A pior viagem da minha vida

1. SÁBADO: SÃO PAULO
Cheguei ontem de uns dias em Minas Gerais. Comi muito bem e sinto o estômago inchado até agora. Penso que, quando voltar ao Brasil no início do ano, depois de passar o Natal em Portugal, vou recomeçar a correr para abater a barriga.

Eu não sei ainda como os nutrientes acumulados no meu corpo serão preciosos nos meus próximos dias.

Converso no Skype com a minha mãe. Ela pergunta-me quais voos eu vou apanhar. Há uma semana, antes de partir para Minas, deixei já a mala de Portugal semifeita, bem ao contrário do meu hábito de deixar tudo para a última hora. O papel com o itinerário está prontinho, impresso em cima da mesa. Pego, leio e reparo em algo que não reparara meses antes quando comprei o bilhete, algo que sempre evitei fazer ao marcar passagens: o meu voo da Latam vai chegar a Heathrow, mas, para ir para o Porto, vou ter de ir até Gatwick, outro aeroporto de Londres, e apanhar um da British Airways. Apesar de ter quatro horas entre um e o outro, fico inquieto.

Faço pesquisas. Um site, já não sei se da British Airways ou do próprio aeroporto, recomenda os buses da National Express para fazer o translado e reservar 3 horas para fazer a viagem.

Esboço mentalmente o plano de chegar a Heathrow, pegar as malas e, se estiver apertado de tempo para apanhar o National Express, aproveitar o Wifi do aeroporto para chamar um Uber que me leve até Gatwick.

À noite, vou até Guarulhos e tento fazer o check-in na maquininha antes de despachar as malas, mas a maquininha não deixa. O rapaz da Latam diz-me que é por causa da mudança de voo e de aeroporto que vou ter de fazer, e manda-me direto para o balcão, onde sou atendido por uma moça muito simpática. Ela diz-me que, realmente, eles não têm serviço de transfer entre os aeroportos, mas que as quatro horas entre um voo e outro chegarão para pegar a bagagem e fazer a viagem. Para ser mais prático ainda, já me faz o check-in para o segundo voo.

O que nem ela nem eu esperávamos era a tempestade Ana. Mas isso vem mais à frente.

2. SÁBADO-DOMINGO: O VOO PARA HEATHROW
Embarco por volta das 23h30 no voo da Latam depois de uma das maiores filas de embarque que já vi. Esqueci-me de pedir no check-in um lugar no corredor, que sempre prefiro, e acabo sentado numa das cadeiras centrais, entre uma moça com longuíssimas unhas de gel e uma mulher de meia idade com cara de índia que tinha as instruções da tela de entretenimento em francês. O voo corre bem, com pouca turbulência, e, para variar, consigo até dormir umas horas boas, talvez porque não tomei café depois do jantar ou talvez porque os episódios de Friends que estava a ver me deram sono.

O avião chega a Heathrow às 12h30 de domingo, uns maravilhosos 45 minutos antes do previsto. Fico contente e penso que o futuro está a sorrir para mim. Porém, nada acontece, e o avião fica parado na pista. Os minutos transformam-se em quartos de hora, os quartos em meias horas, e nós parados, sem poder sair. O comandante explica que estão à espera de autorização da torre para estacionarem e que, por causa das condições meteorológicas, ela poderá demorar. Olho pela janela: o dia está feio e chove. Imagino que a tal tempestade Ana, sobre a qual tinha ligo fugazmente antes de partir, tenha deixado o aeroporto com muitos aviões em fila para estacionar. Ligo o celular. O meu TIM pré-pago não faz roaming, como já esperava, e a distância do terminal impede-me de acessar o Wifi do aeroporto. Reparo que a moça das unhas de gel está a conversar no Whatsapp e peço para mandar uma mensagem para a minha mãe, só para ela não ficar nervosa com a falta de notícias.

3. DOMINGO, 14h40-15h40: HEATHROW E O TÁXI
Pelas 14h40, finalmente conseguimos chegar ao terminal. Na saída da manga, digo a um rapaz da Latam que tenho um voo em Gatwick às 17h10 e já tenho o check-in feito. Será que ainda consigo pegar? Sei que é longe, mas não sei ainda que são uns belos 70km. Ele diz-me que sim e que posso pegar um bus direto da National Express ou, se precisar, um táxi lá fora.

Corro para as malas, mas a esteira demora um pouco para arrancar. Pego o celular e tento acessar o Wifi. Por alguma razão técnica, apesar de conseguir ligar-me à rede, nada funciona. Não há nem aviso para abrir uma conta em algum site estranho que me dê acesso. Esqueço o Wifi. Finalmente, uma mala aparece na esteira, mas a outra demora e demora e demora...

Agitado, reparo que algumas malas foram retiradas pelo funcionário do aeroporto e colocadas numa fila ao lado da esteira. Vou fuçar, e encontro a minha segunda mala. Olho o relógio: são 15h40, e o meu voo de Gatwick sai às 17h10.

Sem Wifi para chamar o Uber, vou para a fila de táxis. Pergunto se dá para pagar com cartão de crédito – dava – e entro pela primeira vez na minha vida num daqueles táxis engraçados de Londres, com um grande espaço traseiro, onde dá para colocar as malas e ainda sentar mais umas três pessoas em bancos que dobram. Quase uma minilotação. Estou preparado para pagar uma pequena exorbitância, mas tudo bem, pelo menos vou apanhar o avião e reencontrar a minha família, que não vejo há meses, nesse mesmo dia. Para Gatwick, passamos por uma autoestrada, e há avisos de que colocaram sal na via para derreter a neve. O trânsito está pesado, mas anda: o famoso “compacto, mas fluido” que escutei algumas vezes nas notícias das rádios portuguesas.

Pergunto ao taxista a que horas vamos chegar, e ele diz-me que às 16h40. Como tenho malas para despachar, começo a pensar que já não me vão deixar embarcar, mas conforto-me com o pensamento de que já fizera check-in em São Paulo e que isso valeria para alguma coisa.

Mal sabia eu que sair de Heathrow seria o meu grande erro no meio de toda esta história.

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4. DOMINGO, 16h43- 20h30: GATWICK
Às 16h43, o taxista deixa-me em Gatwick. Entro no terminal e corro até ao check-in da British Airways, onde três moças de uniformes azuis conversam e riem. Esbaforido, digo que venho de Heathrow e que tenho um voo para apanhar. Uma delas mexe no computador e, com cara desolada, diz-me que “computer says no”: apesar de o voo ainda não ter saído, já não conseguiriam despachar as malas. Por dez minutos – dez fodidíssimos minutos. Pergunto se não dá mesmo para fazer nada. Com voz condoída, lamenta-se que não e recomenda-me ir até ao balcão de Sales and Reservations.

Este balcão fica ao fundo do terminal, depois dos check-ins. Uma fila de pessoas espera para ser atendida por três funcionários com expressões muito cansadas. À minha frente, estão vários indianos cheios de bagagens a caminho de um intercâmbio em Vancouver. Ao meu lado, um casal de espanhóis fora expulso do avião porque o rapaz tivera um ataque de ansiedade e o comandante não esteve para o aturar. No balcão dos que pagam mais, uma italiana rabugenta resmunga algo do estilo “Claro, temos que aturar, não é? Qualquer país tem algo assim. Na Índia, temos que aturar as vacas na rua, porque tem que ser. E aqui temos que aturar as companhias aéreas!”. Até a espanhola do ataque de ansiedade ao meu lado soltou um “¡Pues, que pesado!...”.

Depois de esperar uma hora, sou atendido por um moço louro, de óculos redondos e que se chamava Harry. Conto-lhe a minha história. Ele conferencia com a sua colega e diz-me que a culpa é da Latam: apesar de o avião ter aterrado 45min antes da hora, o fato de só ter conseguido sair do voo deles horas depois do previsto torna-os responsáveis por custearem as minhas despesas de estadia e alimentação e por marcar um novo voo para eu seguir para o Porto. E nesse momento percebo que virei uma pequena e insignificante peça num jogo do empurra entre duas companhias aéreas. Digo “bem, vocês são parceiros da Latam. Você pode entrar em contato com eles por mim?”.

“Infelizmente, você mesmo é que terá de fazer isso. É uma pena, porque eles não têm balcão aqui em Gatwick. Mas vou-lhe dar o contato deles”. Harry pesquisa “Latam” no Google, dá-me o número deles para a Inglaterra e diz-me que, se precisar, que volte ali para falar com ele.

O meu celular continua a não querer entrar nos Wifis dos aeroportos de Londres. O TIM, claro, é como se não existisse. Em vez de pagar uma batelada num telefone público, decido comprar um “SIM card” (inglês para chip de celular/cartão de telemóvel). Encontro um desk de uma operadora inglesa e a moça vende-me um com um monte de minutos para falar e 10 gigas de dados.

Eu mal sabia, mas, mais tarde, este SIM card vai salvar-me.

Vou fumar um cigarro e aproveito para ativar o SIM card. Estou a ficar cansado de carregar as malas e arranjo um trólei, coisa que não fizera antes porque em Gatwick é preciso colocar uma moeda para soltar o bicho e, na correria, não tivera tempo de procurar 1 euro na mochila. Volto ao terminal, ligo para o número de Latam e fico muito surpreendido por não ser atendido por pessoas na Inglaterra e sim pela mesma linha de SAC do Brasil. Expliquei a minha situação ao atendente, mas ele diz-me que não consegue fazer nada e dá-me um número de São Paulo para ligar. Tento ligar, mas por alguma razão, o SIM card dá ruim e uma voz inglesa pré-gravada diz-me que não tenho mais créditos. Mas o pacote que comprei não dava não sei quantos minutos internacionais?! Bem, deixa. Tento ligar os dados de internet, mas também não consigo. Tenho então a idéia de ligar o laptop, que carregava na mochila e tinha alguma bateria, ao Wifi do aeroporto. Consigo, e converso no Facebook com a minha mãe e a minha namorada, a quem passo o número da Latam de São Paulo. Ela fica uma hora a tentar que alguém me ajude, mas dizem-lhe que não podem fazer nada. Entretanto, confirmo também que a Latam tem um balcão em Heathrow.

São umas 19h e começo a pensar que de Gatwick não me vou safar. Olho para o lado e vejo Harry saindo. Chamo-o.
“Harry, os números de telefone não funcionaram. Estou a pensar que o melhor para mim será voltar para Heathrow e conversar com a Latam lá, cara a cara. Diga-me com sinceridade, se você estivesse na minha situação, o que você faria?”.
Harry solta um sorriso de empatia e diz-me que eu estou certo. Agradeço, mas penso “em Guarulhos havia pessoas da Latam até à meia noite, mas será que aqui há?” Porém, é a melhor alternativa que tenho até agora, então é isso que vou fazer.

Sem nenhum interesse em pagar mais uma fortuna num táxi, vou até o balcão do National Express e compro um bilhete para o próximo bus para Heathrow, às 20h05. Está muito frio, algo como 1 grau centígrado, e, enquanto espero, aproveito e tiro da mala um par de meias, que calço sobre as que já tinha, e uma camisa, que visto sob os dois casacos que já tinha.

Todos os indianos que estavam no Sales and Reservations apanham esse mesmo bus e o motorista demora uma meia hora só para carregar as malas de todos os passageiros. Além disso, ele para nos terminais 5 e 4 de Heathrow antes de chegar ao meu, o 3. Por isso, só cheguei realmente ao terminal às 21h30. A coisa boa foi que, enquanto viajava, tive a brilhante idéia de desabilitar o chip brasileiro e consegui finalmente fazer o SIM card funcionar. Por fim, tinha acesso à internet sem ter que depender de Wifis públicos e instáveis.

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5. DOMINGO, 21h30-00h: DE VOLTA A HEATHROW
Entro no terminal. Há um monte de pessoas sentadas e deitadas pelo chão. Como eu, são vítimas da tempestade Ana, dos overbookings, dos atrasos e dos aeroportos sobrelotados. Vejo um balcão da Latam, mas o que temia aconteceu: está fechado e só abre amanhã. E não abre às 7, 8 ou 9 da manhã, mas a umas terríveis 15h30.

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O que fazer? Desistir, ir para um hotel e amanhã à tarde voltar ao aeroporto para exigir à Latam que me reembolsem e me ponham a caminho de Portugal? Com esta gente toda deslocada e a precisar de voo, quando poderei esperar chegar? Na 3ª feira? Na 4ª? Estou cansado, a última coisa que comi foi o café da manhã no avião que me trouxe até Londres. Não quero arriscar ficar a saltitar de avião pela Europa, quero ver a minha família.

Mudo então o meu plano. Vou comprar um novo voo. Não sei como ou por qual companhia, mas não saio deste aeroporto sem um voo marcado.

Quase todos os balcões de check-in estão fechados, mas no da Royal Jordanian há dois funcionários, um homem amaneirado e uma moça bonita. Pergunto-lhes se há algum lugar no aeroporto onde consiga comprar bilhetes para o Porto. Dizem que não, que terei de esperar a manhã seguinte, mas aconselham-me ir para o piso superior, onde há um internet café e poderei tentar comprar online. Subo pelo elevador e encontro um grupo de portugueses que também ficaram apanhados pela tempestade. Entre eles há um casal que está preso em Londres desde as 5 da manhã da noite anterior.

Não vou ao internet café – afinal, tenho um laptop e um celular com dados - e sigo até ao único coffee shop aberto. Fico em pé, do lado de fora, encostado ao balcão onde as pessoas tomavam cappuccinos. O meu celular está com bateria baixa e, com todo o descaramento, sem nem entrar no estabelecimento, ligo-o na estação de carregamento gentilmente disponibilizada para clientes pagantes.

Com o laptop na frente e celular na mão, corro todos os sites de venda de bilhetes de que me consigo lembrar: Skyscanner, Mytrip, Travelgenio. Em Portugal, a minha mãe chama a mulher do meu padrinho, que tem uma agência de viagens, e pede-lhe para ver o que encontra de bom. Não temos sorte: caros ou baratos, só encontramos voos para 3ª feira ou que demoram mais de um dia. Lembro-me do Gotogate, um site de viagens finlandês onde já uma vezes comprei viagens boas. Entro e – milagre! – encontro um lugar num voo da TAP às 10h10 de amanhã, saindo do London City Airport e chegando ao Porto às 15h com escala em Lisboa. O preço, considerando a pouca antecedência, é bem aceitável, e o fato de ele não sair destes bodiantes Heathrow e Gatwick parece-me um bom presságio.

Clico para comprar, preencho tudo o que é de preencher, mas o site co.uk não me aceita o cartão de crédito brasileiro. Tento de novo – volta a não aceitar. Estou em pânico e com pressa. O laptop, onde conversava com a minha mãe e a mulher do meu padrinho, fica sem bateria e apaga-se. Fico só com o celular na mão. Ponho o número do cartão de crédito da minha mãe, mas o site pede uma autenticação estranha qualquer e também não aceita. Ainda tento o meu de novo, e sou recusado de novo, antes de pôr o do meu pai. O site diz-me que lhe mandou um código de autenticação para o telemóvel. O meu pai manda-me o código pelo Facebook, eu insiro... e o bilhete é comprado! O número da reserva é enviado para o meu email, e eu escuto anjos a cantar!

Ainda fico desconfiado – afinal, esse assento vago não aparecia à mulher do meu padrinho de maneira nenhuma -, mas, depois de meia hora sem chegar um email fatídico cancelando-me a reserva, considero que tenho uma viagem comprada.

Mais relaxado, vou fumar um cigarro. Vejo dois dos estudantes indianos que estavam à minha frente na fila em Gatwick e meto conversa. Digo-lhes que estou no meio de uma viagem interminável, e eles dizem-me que passam pelo mesmo. Conversamos um pouco e percebo que eles são bem mais novos do que parecem: ainda no secundário, vão fazer esse intercâmbio para ajudá-los no seu intencionado curso superior de Informática. Eles são simpáticos e, antes de nos despedirmos, peço para tirarmos uma foto juntos.



6. SEGUNDA-FEIRA, 00h-1h10: O UBER
É tarde já. Decido que não vale ir à meia noite para um hotel para apanhar um avião às 10h10. Afinal, para que me serviu ter feito Interrail aos 23 anos se não para me ensinar a dormir em estações? O melhor é aproveitar o pouco trânsito, ir já para London City e tomar um café, dormitar um pouco, carregar o celular e o laptop, enfim. Os braços doem-me por carregar as malas de um lado para o outro e decido chamar um Uber. Pergunto a dois funcionários do aeroporto onde será o melhor lugar para apanhar um, e eles dizem-me para ir até à cabine do estacionamento em frente, onde eles normalmente param.

Chamo o Uber. Tanveer, que na foto parece indiano e sorridente, aceita a missão e vem. Porém, apercebo-me que, apesar de eu ter dado a indicação do GPS, o Uber não marcou o lugar exato onde estou. Tento ligar para Tanveer para avisá-lo, mas o número memorizado no app é o brasileiro e não sei o número do SIM inglês que comprei. Na rua gelada, ao lado dos taxis, não há ninguém a não ser um homem de capuz a alguns metros de mim. Aproximo-me.
“Senhor, desculpe: por acaso o senhor tem um telefone com número inglês?”.
“Tenho sim”.
“Eu comprei um SIM, mas não sei o número dele. Eu poderia ligar para o seu telefone para você me dizer o meu número?”.
O homem não esboça nem um esgar de estranheza, mas é muito prestável e de imediato faz o que lhe peço. Coloco o número no app do Uber e consigo ligar para Tanveer.
“Tanveer? Sou Jorge, o seu passageiro. Eu não consegui ligar antes, mas estou perto da cabine roxa do estacionamento”.
“O quê? Porque não disse antes? Eu já estou aqui à espera no desembarque. Para chegar aí vou demorar uns 10 minutos... talvez seja melhor cancelar! Você vai para onde?”
“Para o London City Airport”.
Com o olho nos 60km de viagem, Tanveer diz que, tudo bem, então ele vem até mim.

Apesar da agitação ao telefone, Tanveer é bem simpático. Diz-me que gosta do Cristiano Ronaldo e que veio muito jovem da Índia, mas não sei se percebi bem esta última parte, porque, pouco depois, quando lhe digo que no Brasil o pessoal tem uma fixação por beijar, ele responde-me dizendo que as mulheres deles tem uma coisa por fazer sexo por trás. “Perdão?”. “Sim, elas gostam de sexo por trás! É uma característica delas!”. “Mas das indianas, você quer dizer?”. “Então, as nossas mulheres, do Dubai, da Arábia, de Marrocos”. Deixei o tópico passar e, portanto, acabei por não perceber nem de onde Tanveer era nem quem são essas mulheres obcecadas por sexo anal.

Durante a viagem, Tanveer diz-me que não sabia que a TAP saía de London City. É um aeroporto pequeno, diz ele, saem mais voos fretados e domésticos. Fico desconfiado que comprei um bilhete tipo Ryanair, onde só posso levar uma mala de cabine. Vejo o site da TAP e parece que é isso mesmo. “Bem”, penso, “devo conseguir despachar as malas por uma taxa extra”. Toco na medalhinha de São Cristóvão que sempre levo ao peito e repito: “pelo amor de deus, que consiga despachar as malas por uma taxa extra”.

7. SEGUNDA-FEIRA, 1h10-1h45: LONDON CITY AIRPORT
Tanveer deixa-me na entrada de um aeroporto pequeno e isolado, com nenhum movimento em volta, e parte. Não sei, mas a coisa não me cheira bem. Entro. À minha frente está um corredor longo com máquinas de check-in. Do meu lado direito, umas portas automáticas de vidro, através das quais vejo um lobby normal de aeroporto, com balcões de check-in e cafetarias. Neste momento, isto parece-me o eldorado, mas está tudo fechado e não se vê vivalma. “Bem”, penso, “pelo menos fico sentado”. Aproximo o trólei das portas, mas elas não se abrem. “Não...”. Olho com atenção: à minha frente, um letreiro diz que o aeroporto só abre às 4h30. “Puta que pariu...”. Ok, foco. Preciso ir ao WC e tem que haver um por aqui. Sigo o corredor das máquinas de check-in até ao fim, mas ele só leva até uma sala larga com caixas de banco automáticas e máquinas para comprar bilhetes de transportes. Nada de WC.

O corredor não tem ar condicionado e a noite está gelada. Impossível aguentar horas à espera que o aeroporto abra.

De repente, abre-se uma porta e um segurança alto aparece na minha frente.
“O que o senhor está a fazer aqui?”
“Eu não sabia que o aeroporto fechava à noite”.
“Peço desculpa, mas não pode ficar aqui. Razões de segurança”.
“Há algum lugar em volta onde possa ficar?”
“Não. E não pode ficar aqui”.
“Posso pelo menos usar o seu WC rapidamente?”
“Não”.

Este é o momento em que levo a mão ao rosto e, com a voz fraca, não consigo dizer mais nada a não ser “amigo... estou no meio da pior viagem da minha vida”. Na voz do homem, percebo que ele se condói. E ele diz-me uma coisa que depois me vai ecoar algumas vezes na lembrança: “you’ve got to brave it”. Tens que enfrentar a situação, ser valente.

Ele tem razão. Levanto a cabeça e ele diz-me que, ali ao lado, há o Travelodge. “É tipo um hotel, devem deixá-lo ficar pela recepção. Dá uns 10 minutos de caminhada”.
“Mas eu tenho estas duas malonas... posso levar o trólei até lá?”
“Não posso deixá-lo levar o trólei até lá. Mas pode pegar o bus aqui na frente, ele deixa-o lá”.
“Ele aceita euros?”
“Só libras. Há uma máquina lá dentro onde pode sacar”.

Vou até ao caixa automático e, com o cartão de débito português, levanto umas 20 libras. Saio e acendo um cigarro, mas logo chega um bus. Jogo o cigarro fora, entro no bus e pergunto ao motorista se passa no Travelodge. Ele diz-me que não, mas o 747 passa. Saio, acendo outro cigarro e também não o consigo fumar até ao fim, porque logo vem o 747. O motorista é um indiano novo, e diz que, sim, passa no Travelodge. Ponho 10 libras na janelinha que nos separa e ele abana a cabeça.
“Não aceito dinheiro, você vai ter que ir lá dentro comprar o bilhete e pegar o próximo”.
A frase bate-me como um bofetão de cansaço na cara. Olho em volta, desorientado, para as malas, para o aeroporto, para o bus quase vazio, para ele, que me encara com pena.
“Você só vai até ao Travelodge?”.
“Sim”.
“Entra aí”.
Se não houvesse um vidro entre nós, daria um beijo neste homem.

8. SEGUNDA-FEIRA, 1h45-4h20: O TRAVELODGE
O Travelodge fica só a uma paragem de bus do aeroporto. Aos tropeções, carrego as duas malas até à entrada. Penso que estou a perder a força e que tenho de comer alguma coisa. É um hotelzinho simples para viajantes. De fora, vejo que tem um lobby pequeno e, graças a deus, uma cafetaria. A porta de vidro abre-se e um rapaz na recepção pergunta-me se eu estou lá hospedado.

