Parar (4)

É difícil explicar  o porquê do vício para quem nunca o teve. Ao longo da minha vida, vi duas explicações que me satisfizeram. Uma foi em This Must Be The Place, de Paolo Sorrentino, quando uma mulher que chora em silêncio pelo filho desaparecido diz "You never took up smoking because you remain a child. Children are the only ones that never get the urge to smoke".

Há uma verdade nisto. O vício mata-nos um pouco de cada vez que o praticamos, não no sentido do extermínio de saúde, mas da mais pura sensação imediata. Uma névoa escura invade-nos e a agitação interna é silenciada, aplacada. De cada vez, nós deixamos de ser um pouco nós e podemos descansar de nós mesmos. É por isso que as campanhas de sensibilização são ineficazes: a morte não assusta, porque o vício implica estarmos permanentemente num malabarismo com ela. Ela está sempre presente, e essa consciência do nosso fim também faz parte da condição de ser adulto.

A outra explicação foi de David Sedaris em Letting Go. "as if he’d been allotted a certain number of cigarettes, three hundred thousand, say, delivered at the time of his birth. If he’d started a year later or smoked more slowly, he might still be at it, but, as it stood, he had worked his way to the last one, and then moved on with his life".Eu adicionaria que talvez o fim do nosso período de vício não seja ditado pelo número de doses tomadas, mas pelo total de tempo. O meu tempo com isto, para isto, acabou, penso eu.

Parar (3)

Dois dias já se foram. Ontem à noite senti a mesma aflição de quando se tem um pedaço de carne enfiado num dente sem conseguir tirar. Recorri ao mesmo expediente a que recorria adolescente, aflito com os exames finais do Secundário: afundar o rosto numa almofada e gritar até não conseguir mais. Deixar que a voz solta canse o corpo. Funcionou. Porém, estava também a acabar um trabalho do mestrado. Muita coisa na cabeça. De repente, mexendo nos livros da estante, encontro um meio maço perdido da C. Sem pensar, tiro um, ponho na boca, acendo. Apenas um, e apenas um foi mesmo. Só um dia e um único cigarro lightíssimo já me deixou de cabeça tonta e meio enjoado. Não senti a tentação de repetir, o que me surpreendeu e agradou. Até dormir, não senti mais nada. Hoje, no trabalho, o dia correu tranquilo, muito mais do que ontem. O mau humor passou, mas a desconcentração permanece um pouco. Pela noite, a C. aqui, ela não quis fumar para não me tentar, mas dividimos um depois de jantar e, uau, senti um sabor mau, desagradável. Continuo com os chicletes (comprei uma caixa para o trabalho, outra para ficar em casa) e no trabalho ainda tenho lascas de coco secas, para entreter a boca com o crocante sem ingerir calorias desnecessárias.

Parar (2)

Passaram umas 12 horas. Daqui a pouco vou almoçar. Sinto uma agitação no corpo, como algo que está prestes a cumprir-se. A concentração continua difícil, mas a introspeção resolve. Sem tentações para desistir: a curiosidade por experimentar os efeitos da ressaca é maior ainda. Disse aos meus colegas que parei e que não se surpreendam se eu os mandar a todos tomar no cu. Eles riram, eu também.

O caminho de bicicleta para o trabalho foi ligeiramente mais fácil. Um certo limite na respiração ao pedalar, não o senti. Também não senti a fome enorme que sentia pelo meio da manhã quando parei no ano passado, mas conto comprar algumas coisas no supermercado só para guardar aqui na geladeira do trabalho caso me dê a fome. Fruta, umas bolachas, nada de muito calórico: não vale a pena facilitar o aumento de peso também. Porém, ontem comprei uma caixa de chicletes, que tenho aqui em cima da mesa, e a moça da padaria perguntou-me se não ia querer o que sempre comprava, e eu sorri quando lhe disse que não.

É preciso imaginar um filão de veneno, principalmente se surgir vontade. O objetivo é aguentar até sexta-feira e zerar o corpo. Depois disso, é outra coisa, é manutenção.

Parar (1)

Foi há umas duas horas, mais ou menos, que acabou. Não quero comprar mais. Não sinto problemas físicos, mas estou um pouco cansado de estar dependente de uma substância. Já tentei parar antes; foi há um ano ou dois? Aguentei-me durante um mês, o semedão reduzido a uma vez por dia. Percebi que era possível e também que comprar é a fronteira do falhanço, muito mais do que pedir um ocasionalmente. Diminuir não funciona, isso eu já sabia: sempre que tentei, algo acontece, algum imprevisto e, de repente, lá regresso à mesma quantidade. Então, parei. É isto parar? Parece mentira, mas tenho os Morphine a tocar na janela ao lado. