de coco, amêndoa defumada).
Chicletes também, mas nada com açúcar.
A primeira semana realmente foi dura, mas essa não tanto.

Parar (6)

Dormi pouco na noite de domingo e estava com sono ontem durante o dia. Consumir ajudava-me a ficar acordado, como disse na história em que me perdi em Londres. Foi-se essa faculdade, mas não me importo: confesso que, nestas últimas noites, tenho ido dormir mais cedo e tido sonos bem mais proveitosos. O aumento de sensibilidade na boca, essa preocupa-me, até porque antes de começar o consumo regular, era muito incomodado por aftas dolorosas que não conseguiram sobreviver à defumação e enrijecimento dos tecidos. Veremos. Ontem, pelo início da tarde em frente, voltou a fissura que tive no sábado (e que quase me fez querer trucidar um vendedor de tapetes quando me disse que teria que descer até ao stock para coletar o item que comprei). Estava no trabalho e era como se o próprio ato de existir, como se todo o mundo à minha volta, fosse de uma chatice insuportável. É uma sensação difícil de explicar porque ela também me confunde. Quer-se que o mundo desapareça, mas também se quer desaparecer do mundo. 

À noite, fui correr. Não corri muito, mas hoje corri de novo e mais. Estou portanto a deixar um vício e a adotar a corrida, e não é a primeira vez que faço nenhuma das duas. Mas hoje já passei melhor de ansiedade: masquei menos chicletes, demorei para mexer o pé por baixo da mesa. Enfim, vai-se andando.

Parar (5)

Ontem à noite, comi uma fatia de presunto. Não é algo que costume comer, mas o meu jantar foi algo reaquecido no micro-ondas e dei essa dentada descomprometida enquanto o prato rodava na luz. Não o esperava, mas senti intensamente o salgado e o azedume ligeiro de algo que já está fora do ponto ideal. Sabia que parar traz o paladar de volta, mas bem que poderia ter tido essa sensação com algo melhor do que presunto. Enfim.

O meu apetite não tem aumentado. Paro no meio da tarde para um iogurte e uma fruta, e é isso. Carboidratos, não vou por esse caminho: parando ou não, sou bem suscetível a inchamentos. De qualquer forma, aproveitando a melhoria do fôlego, ontem fui correr no minhocão. Os ténis de corrida que já deveriam ter em volta de 10 anos deram os seus estertores finais - ou melhor, talvez os tenham dado já há algum tempo e eu guardei cadáveres como se fossem vivos - e foram-se desintegrando pelo caminho, e dois terços do caminho foram andando, não correndo, mas fui, e acho que isso já é alguma coisa.

Parar (4)

É difícil explicar  o porquê do vício para quem nunca o teve. Ao longo da minha vida, vi duas explicações que me satisfizeram. Uma foi em This Must Be The Place, de Paolo Sorrentino, quando uma mulher que chora em silêncio pelo filho desaparecido diz "You never took up smoking because you remain a child. Children are the only ones that never get the urge to smoke".

Há uma verdade nisto. O vício mata-nos um pouco de cada vez que o praticamos, não no sentido do extermínio de saúde, mas da mais pura sensação imediata. Uma névoa escura invade-nos e a agitação interna é silenciada, aplacada. De cada vez, nós deixamos de ser um pouco nós e podemos descansar de nós mesmos. É por isso que as campanhas de sensibilização são ineficazes: a morte não assusta, porque o vício implica estarmos permanentemente num malabarismo com ela. Ela está sempre presente, e essa consciência do nosso fim também faz parte da condição de ser adulto.

A outra explicação foi de David Sedaris em Letting Go. "as if he’d been allotted a certain number of cigarettes, three hundred thousand, say, delivered at the time of his birth. If he’d started a year later or smoked more slowly, he might still be at it, but, as it stood, he had worked his way to the last one, and then moved on with his life".Eu adicionaria que talvez o fim do nosso período de vício não seja ditado pelo número de doses tomadas, mas pelo total de tempo. O meu tempo com isto, para isto, acabou, penso eu.

Parar (3)

Dois dias já se foram. Ontem à noite senti a mesma aflição de quando se tem um pedaço de carne enfiado num dente sem conseguir tirar. Recorri ao mesmo expediente a que recorria adolescente, aflito com os exames finais do Secundário: afundar o rosto numa almofada e gritar até não conseguir mais. Deixar que a voz solta canse o corpo. Funcionou. Porém, estava também a acabar um trabalho do mestrado. Muita coisa na cabeça. De repente, mexendo nos livros da estante, encontro um meio maço perdido da C. Sem pensar, tiro um, ponho na boca, acendo. Apenas um, e apenas um foi mesmo. Só um dia e um único cigarro lightíssimo já me deixou de cabeça tonta e meio enjoado. Não senti a tentação de repetir, o que me surpreendeu e agradou. Até dormir, não senti mais nada. Hoje, no trabalho, o dia correu tranquilo, muito mais do que ontem. O mau humor passou, mas a desconcentração permanece um pouco. Pela noite, a C. aqui, ela não quis fumar para não me tentar, mas dividimos um depois de jantar e, uau, senti um sabor mau, desagradável. Continuo com os chicletes (comprei uma caixa para o trabalho, outra para ficar em casa) e no trabalho ainda tenho lascas de coco secas, para entreter a boca com o crocante sem ingerir calorias desnecessárias.

Parar (2)

Passaram umas 12 horas. Daqui a pouco vou almoçar. Sinto uma agitação no corpo, como algo que está prestes a cumprir-se. A concentração continua difícil, mas a introspeção resolve. Sem tentações para desistir: a curiosidade por experimentar os efeitos da ressaca é maior ainda. Disse aos meus colegas que parei e que não se surpreendam se eu os mandar a todos tomar no cu. Eles riram, eu também.

O caminho de bicicleta para o trabalho foi ligeiramente mais fácil. Um certo limite na respiração ao pedalar, não o senti. Também não senti a fome enorme que sentia pelo meio da manhã quando parei no ano passado, mas conto comprar algumas coisas no supermercado só para guardar aqui na geladeira do trabalho caso me dê a fome. Fruta, umas bolachas, nada de muito calórico: não vale a pena facilitar o aumento de peso também. Porém, ontem comprei uma caixa de chicletes, que tenho aqui em cima da mesa, e a moça da padaria perguntou-me se não ia querer o que sempre comprava, e eu sorri quando lhe disse que não.

É preciso imaginar um filão de veneno, principalmente se surgir vontade. O objetivo é aguentar até sexta-feira e zerar o corpo. Depois disso, é outra coisa, é manutenção.

Parar (1)

Foi há umas duas horas, mais ou menos, que acabou. Não quero comprar mais. Não sinto problemas físicos, mas estou um pouco cansado de estar dependente de uma substância. Já tentei parar antes; foi há um ano ou dois? Aguentei-me durante um mês, o semedão reduzido a uma vez por dia. Percebi que era possível e também que comprar é a fronteira do falhanço, muito mais do que pedir um ocasionalmente. Diminuir não funciona, isso eu já sabia: sempre que tentei, algo acontece, algum imprevisto e, de repente, lá regresso à mesma quantidade. Então, parei. É isto parar? Parece mentira, mas tenho os Morphine a tocar na janela ao lado. Sinto-me nervoso, a boca seca, e o chá gelado não parece resolver. Tenho um trabalho do mestrado por acabar, mas é como se tivesse tomado uma injeção de Maluquinol e não consigo parar de olhar para as coisas à minha volta, uma após outra, como se tivessem uma importância singular recentemente adquirida: olha um sofá; olha uma televisão; uma mesa; uma bola antiestresse. Tudo pode ser um pretexto para fazer outra coisa, ser outro, mas a minha vontade tem que ter algum significado contra o mundo. São 1h40 e está-me a apetecer um café: vou à padaria,  vou tomar um expresso, mas não vou comprar. Não posso comprar, e o jeito de me distrair vai ser olhar para dentro e entender o desejo e a falta e a dor. Se outros conseguem, eu também consigo.

A Grande Ilusão e o mítico humanismo europeu


Em tempos de extremos que emergem, de nacionalismos que se extremam e coisas más no geral que aparecem, A Grande Ilusão lembra-nos um certo ideal da Europa com homens de honra. Digo "homens", porque mulheres aqui há poucas, quase nenhuma - o que aparece são oficiais, que iam para prisões especiais e se guiavam por um código de conduta particular, então, talvez fosse fácil falar. Homens que se travestiam para alimentar o desejo, que recebiam harmónicas dos carcereiros e que cantavam A Marselhesa na prisão. Também há aqui homens para quem um travelling ainda era uma questão de moral. Renoir faz-nos perguntar: se todos sabemos do valor de todos e somos cordiais uns com os outros, guerrear porquê?

A História passa por aqui. Em fúria, prisioneiros queimam o presente da rainha que pensavam ser vodka e, afinal, é livros, mas um grita "não devem queimar livros", como alguém talvez tenha gritado (ou não, pois o medo pode muito) na Alemanha em 10 de Maio de 1933, quatro anos antes de o filme estrear. Um oficial deixa-se ser alvejado por outro, para permitir que os seus correligionários fujam, e, enquanto morre, os dois conversam uma conversa onde está todo o existencialismo que, 9 anos depois, seria chamado de Humanismo.


Por fim, há quem discuta e faça as pazes de costas para os Alpes. E, nalgum momento, diz-se que "as fronteiras não existem, são uma invenção do homem".

Cajón del Maipo

Imaginei dois homens se perseguindo. Um tem uma arma. O outro corre. Atravessa o rebanho de cabras. O da arma aponta, tem o outro na mira, mas um bode mal disposto ataca-o com uma bela cornada pelo flanco. O homem armado fica em mal estado, mas consegue desvencilhar-se do bode. O perseguido corre em ziguezague e espanta três cavalos na direção do armado, que apenas por uma sorte incrível não é pisoteado. Pedras se soltam do chão. Os homens escorregam. O perseguido torce o pé e cai. Finalmente, eles ficam frente a frente. Parece que não há escapatória. O perseguido resigna-se: vai morrer. O armado dá um passo em frente para se apoiar melhor. Grande erro: o chão está cheio de água, e o pé afunda-se na lama. O perseguido levanta-se a custo e foge na direção das montanhas cobertas de neve. O armado ainda dispara, mas falha. A última coisa que vê antes de perder os sentidos é um cavalo preto num galope zangado. Vem na sua direção.