“Então, amigo, eu não estou... eu vim para o aeroporto, mas não sabia...”
“... que ele fechava à noite”, diz o rapaz a rir-se.
“Será que eu posso ficar um pouco aqui até ele abrir?”
“Sim, mas fique aqui nos sofás do lobby. A cafetaria está a ser limpa”.
“Poderia tomar um café?”

O homem que limpava a cafetaria ouve a conversa e resmunga “o que é isto, a Amnistia Internacional?”. Não sei se ele pensou que eu estava a pedir caridade ou se a cafetaria é exclusiva para os hóspedes. Mesmo assim, ele lá acaba por oferecer-me um café e eu aceito a oferta.

Ainda estou a precisar ir ao WC e, entretanto, o recepcionista desapareceu. Pergunto ao homem da cafetaria se há uma casa de banho que possa utilizar e ele diz-me, quase gritando, “Peça ao recepcionista! Não tenho nada a ver com isso!”. O recepcionista aparece, abre a porta do WC e consigo, finalmente, fazer xixi.

Reparo que há uma máquina com chocolates e salgados e penso que deveria comer alguma coisa. Não que tenha fome, mas já sinto dor nos braços de carregar as malas: preciso de energia. Compro umas bolachinhas salgadas e um Kinder Bueno, mas só a custo consigo comer o chocolate. A adrenalina tirou-me a fome e não me deixará dormir enquanto não estiver a caminho de Portugal. Sento-me no sofá e fecho os olhos, mas não consigo dar mais do que umas piscadas.

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Entretanto, um rapaz de barba bate no vidro lá fora e indica-me que a porta automática está travada e não abre. O recepcionista aparece, abre a porta e ele entra, junto com uma moça de cabelo curto. Ele é Borja, espanhol; vem de São Francisco e vai para Bona. Ela é a Svitlana, ucraniana; mora na Inglaterra e vai para Zurique. Estão na mesma situação que eu, fazendo tempo para que abra o aeroporto que ninguém sabia que fechava. Dali a pouco, entra um homem magro de cabeça rapada. É o Jorge, português. Anda a viajar há semanas e acabou por ficar retido em Londres sem conseguir um último voo que o levasse para casa. O Borja e a Svitlana já têm reservas, o Jorge anda a percorrer os aeroportos londrinos a ver se consegue um bilhete milagroso. Acho que todos nos sentimos melhor, não tão sozinhos, e ficamos umas horas a conversar sobre os países de onde somos e aqueles onde moramos, sobre as diferenças de línguas, sobre as nossas profissões, sobre aviões cancelados, overbookings e as malditas companhias aéreas.

Pelas 4h15, decidimos ir até ao aeroporto. Antes de sair, agradeço mais uma vez a gentileza ao recepcionista e digo-lhe que ele é uma pessoa muito boa. E falo alto, para que o mal-humorado na cafetaria ouça.

O Jorge adverte do frio que está lá fora, mas, neste momento, consigo até enfrentar um furacão. Oferece-me ajuda com uma das malas, mas eu recuso: quero ir para casa abraçar a minha família e carrego tudo o que for preciso. “Brave it”, disse o segurança do aeroporto, e eu vou brave it até ao fim.

Ambas as malas têm rodas, mas só uma tem pega de mão, e a que não tem começa-me a pesar pelo meio do caminho. Pouso-a na calçada, esbaforido. O ar gelado atrapalha-me a respiração. Penso em aceitar a ajuda do Jorge, mas ele e os outros já estão mais à frente. Brave it, meu. Enfio um dedo numa argola de ferro que a mala tem em cima e faço as rodas dela girarem. O dedo começa a doer. “Brave it” - troco de dedo. O segundo dedo começa a doer – “brave it”, e troco de dedo outra vez. Chego ao aeroporto cansado, com os dedos e os braços doridos, mas vivo e pronto para deixar Londres.

Mas ainda tenho que perceber como vai ser a questão das malas.

9. SEGUNDA-FEIRA, 4h30-10h10: DE VOLTA A LONDON CITY
As primeiras funcionárias a chegarem ao aeroporto asseguram-me que não vai haver problema com as malas: pago uma taxa a mais e poderei despachá-las sem problema. Só tenho de esperar até que o balcão da TAP abra 2 horas antes do voo, ou seja, às 8h da manhã. “Puta que pariu o esperar”, penso. O Borja e a Svitlana vão esperar que o balcão da British Airways abra às 5h, o Jorge vai esperar que o desk de venda de bilhetes abra às 5h e eu vou esperar que a TAP abra às 8h. Enfim, já estive pior. Respiro fundo. O Borja diz “eu agora só vou descansar quando tiver o cartão de embarque impresso na mão!” e eu penso que é uma bela idéia. Faço o check-in numa das máquinas da entrada e, quando vejo o cartão de embarque sair dela, sinto-me como um mineiro que acaba de descobrir um filão de ouro.

O Jorge pergunta-me se eu consigo ver se ainda há bilhetes para algum voo hoje. Abro o Gotogate, mas eles já só têm lugares para amanhã. Penso “ainda bem que eu comprei ontem...”. Ele vai tentar no balcão da British. Acaba por comprar um bilhete para amanhã mesmo e despede-se: vai alugar um quarto no Travelodge e esperar por lá. Aproveito para ir ao WC e para me sentar num coffeeshop, onde carrego a bateria do celular, tomo um café e como um sanduíche, a minha primeira proteína em umas 18 horas. O Borja e a Svitlana também vão resolvendo as vidas e partindo, mas antes ainda tiramos uma foto juntos.

Enquanto espero dar as 8h10, vejo o lobby do aeroporto encher-se de pessoas, formando uma fila quilométrica que começa no raio X no piso superior, desce a escada, dá várias curvas através de um caminho de separadores instalado pelos funcionários e termina na porta de entrada. Pergunto-me se duas horas vão chegar para enfrentar essa fila e chegar a tempo ao avião ou se me vai acontecer o mesmo que em Gatwick. Respiro fundo. “Brave it”. A adrenalina baixou, e fico a saltitar num e noutro pé para não deixar o sono vencer. Vou lá fora, fumo. Compro uma garrafa de meio litro de água que bebo inteira em 5 minutos.

De repente, o logo da SwissAir dá lugar ao da TAP no painel sobre o balcão do check-in, e eu sou o primeiro a chegar. As malas – obrigado, Deus e São Cristóvão – não são um problema e consigo despachá-las.

Vou então enfrentar a fila gigante de raio X. Fico impressionado: não paro um único segundo e chego às máquinas nuns brevíssimos 20 minutos. Uma mulher com cara de poucos amigos diz “Isto aqui não é Heathrow ou Gatwick! Somos um aeroporto rigoroso e não deixamos passar as coisas pequenas! Tirem tudo das malas!”. Como se fosse um atleta numa prova olímpica, em poucos segundos tiro o cinto da cintura, o laptop da mochila e enfio os liquidozinhos que levava numa sacola plástica que me tinham dado antes. Passo pela máquina e ela não apita, mas uma moça aparece na minha frente e resmunga “senhor, o que você tem no bolso?!”. Olho e tiro a minha tapadeira de olhos, que uso para dormir no avião. Ela mexe nela para ver se não esconde nada perigoso e devolve-ma sem dizer nada. Depois de recompor a mochila e a roupa, viro-me para uma funcionária, a mesma com quem tinha conversado sobre as malas quando o aeroporto abriu, e digo-lhe com sinceridade “minha senhora, esta é uma das melhores operações de segurança que alguma vez vi”. Ela sorri.

Só me resta ir para a área de embarque e esperar o meu voo. Arranjo um lugar em frente a um painel com os horários e logo me sobressalto: o tempo lá fora parece estar a piorar de novo, há vários voos atrasados e o da Lufthansa que sai 5 minutos antes do meu aparece como cancelado. “Por favor, não me cancelem o voo... por favor, não me cancelem o voo...”. Tenso, arranjo um método para descansar um pouco sem perder de vista o painel: fecho os olhos e durmo um micro-sono enquanto conto mentalmente até 60. Aí abro os olhos de novo e vejo o que mudou nesse minuto. É difícil: enquanto eu faço isto, um rapaz inglês ao lado conta aos amigos o seu método para ter milhões de views no Youtube, conversa que faria dormir mesmo quem não está acordado há 24 horas.

O voo da TAP aparece. Parece estar no horário, mas não tem o portão escrito. Fico temeroso que na próxima atualização de horários ele apareça com atraso ou cancelado. “Por favor, não cancelem o voo... por favor, não cancelem o voo...”. De repente, pelas 9h45, o portão aparece, e o horário continua o mesmo. Vou para lá quase a correr e espero para entrar. A fila é longa e não anda, mas, neste momento, acho que qualquer fila me pareceria longa, e é isso mesmo que repito para me acalmar. “Neste momento, qualquer fila te pareceria longa. Não desconfies de tudo. Vai tudo correr bem. Brave it”. De repente, a fila começa a andar. Não há nem manga nem shuttlezinho para nos levar até ao avião, mas ele está mesmo ali, a poucos passos. A chuva cai-me na cabeça, mas nem a sinto.

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10. SEGUNDA-FEIRA, 10h10-14h15: O VOO PARA LISBOA
Quando ponho o pé dentro do avião, digo ao comissário de bordo que tenho uma ligação para o Porto às 14h. “Dá para apanhar! Estamos um pouco atrasados, mas vamos conseguir recuperar o tempo lá em cima. De qualquer forma, a TAP tem muitos voos Lisboa-Porto. Se não der, não vai ter problema em remarcar”. Eu sei que ele tem razão, mas remarcar voos perdidos não é a coisa que mais me apetece neste momento. Enfim, oremos.

Sento-me no meu lugar com satisfação. Depois de um dia a correr de aeroporto em aeroporto, finalmente estou dentro de um avião com destino ao meu país. Ponho a tapadeira sobre os olhos e preparo-me para dormir umas horas, mas apercebo-me de uma coisa estranha: a porta do avião continua aberta, com o comissário a olhar para fora, para a escada ainda montada. Mas o que é isto agora?

Funcionários com coletes fluorescentes aparecem de vez em quando e vão falar com os pilotos na cabine. Finalmente, o comandante diz o que se passa: por faltar uma documentação técnica qualquer, não estão a deixar o avião sair. Ele espera que o pessoal de terra da TAP consiga resolver a situação nuns 50 minutos. Lembrei algo que o Borja me tinha dito: que uma vez lhe cancelaram o voo quando o avião já estava em movimento, prestes a decolar. Tento dormir um pouco, mas na minha mente ecoa-me a frase “por favor, não cancelem o voo... por favor, não cancelem o voo...”, e continua a ecoar até que, com mais ou menos uma hora de atraso, o avião sai do chão, atravessando as nuvens de chuva com destino a Lisboa. Neste momento, por fim, eu apago de sono.

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11. SEGUNDA-FEIRA,14h15-16h: LISBOA
Depois de sonhar com uma escultura branca cujas formas iam mudando devagar, chego a Lisboa 15 minutos depois do horário da partida do meu voo para o Porto. Penso “Bem, vou remarcar, aproveito para ir ao WC e comer alguma coisa”. Sigo para a área dos voos de ligação e – surpresa – tenho que passar por um raio X de novo. Como se não fosse suficiente, há uma fila gigantesca e lentíssima. Entro nela contrariado, mas logo vejo uma moça da Groundforce lá na frente a orientar as pessoas. Aproximo-me dela.

“Menina, desculpe... eu já passei por um raio X em Londres, acabei de perder a minha ligação para o Porto e preciso remarcar”.

“Olhe, lamento, mas tem mesmo que passar aqui, e agora eu só consigo dar prioridade a quem vai para Marraquexe. Mas dou-lhe um conselho: se, ao sair, o balcão da TAP estiver muito cheio, vá direto até ao do portão”.

Guardo o conselho no bolso. Cansado, suado e meio desorientado, reentro na fila mais à frente do lugar onde estava – bem mais à frente, aliás. Decido então cometer um delito que em São Paulo quase me daria pena de prisão: furar a fila. O homem à minha frente queixa-se que acabara de passar por um raio X em Inglaterra, e eu puxo conversa com ele, dizendo que eu também, e que, sim, é um absurdo, e esta fila tão longa, um horror, uma ineficiência e etcetera e tal. As pessoas imediatamente atrás pensam que somos amigos de longa data e ninguém me incomoda.

Sim, companheiros, furo esta fila, e furo-a com uma categoria de príncipe! Poderia dizer que não me orgulho disso, mas estaria a mentir: orgulho-me tanto que penso nisso e quase rio sozinho.

Quando chego ao raio X, o homem pergunta-me se tenho líquidos.
“Tenho uns pequenos por aqui, estão numa sacola que me deram em Londres”
“É melhor tirar então, para evitar ter que revistar a bagagem”
Abro um dos fechos da mochila, remexo e remexo, mas não encontro o raio da sacola. Encolho os ombros. “Olhe, amigo, não sei”.
“Pronto, então passe”.

Passo o raio X e já nem tiro o cinto da mochila. O balcão da TAP está cheio, mas sigo o conselho que a moça me dera e sigo até ao portão da Ponte Aérea Lisboa-Porto. Três rapazes estão atrás de um computador ao lado de um portão e explico a minha situação. Um deles tecla no computador.
“Senhor, você até devia passar para o voo das 17h, mas vou conseguir pô-lo no das 16h”. Olho o relógio: só faltavam 40 minutos.
“E as malas vão seguir nele também?”
“Sim, senhor”.
“Amigo, você não imagina a felicidade que me está a dar. Estou a viajar há quase dois dias seguidos”.
“Obrigado, senhor. Eu entendo. Ontem saí daqui às duas da manhã por causa dos voos atrasados. A tempestade Ana atrapalhou tudo na Europa toda”.

Só tive tempo de ir ao WC e logo me chamaram para o embarque. O moço que me rasgou o bilhete diz-me “boa viagem, senhor Nande”. Desço para o shuttlezinho. Passo os dedos pelo cabelo, seco depois de quase dois dias de ares condicionados, ventos gelados e chuva. Subo a escada, sento-me e, depois de poucos minutos, o meu avião para o Porto decola.

12. 16h-17h: O VOO PARA O PORTO
O voo é tranquilo e rápido. O céu está limpo e, quando estou a chegar, consigo ver a espuma das ondas do mar e sinto o sol de Inverno a aquecer-me a cara. Penso no meu fim de semana, nas pessoas todas que me ajudaram e nas que não me ajudaram. Penso na minha namorada e nos meus pais, que se sentiram impotentes e preocupados e não dormiram enquanto me tentavam auxiliar por todos os meios que conseguiam. Fico com lágrimas nos olhos. Lembro-me do segurança de London City a dizer-me “brave it”, mas, não consigo, caem-me lágrimas dos olhos cansados, e é isso mesmo; neste momento, acho que mereço.

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O avião aterra no horário e vou para a esteira. As minhas malas são as primeiras a chegar. Passo pela alfândega e não me mandam parar. Neste momento, não preciso pedir favores a ninguém, não preciso comprar mais bilhete nenhum, não preciso ir para mais filas. Só preciso atravessar a porta do desembarque, encontrar os meus pais, que não vejo há meses, beijá-los e abraçá-los. Preciso dizer à minha namorada que tudo correu bem, que estou em casa. E preciso lembrar-me do que aconteceu, porque não quero esquecer nada, nunca. Por isso escrevo isto.

13. MORAL DA HISTÓRIA
A verdade triste é que, em viagens, saber a língua ajuda muito, mas, acima de tudo, é de dinheiro que precisas para te safares. E, quantas mais materializações dele tiveres à disposição, melhor. Vivo, débito, crédito, crédito de vários países: tenta ter todas as que conseguires e não esqueças nenhuma.

Nunca te distraias enquanto compras um bilhete de avião. Mesmo que já tenhas comprado dezenas e raramente te tenham surgido pacotes com conexões em aeroportos diferentes da mesma cidade, isso pode acontecer. E não é bom.

Evita escalas em Londres ou em lugares com probabilidade grande de serem acossados por tempestades que atrasem os voos de toda a Europa.

Café, cigarros e frio matam e não podem ser defendidos. Também são do melhor que há para ficar acordado e alerta. Tira as tuas próprias conclusões.

Blanche Dubois dizia que sempre dependera da bondade de estranhos. Isso não é bom, mas ninguém está imune a passar por necessidades. Por isso, na próxima vez que um estranho te pedir um favor, pensa que pode ser só um rapaz que quer muito chegar a casa.

Os cães

Devia ter uns 16 anos e voltava para casa à noite. Não sei porquê, decidi fazer um caminho alternativo e subir por uma ruazinha em vez de seguir na estrada principal. A meio da subida, vi uma matilha. Os donos dos cães deixavam-nos soltos à noite e eles juntavam-se para matar umas galinhas, comer lixo e foder. Os cães viram-me também, e eu soube que, se voltasse para trás, eles correriam atrás de mim. Então, segui em frente. Começaram a latir muito, mas eu não olhei para eles. Fixei um ponto no fim da rua e, de cabeça erguida, continuei, caminhando normalmente. Quando atravessei no meio deles, os cães enlouqueceram e eu senti medo, mas não parei, não corri e não desviei o olhar. O barulho era ensurdecedor e dois atiraram-se a mim de boca aberta. Senti os dentes deles na pele do meu braço, mas eles não fecharam a mandíbula, não me morderam. A volúpia deles era a de me assustar e o atrevimento acabava aí. Saí do outro lado da matilha, e os cães pararam de latir. Quando dobrei a curva, olhei para trás, temendo que me perseguissem. Não o fizeram. Nessa noite aprendi uma lição e sei exatamente qual.

Dilma andou de bicicleta na calçada

Dilma não é uma presidente competente. Ou melhor, não é uma política competente. Ela sabe resistir, mas não é ágil. Foi reeleita por um triz, não soube lidar com um Congresso adverso, não conseguiu impor políticas, perdeu eleitores, autoridade e voz.

Nada disso é base para um impeachment.

Estamos acostumados a ouvir falar em impeachment de políticos quando eles cometem abusos latentes de poder, como sonegação de dados, corrupção, apropriação indevida de bens públicos. As chamadas "pedaladas fiscais" de Dilma, por muito que sejam expedientes irregulares para lidar com um desequilíbrio nas contas públicas - do qual, diga-se, ela é responsável -, parecem uma desculpa esfarrapada para a oposição derrubar um partido que está há 14 anos no poder. É um pouco como se a presidenta fosse pega andando de bicicleta na calçada e castigada com uns meses de prisão. A pena não combina com a violação, e quem contesta o impeachment percebe isso muito bem.

Chamar o impeachment de golpe é exagerado. O processo está a seguir como deve, com o STF dando chicotadas regulares ao Congresso. Mas o mérito dele é, sim, errado. A oposição recorreu a ele como se fosse mais uma arma do arsenal, e não a bomba atômica que ele realmente é, o que revela também que ela é tão incompetente fazendo política quanto a presidente.

Ninguém sai bem deste processo. Ele é a prova de que os políticos brasileiros vivem numa redoma, jogando o seu jogo sem pensar em quem os elegeu e, até, no futuro do próprio jogo. O precedente aberto vai paralisar os próximos presidentes, temerosos de que qualquer ato de gestão possa vir a ser interpretado como uma irregularidade e castigado por um Congresso recheado de deputados calculistas e mais preocupados com o que podem ganhar do que com o futuro do país. A menos que o sistema político brasileiro seja reformulado de cima a baixo, isso vai irremediavelmente acontecer.

E há uma outra questão, mais imediata, a pensar: o dia seguinte. Pouco depois de eu ter chegado ao Brasil, Tiririca foi eleito deputado, e lembro-me da enorme polêmica que se criou sobre se um palhaço mereceria ser deputado. E os suspeitos de corrupção, Temer e Cunha - eles merecem ser presidentes? Onde está essa polêmica então?

Presidente fraca contra os brutos

A história é feita pelos vencedores e, neste momento, os vencedores estão à direita do PT. Não importa que o percurso do indiciado Eduardo Cunha seja dos mais sinistros na política brasileira, não importam os exageros alucinados de Bolsonaro ou Feliciano na defesa de visões trogloditas. O país só tem olhos para o fim do que há agora. As manifestações do 13/3 são anti-corrupção ou anti-Dilma? Ninguém sabe já muito bem. Não importa mais. As pessoas estão mais interessadas em sair do impasse em que se encontram. E, digam o que disserem os defensores do PT, Dilma tem muita culpa desse impasse.

No segundo mandato, Dilma mostrou que não está à altura de lidar com a crise econômica, muito menos com a deserção política dos aliados. É surpreendente, para uma mulher que sempre pareceu tão forte, mas revelador: Dilma sabe resistir, mas não sabe mexer-se. Foi ineficaz no jogo político e deixou que um congresso adverso e oportunista a encostasse ao canto. Ela passou esse segundo mandato paralisada politicamente, e a renúncia não seria surpreendente.

Ironicamente aguentando Dilma no cargo, parece-me, está o mesmo pedido de impeachment que a tem ocupado e desgastado. Exagerado e com uma base muito discutível, ele sempre foi mais um instrumento de pressão contra ela do que um processo urgente para repor a justiça, mas hoje ele é uma razão forte para ela não abdicar do posto. Dilma disse que pedirem a renúncia dela é admitir que o impeachment não tem base, e o contrário também é verdade: ela resiste a renunciar, porque fazê-lo agora seria admitir que o impeachment tem base.

No Brasil e no mundo, hoje e sempre, líderes e partidos vêm e vão e, enquanto isso, os povos sofrem mais ou menos. Nada de novo, portanto. O preocupante é o que pode ascender ao poder depois que este status quo passar.

Lula foi forçado a depor usando uma lei que só deveria ser usada se ele se tivesse recusado a fazê-lo antes, e, sabemos agora, assim aconteceu com a maioria dos alvos da Lava Jato, assim revelando como mera desculpa a justificativa de Sergio Moro de que se tentava evitar o tumulto social que daria a marcação de um depoimento agendado do ex-presidente. O Ministério Público pediu a prisão preventiva de Lula sem que houvesse base jurídica suficiente e, em bloco, juristas e políticos ligados à oposição e ao Governo reprovaram. Talvez alguns só tivessem percebido então o tamanho do monstro que ajudaram a criar. Dois dias depois, a Polícia Militar entrou numa reunião de um sindicato que fazia um ato de solidariedade a Lula.

Não se trata de pôr em causa os méritos da investigação, das provas e dos argumentos jurídicos contra Lula. Trata-se de pensar no que foi revelado. A articulação próxima do judicial com a política, o atropelo dos direitos processuais básicos de acusados e ações intimidatórias da polícia (sempre com a desculpa de manter a estabilidade social, de evitar tumultos - em suma, de paternalmente defender a sociedade dela mesma) são mecanismos típicos das ditaduras. Fala-se muito em “golpe”, e talvez na sombra ele esteja a acontecer mesmo. Se Dilma é uma péssima jogadora do jogo político democrático, os seus adversários parecem não ter nenhum problema com atropelar as suas regras.

As manifestações do 13/3 superaram, segundo o Datafolha, as das Diretas Já. Nelas, Aécio Neves e Geraldo Alckmin, políticos de direita controversos, mas relativamente moderados, foram vaiados em São Paulo. Já o quase extremista Bolsonaro foi aclamado como “mito” em Brasília. O ódio específico contra o PT - não contra os corruptos, não contra os políticos, mas contra o PT- vem do quê? Não entendo, e também não entendo este afã por figuras de força bruta que não trazem nada de novo ou construtivo além do ódio. Se o objetivo de tudo isto é abrir um novo caminho no Brasil, com correções de falhas antigas, ele está irremediavelmente condenado a falhar.

Ir de bicicleta dobrável para o trabalho em São Paulo

Isto é só um complemento às dicas preciosas da Sabrina Duran.

Lisboa, um dia de 2008. Chego a casa frustrado por perceber que é impossível enfrentar a subida até à Graça, onde moro, com a bike que comprei. Penso que poderia ter gasto um pouco mais e comprado uma dobrável, que, se dobrada, é considerada bagagem e, portanto, pode entrar a qualquer hora nos transportes públicos.

Corta para São Paulo, 2016. Na última Black Friday, comprei uma Durban One, uma bike dobrável bem simples, de uma marcha. Passei um mês pedalando para a produtora e reduzindo a caminhada de 20min para metade. Mas vou gravar um programa em breve, o que significa um percurso até ao estúdio de caminhadinha-metrô-trem-caminhada. Então, decidi testar essa integração da dobrável com os transportes.

Veredicto: funciona.

Assim que cheguei ao metrô, no momento em que punha a dobrável do outro lado da porta de quem passa de cadeira de rodas ou com carrinhos de bebês, um funcionário avisa-me: "tem que estar embalada". Já sabia disso. Passo na catraca, tiro da bolsa o saco de lixo que pedi ao porteiro no dia anterior e ponho a bicicleta dentro. Sim, o saco de lixo serve como "embalagem". E o resto do percurso de trem será assim.

A dobrável no saco, esperando o trem parar.

Isso da bicicleta ser embalada parecia-me frescura da CPTM e do Metrô, mas dou o braço a torcer, faz todo o sentido. Uma bicicleta tem metais saindo, correia com óleo, rodas com poeira. É uma exigência absolutamente razoável para que, no aperto, ninguém suje a calça nela sem querer.

A Durban dentro do trem.

Há outras regras de "etiqueta de usuário ciclista" que eu poderia não ter seguido, porque a bike dobrada e embalada deixa de ser "bicicleta" e passa a ser "bagagem", mas a verdade é que elas também acabaram por me facilitar a vida. É mais confortável pegar o último vagão, porque normalmente tem menos gente. E é bom esperar todas as pessoas embarcarem ou desembarcarem, porque evita bater com a bike em alguém e faz a tarefa de carregá-la bem mais confortável.

No trabalho, a bike ficou num cantinho, sem incomodar ninguém.

Em suma, o tempo das caminhadas foi reduzido, carregar a bike no metrô não foi complicado e, no final, deu tudo certo. E, só para desfazer possíveis enganos, apesar de não ter alergia a me mexer, não sou nada "Geração Saúde". Odeio academias, fumo e como tudo o que dizem que não se deve comer. Mas acho que a vida deve ser prática, e a bicicleta dobrável sem dúvida torna a vida na cidade bem mais prática. Por isso, é importante dizer que usá-la não é para superpessoas.

A loucura dos outros (contínuo)

(07-02-2016, Domingo de Carnaval)
e o Thiago França dedicou uma música aos moradores de rua do Anhangabaú, e eles festejaram lá mesmo na frente do palco, sem camisas, um ou outro com os sacos pretos meio cheios de latinhas, e as pessoas limpas começaram a dançar em volta, e os da rua dançavam também, um tinha um balde na cabeça e passava uma escova pelo balde imaginário, e outro olhava calado e bêbedo as mulheres limpas que não costumava ver assim porque nos outros dias elas não chegam tão perto, e outro era gordo e tinha um boné caído sobre os olhos e o rapaz limpo abraçava-o e os amigos tiravam fotos rindo, e o homem posava porque nos outros dias ninguém lhe tira fotos, e então o gordo tentou abraçar todas as pessoas limpas para lhe tirarem mais fotos, mas algumas não quiseram e fugiram. Quando o Thiago França acabou o show, toda a gente foi embora, mas não os homens da rua, porque eles ainda pegaram nos sacos pretos e acabaram de enchê-los com as latas que as pessoas limpas tinham deixado no chão do no vale do Anhangabaú.

(03-02-2016)
O farol está verde para os carros. Uma moça estilo compro-artesanato-na-rua-com-o-dinheiro-que-meu-pai-me-dá atravessa a faixa sem ligar muito para o moço estilo leio-a-Veja-toda-semana-e-gosto-de-bebidas-com-energético que subia a rua de carro e já estava bem próximo dela. Ela ainda manda um sorrisinho e acena para o moço, mas ele não trava, ou não consegue travar, e passa encostadinho nela. O sorriso dela cai e, em protesto, bate com força no carro. O motorista avança uns metros, para não arriscar um pontapé, talvez, e grita "vaca!". Ela manda-o tomar no cu. Ambos seguem os seus caminhos,

O aborto

Depois da excelente entrevista de Drauzio Varella sobre o aborto:

Eu não gosto quando alguém aborta. Se isso acontecesse na minha vida privada, eu preferiria trazer a criança ao mundo.

Mas a nossa opinião sobre o aborto não tem a ver com o que queremos para a nossa vida. Tem a ver com o que queremos para a vida dos outros.

Proibir o aborto não para o aborto. Os dados que o artigo da BBC indica ("uma brasileira morre a cada dois dias por conta de procedimentos mal feitos e um milhão de abortos clandestinos seriam feitos no país todos os anos") comprovam isso.

Ou seja, a proibição só entrega a mulher que aborta à clandestinidade e a arriscar a saúde e a vida nas mãos de pessoas que não pode processar se o fizerem mal (porque se arrisca a ser ela própria presa e condenada).

E proibir o aborto não tem nada a ver com a questão "uma mulher deve poder abortar?". Tem a ver com a questão "uma mulher que aborta deve ser presa?". Gostaria que o Brasil entendesse isso, como Portugal entendeu há alguns anos.

Se você acha que não conhece ninguém que tivesse abortado, pergunte a uma amiga, à sua mulher, à sua namorada, e talvez se surpreenda ao descobrir que alguém bem próximo de você o fez. Muito provavelmente, você vai descobrir que a situação que levou essa pessoa a se submeter a uma intervenção clandestina não foi fácil, que ela não o fez feliz e contente, que, na verdade, o fez com muito custo e sacrifício.

E depois pense: essa pessoa merece ser presa? Se você acha que não, não deve ser presa ou punida porque já foi punição suficiente submeter-se a essa provação, então, seja qual for sua opinião sobre o aborto na sua vida privada, você é favorável a uma despenalização. E é isso que está em causa.

4 coisas que não vão mudar em 2016

OS POLÍTICOS NÃO VÃO MUDAR. Há 2 mil anos que a política é a arte de se servir e você acha que isso vai acabar por meia dúzia de mimimis em redes sociais? Isso é como querer que sua casa fique limpa porque você está no sofá se queixando. Se quiser lidar com a sujeira, aprenda a sujar-se antes.
 
O MUNDO NÃO VAI MUDAR. Se acha que acordos resolvem as crises do mundo, vá contar os acordos de paz que já houve entre Israel e Palestina ao longo das décadas. E, se acha que trocar um governo pelo outro vai resolver sua situação, pense que você não é nem pobre o suficiente para inspirar misericórdia nem rico o suficiente para inspirar respeito. Também pense que, até há uns 200 anos atrás, a classe média a que você pertence não existia e você teria muito mais chance de ganhar a vida escavando bosta de vaca. Detalhe: a vaca não seria sua.
 
OS OUTROS NÃO VÃO MUDAR. Pode desejar o que quiser, mas aquele tipo de coisas irritantes e patéticas que você leu no Facebook em 2015 vai continuar a aparecer em 2016. Os idiotas continuarão idiotas e o máximo que a virada vai inspirar neles é uma bebedeira.
 
VOCÊ NÃO VAI MUDAR. Não interessa a filosofia new age de meia tigela que você descobriu, o gif inspirador que viu ou as “iluminações” que teve. Você vai continuar a ser uma criatura imperfeita trilhando um caminho incerto num mundo hostil que continuará a parecer querer expulsar-te dele. Aprenda a apreciar a sua imperfeição e a ligar o foda-se e siga em frente.

35 anos

Morei em dois países, visitei mais dez, estive em dezenas de cidades e em 3 continentes. Habitei dez casas, seis em Portugal, quatro no Brasil. Morei com uma pessoa durante oito anos, estive em repúblicas com mais 30 pessoas e há quatro anos que moro sozinho. Namoradas, tive seis. Só vi um jogo de futebol num estádio - um belo jogo, por sinal. Nunca fui bom com desporto, mas era bom a jogar ao pião. Trabalhei em sete lugares. Fiz um curso na universidade, mas não segui a carreira. Sou pós-graduado, mas não me serviu de nada. Vendi discos numa loja, fiz transcrições de texto, fui jurista, advogado, sou argumentista, sou roteirista, gosto de escrever e sei que isso será algo que vou fazer de uma forma ou de outra até o corpo ou a vida me faltarem. Escrevi eventos corporativos, poesia, programas de televisão, filmes, óperas. Publiquei dois ou três livros. Não tenho dívidas. Sou a pessoa que não gosta de dirigir numa família em que há uma escola de condução. Tive duas bandas, lancei um disco com a segunda. Fui a vários concertos e festivais de música, incluindo Vilar de Mouros em 1982, mas não me lembro deste. Uma vez, fiz uma direta para poder ver um concerto em Coimbra e estar em Monção na manhã seguinte. Fui do jornal universitário, onde escrevi crítica de cinema e uma coluna bastante lida. Também era editor de fotografia, e orgulho-me de ter entusiasmado para a área alguns amigos que hoje vivem dela. Fotografei muito a sério e parei quando percebi que já estava bom. Fui membro de um grupo de poesia e do conselho de redação da respectiva revista. Escrevi um blog durante anos e parei de escrever quando deixou de me interessar. Fiz poetry slam, fui a uma final europeia. Ganhei concursos de escrita. Festivais de cinema, ganhei dois prémios num e fui jurado três vezes (não do que ganhei). Consigo tocar guitarra mais ou menos, e às vezes engano bem o suficiente para parecer que toco melhor. Cumprimentei o Mário Soares e o Jorge Sampaio (fui bem) e o Cavaco Silva (fui mal). Gosto de livros, de filmes e de séries. Conseguiria viver com café com leite e pão com manteiga. Não preciso de muita coisa, quanto menos tralhas melhor. Segurei uma pessoa enquanto ela morria, mas nunca segurei alguém acabado de nascer. Já perdi todos os meus avós e o meu tio. Adoro histórias, verdadeiras ou não, e gosto mais das pessoas que também gostam delas. Não gosto de joguinhos amorosos, mas agrada-me a política e suas jogadas de bastidores. Gosto de lavar louça, mas não de arrumá-la. Passar roupa a ferro aborrece-me e só faço a cama se souber que vem visitas. Sou de esquerda, mas agnóstico. Gosto de documentários sobre História mais do que sobre Natureza. Tive uma Mega Drive e defendia a Sega contra a Nintendo, apesar de ter tido um Game Boy já na universidade. Depois, comprei uma PSP, mas nunca joguei muito nela. Às vezes, queria conseguir mostrar mais que amo as pessoas que amo. Tenho poucos arrependimentos. Está tudo certo.

O dia

Tinha reunião de manhã, acordei com um resfriado surpresa. Lá fora, enquanto comprava cigarros no boteco da esquina, percebi que não tinha o cartão do banco na bolsa. Paguei com dinheiro, voltei para o apartamento. Revirei coisas, não o encontrei. Fiz contas ao dinheiro que tinha, planejei só cancelar o cartão no dia seguinte se não o encontrasse à noite. Saí de novo. Passei pela farmácia, comprei paracetamol e gotas para o nariz. No caminho, uma montanha de pessoas por baixo do Minhocão, perto do Hirota. Expressões entre curiosas e consternadas. Um ônibus do lado, parado no corredor. Acidente? Talvez, se fosse avaria elas caminhariam até ao ponto seguinte para pegar outro ônibus, estava perto. Tentei olhar, mas tinha hora e a multidão era muita, não vi nada. Tive reunião, os olhos resfriados piscando. Fiz contas de novo, com o dinheiro vivo que tinha dava para almoçar e ainda conseguia esticar para o dia seguinte. Almocei. Disseram-me que morreu alguém por baixo do Minhocão, um homem, um ônibus. Pensei que passei pelo ônibus, pelas pessoas, pelo corpo que não consegui ver. O resfriado, os olhos piscando, o mau humor de sempre. Resfriado é a minha TPM. Voltei para casa ao fim da tarde, mais cedo do que o normal. No Minhocão já não havia pessoas, não havia corpo, a vida imparável doía. Um casal saiu da loja chinesa com a filha pequena, ela trazia um brinquedo brilhante na mão. Entrei em casa, o meu cartão estava caído ao lado do sofá. Os olhos piscando, lembrando: estás resfriado, estás vivo, estás resfriado, estás vivo, estás resfriado, estás vivo.

18 conclusões sobre Paris

1. Há quem insista em lembrar que mortes em Paris não valem mais do que mortes no Brasil. Quem insiste tem razão.

2. Há quem lembre que as mortes que todos os dias acontecem no Médio Oriente não valem menos do que as de Paris. Essas pessoas também têm razão.

3. A segunda parte desse raciocínio é que as mortes de Paris também não valem menos do que as do Brasil ou as da Síria.

4. Este atentado foi uma intervenção planeada e executada por uma organização político-militar que controla uma área maior que a Grã-Bretanha com um exército de milhares de soldados.

5. As mortes de civis na Síria são crimes de guerra. Este atentado não, pois não se lhe aplica a Convenção de Genebra.

6. Este atentado foi uma peça de teatro de terror, que começou com explosões durante um jogo que estava a ser visto por todo o mundo e terminou com o Estado Islâmico a gabar-se do seu ataque à "festa da perversidade" que era um show de rock e pessoas saírem à noite.

7. Estes psicopatas são bullys e nada mais do que isso. A civilização que estes proclamam defender é só eles mesmos e a sua leitura distorcida dos preceitos do Corão.

8. Quem do outro lado insistir que esta é uma guerra civilizacional só está a defender a si mesmo e à sua xenofobia. Esta é uma guerra contra um bando de bullys.

9. As 2as gerações de imigrantes sempre sentiram que não pertenciam a lugar nenhum e os países europeus não souberam lidar com isso. Os atentados são uma ampliação monstruosa dos carros quebrados no centro de Paris que se vêem há uns 20 anos.

10. Quem achar que em Portugal está tudo bem porque somos ótimos a integrar imigrantes deveria pensar na Cova da Moura ou do que aconteceu na Quinta da Fonte em 2008.

11. O passaporte sírio de um dos terroristas é provavelmente um truque do Estado Islâmico para acirrar os ânimos contra os refugiados e aumentar o seu poder de recrutamento no seio destes.

12. A guerra na Síria é um quebra-cabeças diplomático que o eixo EUA-Europa deixou andar até as consequências lhes baterem à porta.

13. Os refugiados que entram na Europa estão a fugir das mesmas pessoas que fizeram isto em Paris.

14. Acolher os refugiados é importante e a única solução humana possível.

15. Acolher os refugiados é tratar um sintoma, não curar a doença. A doença é a guerra na Síria.

16. A causa da doença é a manipulação eterna das políticas no Médio Oriente segundo os interesses do eixo EUA-Europa.

17. Eu tenho parentes e amigos em Paris. Temi por eles. E eu não gosto de temer que parentes e amigos sofram as consequências de um atentado terrorista.

18. A 2a Guerra Mundial também foi feita contra bullys. Os Aliados ganharam-na com maior força bélica, com melhor estratégia, com melhor diplomacia e com melhor espionagem. E essa, parece-me, é a forma de ganhar esta guerra.

Por mim, a TAP pode ir à vontade

Aqui vai a minha primeira queixa do Governo de esquerda em Portugal: eu não faria o mínimo esforço para impedir a privatização da TAP. Não conheço mais nenhuma companhia aérea estatal, não vejo a necessidade de uma companhia aérea ser estatal e não entendo porque a TAP tem que ser estatal. A ligação ao setor público não implica que os preços dos bilhetes sejam menores, não implica que o serviço seja melhor ou pior do que o de outras companhias e só serve para carregar o Estado com os prejuízos de um setor muito volátil às flutuações do mercado e que nem de longe se pode considerar transporte público. O que nunca deveria ter sido privatizado era a EDP, os serviços de saúde, as estradas. Agora, a TAP? Porquê?

Porque eu sou por um governo de esquerda

O meu avô ensinou-me a não confiar em políticos e, ao longo da minha vida, os políticos não fizeram grande coisa para me fazer mudar de ideias. Quero dizer, não à partida. Há três coisas de que gosto num político: ter princípios, não ter medo e saber-se mexer. Se me convencem disso, ótimo, e há muito tempo que não me convencem. Apesar disso, eu vejo com bons olhos a possibilidade deste governo de esquerda. Confio que governar acompanhado vai frear aquele impulsozinho chato do PS no poder de distribuir alegremente cargos e dinheiros aos amigos próximos. Quanto ao medo dos comunistas, só posso dizer que por uma vez sinto-me feliz por ter nascido depois do PREC e não ter esses fantasmas a pesarem-me nos ombros. Não acho que o PCP tenha maior capacidade de me decepcionar do que outro partido qualquer. De qualquer forma, nunca achei que comunistas fossem gente sem palavra - nem vi ninguém dizê-lo -, portanto, o respeito à Europa, até prova em contrário, está seguro, certo? Quanto ao resto, há uma frase de Camus que copio sem reservas: "sou de esquerda, apesar de mim e apesar da esquerda". Por favor, então, senhor Cavaco, com quem tenho uma bela história em comum, dê-me a satisfação imeeeeeensa de vê-lo acabar a sua presidência e a sua carreira política a mandatar um Governo de coligação de esquerda, ok?

Tudo igual

O povo queixa-se do governo, a alternativa ao governo é contestada, a sociedade está polarizada e há acusações mútuas demonizando o lado oposto. Portugal e Brasil estão iguais.

Estudioso

O meu último texto neste site é de Janeiro. E isso tem uma razão. Este ano, passei 122 dias em estúdio. Gravei quatro novas temporadas (e meia) de quatro programas. Passaram-me pelas mãos centenas de fichas de candidatos a participantes de reality show. Escrevi páginas e páginas de roteiro, horas e horas de televisão. Dezenas de pessoas choraram na minha frente enquanto as entrevistava. Terça feira será previsivelmente o meu último dia de gravação em 2015. Confesso que estou um pouco cansado. E também confesso que não trocaria isto por nada.

Sobre American Horror Story (aviso: contém spoilers)

A quarta temporada de American Horror Story terminou e só serviu para me confundir mais em relação à série. De todas as que sigo, é a que me deixa mais indeciso quando alguém me pergunta "Gostas?".

Os criadores e showrunners são o Ryan Murphy e o Brad Falchuk, autores do Glee.

O piloto da série era confuso e com um ritmo nervoso que não favorecia a série em nada. Foi dirigido pelo próprio Murphy, e ainda bem que depois vieram outros diretores e, quem sabe, outros roteiristas, com visões que acrescentaram valor à original.

A série ganhou mais suspense e menos choque, mais gestão da tensão e menos explosões de adrenalina, mais atenção ao subtexto (uma família disfuncional) e menos ao "supertexto" (uma casa assombrada).

A primeira temporada terminou ok, e a segunda, no manicômio, foi a melhor de todas, com um ambiente tensíssimo, uma curva muito bem amarrada e a clarificação de um dos elementos que mais me divertiu na série: um delírio sobre as convenções do gênero, misturando serial killers, médicos doentios, nazis, zumbis, et's e possessão satânica numa única história.

Quando a segunda temporada terminou, tinha AHS lá no alto. Mas, com a terceira, tudo se desmoronou.

Ela começou como a jornada de uma menina, uma "coming of age story".

Depois, a Jessica Lange, e a sua batalha com Angela Basset, tomou a dianteira.

Mas aí aconteceu a disputa entre as bruxas novinhas sobre quem viria a ser a nova bruxa mega master blaster, e as personagens principais começaram a matar-se e a voltar à vida e a morrer outra vez a tal velocidade que eu deixei de me importar. Queria mesmo era que aquilo acabasse o mais depressa possível.

No meio daquela salganhada, tudo podia acontecer. E não de um modo entusiasmante, como aconteceu na s02 de Twin Peaks antes de sabermos quem matara Laura Palmer, mas como aconteceu depois de sabermos, ou seja, um sentimento de "qualquer coisa pode tanto acontecer que me estou a cagar para o que acontece".

Para mim, o último episódio não foi uma conclusão. Foi uma eutanásia.

Esperei a quarta temporada com curiosidade. Ela seria a que viria clarificar todas as minhas opiniões, facilitar a minha decisão e juízo sobre a AHS. Mas não foi isso que aconteceu.

Ela começou bem. Apesar de ter dado muito foco nas gêmeas siamesas no primeiro episódio (parecia que ia ser a história da relação entre elas e a Jessica Lange), isso acabou por se perder. Como acabámos por entrar num coletivo, com mais personagens boas e fortes, acabei por não dar muita importância, mas isso começa a parecer um traço do AHS: entrar no universo e abstrair-se de uma linha principal.

Ou seja, como se os criadores estivessem a insistir no que foi o erro da terceira temporada para transformá-lo em marca estilística, com a correção de expandirem o universo e não fecharem simplesmente as personagens dentro de um casarão a matarem-se umas às outras.

Houve coisas ótimas.

Ambientar o freak show nos anos 50, em puro conflito com o mainstream americano de classe média suburbial.

Os pseudo clips de músicas que só apareceram depois do período de tempo retratado, como David Bowie ou Fiona Apple.

O igualmente atraente e repelente Dandy, que deu à série o melhor monólogo que ela já teve:
This body is America. Strong, violent, and full of limitless potential. My arms will hold them down when they struggle. My legs will run them down when they flee. I will be the US steel of murder. My body holds a heart that cannot love. When Dora died she looked right into my eyes and I felt nothing. The clown was put on Earth to show me the way. To introduce me to the sweet language of murder. But I am no clown. I am perfection. I am greatness. I am the future, and the future starts tonight.

E houve coisas terríveis.

A canção dos Nirvana que parece ter levado os autores a dizerem "fomos longe demais, isto não é Glee", porque os momentos musicais sumiram depois disso.

As surpresas sobre a moralidade das personagens, que cheiram mais a preguiça de as pensar do que à criação de uma ambiguidade que nos deixe na expectativa.

E, de novo, tantas personagens a ganharem protagonismo e a morrerem pouco depois (o que foi aquele ventríloco do Neil Patrick Harris?) que eu fui para o episódio final de novo sem grande entusiasmo e prontinho para desistir de AHS.

E a verdade é que duas coisas aconteceram nele que me desconcertaram.

A performance final da Jessica Lange, cantando Heroes do Bowie, fechou a curva da personagem dela na perfeição.

Ela mesma já não era o freak recém chegado do Life on Mars, mas a conquistadora vitoriosa da psique americana, que invadia semanalmente através da televisão.

Aí AHS reclamou de novo, e sem hesitar, o seu lugar como comentador da cultura popular dos EUA.

Mais importante, o massacre a sangue frio de Dandy no freak show parece quase auto-satírico, como se os próprios autores nos estivessem a dizer "as nossas personagens morrem do nada, porque a América mata a sua cultura do nada quando já não precisa dela".

Se o corpo de Dandy é a América, o vazio moral que o espetador sente quando vê uma personagem morrer é semelhante, não só ao vazio moral dele quando mata, mas também ao de quem apaga do mapa aquilo de que já não precisa em vez de construir a partir dele.

Uma coisa eu consigo dizer: o que falta a AHS é coerência.

Tem-lhe sido muito difícil concentrar-se numa linha narrativa, e sofre com isso.

No melhor, as suas digressões são extraordinárias; no pior, causam-nos indiferença.

Mas - e esta é a minha grande dúvida - e se suscitar essa indiferença perante o aleatório das vidas e mortes das suas personagens for a forma de a série nos acusar a todos de sermos cúmplices de uma cultura que banaliza a vida e a morte como mais um fait-divers, mais uma nota de rodapé no jornal, mais um minuto de televisão preenchido?

Se assim for, essa será a ironia máxima.

A série que começou por assumir os clichês do horror e que depois os misturou com prazer e humor acaba por dizer que a verdadeira "história de horror americana" não é a da violência ou da morte, mas a da sua redução ao zero e ao absurdo.

Mas será que é isso?

Os seis "Mas" do Charlie Hebdo

O massacre na redação do Charlie Hebdo revoltou-me.

Primeiro, porque eu entendo o que é sofrer pressão por algo que se escreveu, produziu, lançou para o mundo.

Acreditem ou não, sofro-a quando os realities que roteirizo têm um vencedor e todos os apoiantes do perdedor mandam à merda e insultam o canal e todos os que produziram o programa.

Sofri-a quando quis dizer o meu poema crítico sobre o Durão Barroso num evento que só por acaso aconteceu nas instalações da Comissão Europeia em Lisboa.

E sei que a posso sofrer em tudo o que fizer.

O princípio por trás disto é o mesmo do que aconteceu em Paris: alguém te vai sempre lembrar que há coisas que não se podem dizer.

Mas, para poder trabalhar, eu tenho que dizer coisas.

Se me pudesse dar ao luxo de pensar em toda a gente que pode ficar incomodada com o que escrevo, não conseguiria escrever nada.

Ou seja, não poderia trabalhar.

Segundo, eu sou um cidadão e, como tal, tenho uma consciência muito forte - decidam se é errada ou não - dos direitos que eu e todos temos para fazer e para dizer.

Por tudo isso, houve reações ao atentado que eu simplesmente não engulo.

1- "Estou chocado, mas a culpa é do Islão".

Uma vez, estava a almoçar em Paris.

Reparei num homem, sentado numa mesa próxima, em silêncio total.

Tinha uns 50 anos, bigode, um ar banal de quem saiu do trabalho e foi almoçar.

Estava tão quieto que pensei que tivesse adormecido à mesa.

Mas, de repente, ele levantou os olhos, pousou o livrinho que tinha na mão, esperou o que tinha de esperar pelo almoço, comeu e foi-se embora.

O livrinho era o Corão.

E aquele era o jeito possível de ele cumprir a sua oração a Meca.

Há 1.6 bilhões de muçulmanos no mundo.

Considerar que os seguidores de uma religião são responsáveis pelos atos criminosos de três dos seus integrantes é absurdo.

Eu nem sei quem eles representam. Alguém sabe quem eles representam, além deles mesmos?

Os irmãos Kouachi são muçulmanos que nasceram e cresceram em França.

E a política europeia de integração de imigrantes falha, sim, e tem que ser repensada e balizada pela tolerância e respeito mútuo, sim.

Mas quantos muçulmanos há em França que sofreram com a política de integração e não pegaram em armas para invadir um jornal?

Isto não foi um caso de imigrantes resistirem a polícias que entraram no bairro onde moram e os trataram, inocentes, como criminosos.

Isto foi um caso de fanáticos assassinarem a sangue frio pessoas que estavam numa sala a trabalhar só porque não gostavam do trabalho delas.

Confundir estes assassinos com o homem que eu vi almoçar em Paris é um insulto a ele, ao bom senso e à inteligência de todos nós.

2- "Estou chocado, mas a culpa é da globalização/geopolítica ocidental/EUA".

Houve quem dissesse que a culpa é do Bush filho e Bush pai. Da invasão do Iraque. Do apoio a Israel. Da ingerência ocidental no Médio Oriente.

Talvez tenham razão. Mas a Segurança Social também já teve ingerências bem chatas na minha vida e não foi por isso que entrei numa repartição e abri fogo.

Este argumento é vicioso, porque não responde a nada. E não responde a nada porque a ingerência não tem fim.

"Vocês desenharam Maomé", "Mas vocês explodiram o metro de Londres", "Mas o Bush invadiu-nos", "Mas vocês fizeram o 11 de Setembro", "Mas vocês estão feitos com Israel", mas vocês, mas vocês, mas vocês.

Quem define onde parar?

No Lawrence da Arábia? Na invasão do leste europeu pelo Império Otomano? Na expulsão dos mouros da Península Ibérica, que foi árabe quase 600 anos? Na invasão do Médio Oriente por Alexandre o Grande?

A culpa é de quem matou quem está morto, e ponto.

3- "Estou chocado, mas parte da culpa é dos cartunistas, porque atacavam o Islão".

Este argumento implica que se deve regrar o discurso pelo conteúdo.

E esquece que a democracia não foi construída para albergar respeitinhos ou consensinhos.

Ela foi construída para albergar choques.

Esses choques, numa sociedade democrática, dão-se nos tribunais. Nos órgãos representativos. No voto. Nas ruas, nos cafés, na internet. E na imprensa, claro.

O Charlie Hebdo satirizava quem precisasse de satirizar. Religiões, partidos políticos, chefes de Estado, a França.

E também satirizava muçulmanos. Porque não satirizar muçulmanos, afinal? Se satirizava judeus e cristãos, não o fazer seria, de certa forma, uma verdadeira discriminação.

Para quem não gosta, há um bom remédio.

Esse remédio é os tribunais com que se pode processar um jornal, a imprensa em que se pode responder ao jornal, a legislatura que pode criar leis que protejam quem se sentir vítima de um jornal.

E não precisa de Ak-47s.

4- "Estou chocado, mas ironia e sátira não são construtivas".

Este argumento quer regrar o discurso, não pelo conteúdo, mas pelo tipo.

Ele implica que a ironia e a sátira são um discurso de dentro para dentro, que não potencia o diálogo e que o nosso mundo só poderá melhorar se pudermos dialogar com o diferente.

Ele pretende ignorar que a sátira e a ironia geram o riso, mas também o desconforto. Que a provocação gera o pensamento. E que o pensamento gera a discussão.

Por isso é que o humor não é apreciado por ditaduras. Ou por fundamentalistas. Ou por terroristas.

Como se dialoga com terroristas, humoristicamente ou não?

E, além do mais, quem tem autoridade para dizer que tipo de discurso é mais ou menos válido? Eu? Tu? Ele?

Aceitar a liberdade de expressão é aceitar, simplesmente, que a expressão é livre. Que expressar o desacordo é livre. Que uma sociedade esclarecida é mais completa do que a que não o é.

Alguém pode perguntar "E se a sociedade não estiver pronta?".

E eu respondo: com toda a gente calada, ela nunca vai estar.

Não existem discursos mais ou menos meritosos. Só mais e menos arriscados.

5- "Estou chocado, mas ninguém se lembra dos outros jornalistas que morrem por aí e das pessoas todas assassinadas em conflitos pelo mundo".

Assim se diz como quem não quer a coisa que as pessoas são indignas de se indignarem.

Na pior perspectiva, isto é sentimentalista e baixo.

Na melhor, isto passa por cima de uma diferença fundamental do que aconteceu em Paris.

Quem escreve, grava, difunde, ou opina numa sociedade livre, jornalista ou não, sente-se posto em causa mais pelo que aconteceu no Charlie Hebdo. Porquê?

Porque isto não foi um jornalista atingido por uma bala perdida, assassinado numa esquadra ou que aparece furtivamente enforcado em casa no momento em que se preparava para lançar uma notícia sobre um político corrupto.

Essas pessoas merecem o nosso respeito e memória e a sua morte não vale menos do que a de ninguém.

Tal como não vale menos do que a sua morte a de polícias. Ou a de soldados. Ou a de civis. Ou a de qualquer pessoa que morre injustamente.

Mas pensem que os assassinos não gritaram "Matamos o Charb", ou o Cabu, ou o Wolinski, ou o Tignous.

Eles gritaram "Matamos o Charlie Hebdo".

Eles não queriam apenas eliminar uma voz incômoda, mas dizer "este lugar já não é seguro para fazer o que faz". E, como tal, mais nenhum o é.

Em vez de um jornal, poderia ter sido uma igreja. Uma sinagoga. Uma mesquita. Ou uma escola.

Poderia ser qualquer representante de qualquer bastião que consideramos necessários para a nossa sociedade democrática funcionar.

Portanto, isto foi um ataque à nossa ideia de democracia, sim, e por isso mais espantoso, e por isso mais memorável.

6- "Estou chocado, mas há muitos hipócritas que agora dizem 'Je Suis Charlie'".

É verdade, há gente hipócrita.

E eu só tenho a dizer que espero que não o estejam a ser quando dizem isso.

Afinal, diferentes valores juntam-nos a pessoas diferentes.

Se pessoas de quem não gosto se chocaram com o que aconteceu, pelo menos sei que temos isso em comum.

Se assim for, espero que isso lhes tenha servido para pensar na vida e serem menos hipócritas no futuro.

Se não forem, pelo menos saberão que não podem mandar ninguém calar-se.

Resposta no Facebook a um amigo brasileiro que não gosta de Breaking Bad

Olha, cara, você tem razão, chega de jogo social.

Eu adorei Breaking Bad. Assisti em série os 62 episódios em 2 semanas. Tive crise de abstinência depois do final e fiquei catando documentário e making of durante um mês para continuar sobrevivendo.

Por isso, seria de esperar que eu tentasse convencer quem não gostou, como você, de que a série é ótima, que o equilíbrio na composição das personagens é incrível, que o longo e frágil processo de aprendizagem para o mal achou nela o formato perfeito para ser contado, que o Walter White é um anti-herói tão bom que até o espectador fica em contradição moral, que o arco da série está mais fechado do que puteiro de mafia coreana, que os episódios Fly e Ozymandias foram das melhores horas de televisão que eu vi na minha vida.

Eu poderia falar isso tudo, mas, sabe que mais? Eu realmente não quero saber. Sério, tô nem aí. Caguei. Tem tanta coisa para assistir aí que, se você não gosta, você não gosta. Eu adoro Mad Men, eu adorei Six Feet Under, e eu sei lá se são melhores ou piores. Qual é o critério para dizer se é pior ou melhor? Afinal, todos são produtos da mentalidade americana de virada de milênio, encabeçados por uma personagem masculina com dificuldades de conjugação entre aquilo que é e aquilo que os outros vêem nela. Qualidade menor ou maior? Não compro esse papo. A partir de um determinado nível, parece que estamos discutindo qualidade quando na verdade estamos discutindo empatia, e arrumando argumentos e pagando de douto para justificar afetos. Uns seriados põem mais peso na caraterização de personagem, outros no enredo, outros na arte - lembra de Pushing Daisies?, lembra de Carnivale? -, e aí?, vai falar para a única pessoa que você conhece que adorou Pushing Daisies ou Carnivale que isso não é legítimo porque as personagens não são credíveis? Ou eu vou falar para você sobre Deadwood, dizer que, tudo bem, a série tem seus méritos claros, mas que a ambiguidade moral do Walter White é melhor elaborada que a do Al Swearengen, que o Seth Bullock é um babaca que deveria ser coadjuvante e olha lá, que a série fica derrapando sem saber para onde ir durante 3 episódios depois da morte do Wild Bill Hickock, que cocksucking isto e cocksucking aquilo poderia ter chegado há 10 anos mas não chega mais? Que importa eu dizer isso tudo, se a tua brisa nunca vai ser a minha brisa e, por mais que você fala elogiando e eu deselogiando, nunca vamos conseguir trocar de brisas?

Talvez eu tenha pena que você não tenha sentido o mesmo que eu quando assisti o negócio, aquela excitação prévia de trocar de mundos, a sensação de que sou um escolhido por viver numa época em que posso desfrutar dessa história, como se ela tivesse sido feita só para mim. Mas, pensando bem, não tenho nem um pouco. Tudo bem, você acaba sendo menos uma pessoa com quem posso conversar sobre a série, mas também, quê, 30 minutos de conversa descrevendo cenas que nem dois tontinhos? Quem precisa disso mais, né. Já acho estúpido ficar discutindo que time brasileiro é melhor (porque o meu Benfica é melhor que todos juntos, claro), agora vou ficar discutindo que série é melhor. Sei que Black Mirror é inquietante. Sei que Sherlock é muito divertida. Sei que Louie é encantadora. Agora, melhor, não sei.

UMA SEMANA COM JACK NOHAYBANDA: o final

Hoje termina UMA SEMANA COM JACK NOHAYBANDA.

Isso não significa que o livro vai deixar de ser vendido, mas apenas que o preço promocional terminou. Ou seja, se ele custava o equivalente a um maço de cigarros, agora vai custar o equivalente a dois maços de cigarros. Se não conseguiram comprá-lo antes, podem fazê-lo agora, tanto no Brasil como no resto do mundo.

Lancei este meu primeiro ebook quase como uma experiência. No final, as minhas expectativas foram largamente ultrapassadas, quer na atenção que recebi nas redes sociais como nas compras!

Agradeço a todos que compraram, que leram, que viram os vídeos e que, de uma forma ou de outra, se interessaram pelo projeto. O futuro trará novidades, por isso fiquem ligados na página do livro no Facebook.

A todos, um grande abraço e até já.

UMA SEMANA COM JACK NOHAYBANDA: Capítulo 1

UMA SEMANA COM JACK NOHAYBANDA é um livro de Jorge Vaz Nande. Para informações, atualizações diárias, vídeos exclusivos e material de produção, curtam a página do livro no Facebook.

Este é o primeiro capítulo:
1. o homem e o seu compromisso
A cabeça de Jonas doía. O aeroporto, as caras flutuantes, a neblina fria da manhã, os olhos pesados. O sono aquecia-lhe a testa, a saliva fermentava de preguiça nos cantos interiores da boca, nos intervalos côncavos entre a gengiva e a bochecha. Jonas pensava nunca mais chegam, e olhava para os casacos coloridos das mulheres.

Havia ausência, mas também inveja: Jonas nunca tinha ido a um lugar e desconhecia o cheiro de um avião. Aquela gente, a outra, estava para além dele. Jonas era-lhes menor.

Jonas segurava uma folha de cartolina onde estava escrito “JACK NOHAYBANDA”. As letras, grandes, mas sem escândalo. A situação era simples. Jonas não conduzia limusinas, não representava uma grande empresa, era só o faz-tudo de outro homem; Nohaybanda era um cowboy milionário interessado em comprar a Lagoa; e a Lagoa estava arrumada há muito tempo na última pasta da última gaveta do arquivo. Era algo a despachar, rapidamente.

Na memória, a voz fria do patrão. O medo. Jonas devia temer Nohaybanda, porque Nohaybanda era-lhe maior e porque não sabia o que esperar de Nohaybanda e de si próprio, Jonas, quanto a Nohaybanda. Jonas temia Nohaybanda e, naquele momento, pensava em aproveitar a desculpa de não o conhecer para ainda mais o temer. Jonas, portanto, apenas se permitia sentir sob o pretexto de licenças. Estas podiam ser as que ele atribuísse a si próprio e, como resultado, era normal que os fins dos dias lhe doessem de infelicidade.

Ouviam-se aviões de vez em quando. Jonas não sabia se descolavam ou aterravam, mas tinha sensações, e Jonas não gostava de sensações sobre acontecimentos cujas verdadeiras implicações lhe falhavam. Por isso, tentava ignorá-los, observando sem cessar as outras pessoas que tinham atravessado a manhã fria para estarem ali, a seu lado, na coincidência vã de por ele serem observadas sem cessar. Jonas gostava de seguir mulheres com o olhar e gostava de seguir os olhares dos homens que seguiam mulheres com os olhares, porque, maior diversão do que a de olhar para uma mulher tentando que ela não percebesse que ele a olhava, era a de vigiar vinte homens hipnotizados nesse acto. Mas, a bem dizer, aquela manhã era fria, o nevoeiro enchia de chatice as coisas e o aeroporto estava vazio de mulheres que merecessem olhar-se para elas. Enfim, havia gordas coradas na fila dos táxis e duas adolescentes louras de mochilas às costas e calções curtos que tresandavam a engano de quem esperava país quente; nada de realmente interessante. Por outro lado, Jonas sentia as pessoas na nuca, sentia-as a julgá-lo e à sua folha de cartolina com “JACK NOHAYBANDA” escrito, a ditarem-lhe passado, presente e futuro em pensamento, a adivinhar-lhe a baixeza de salário, e Jonas pensava

um homem sem compromisso, com uma mala na mão, está comprometido com o destino da mala

e tentava descobrir se conhecera a frase num filme ou num livro ou dita por alguém, mas não conseguiu alcançar solução e teve de continuar a existir na dúvida.

Jonas passou a mão pela cabeça: o gel que usava, em quantidades que o satisfaziam, mas também faziam temer pela iminência da calvície – parte dele ficou-lhe na mão, lembrando-o de repente que havia um corpo para além das lembranças e dos jogos mentais. Que não fiques prisioneiro de ti próprio, tinha-lhe dito Susana (e disso, sim, lembrava-se), que esse é o melhor passo para a loucura, tinha ela continuado, que estou farta de todos os doidos na rua que me cumprimentam sem nunca me terem visto e que me chamam mãe apesar de terem o dobro da minha idade, não quero que te tornes num deles, não quero um dia destes tropeçar em algo que deveria estar morto e olhar para baixo e encontrar-te a pedir uma esmola, ouviste, e ele acenava, acenava então no aeroporto também, acenava com os olhos quase a fecharam-se-lhe, a folha de cartolina suspensa nas mãos como um rosário, e só parou de acenar e abriu os olhos quando alguém lhe perguntou alguma coisa em inglês e à sua frente estava Jack Nohaybanda, cowboy americano.
És o Jonas,
sim, pensou Jonas, sou quem você diz que sou, aquele que o vai guiar por esta terra de viúvas de homens vivos e de sonhos de ouro francês, que lhe vai mostrar a merda que os cães vadios foram fazendo nas margens enlameadas da Lagoa, sou eu, sim, sou o seu chaperone, escolhido por saber o inglês, escolhido por ser letrado, eu, que nunca fui a um lugar, que sonho com mulheres que não terei, que me divirto com os pecadilhos dos homens, que desprezo os pecadilhos dos homens.

Jonas tentou espertar os olhos. Soltou a mão direita da folha de cartolina, cumprimentou Nohaybanda, que era alto e cowboy, com chapéu de cowboy, olhos esmeraldinos de cowboy, casaco comprado com dinheiro de petróleo de cowboy, e Jonas desviou a cabeça quando se apercebeu do sorriso escarninho da boca dele.
Esperemos pela minha mulher, O.K.,
mas Jonas não sabia deste pormenor e isso não o deixava muito bem disposto. Ele não queria assumir responsabilidades pela estadia de uma mulher, pois isso significava que depois viria a ser avaliado à luz de dois critérios, o do homem, que ele entendia, e o da mulher, que lhe era estranho. Com que então há uma mulher, pensava Jonas, e será que a mulher que há é aquela de casaco de peles branco mesmo a pedir um activista que lhe atire com um balde de tinta vermelha, e que anda através das pessoas e dos homens como se conhecesse o caminho desde o momento em que veio ao mundo, e que no seu andar de gata assenhorada rompe as ondas dos olhares como o Moisés fez com as águas do Mar Vermelho, será aquela morena que ali vem de enormes óculos escuros e lábios finos pintados de vermelho escuro, a mesma que se aproxima de Nohaybanda e o beija no pescoço e estende a mão na minha direcção e diz
Sou Paola,
sim, deve ser essa a mulher, porque ela nunca me diria o seu nome se assim não fosse e, mesmo que o fizesse, eu não teria coragem para lhe responder,
Jonas, encantado,
espantoso,
pensava Jonas, espantoso, e pegou-lhe nas malas. Nohaybanda, claro, sorria, porque já conhecia todas as variações nas reacções dos homens ao conhecimento de Paola, e, de repente, Jonas apercebeu-se: tudo tinha mudado, a neblina tinha-se dissipado e o dia, frio como um túmulo, deixava no entanto o sol nascer e iluminar as pessoas com raios de ferro.

Paola e o marido seguiam Jonas. Andavam lentos, mas constantes, cautelosos, atentos. Estrangeiros. Jonas envergonhava-se e sentia-se limitado naquilo que podia dizer e na coreografia que deveria dar aos seus movimentos, mas apercebia-se: os seus olhos tinham-se finalmente aberto e expulsado o sono, porque uma mulher bela dependia dele. Também é verdade que este era pensamento que lhe dava para pouco, e no segundo seguinte, depois de um tique de cabeça e uma espreitadela rápida ao corpo de Paola, Jonas pensou que ela não tinha nenhum interesse nele e que era irrazoável ocupar a imaginação com mentiras. Mas, ultrapassadas as portas de vidro que se abriam sozinhas à saída do aeroporto e postas as malas do casal no porta-bagagens, já Jonas tinha virado a cabeça para Paola mais vezes do que o zelo de anfitrião podia justificar.

Jonas abriu a porta a Nohaybanda, o milionário, e a Paola, sua mulher. A saia dela levantou-se ligeiramente quando entrou, mas Jonas foi discreto no espreitar. Fechou a porta e olhou para a linha parda, negra e verde de táxis que, ao fundo, esperava por clientes para ganhar a vida. Eram carros sujos, quase mortos. Jonas entrou e arrancou. Depois, recomeçou o processo de se lembrar da frase em que tinha pensado durante toda a manhã de neblina: nunca mais chegam, nunca mais chegam. Perdeu-se das palavras quando Nohaybanda lhe perguntou algo sem importância e nunca mais na vida voltaria a pensar no assunto.

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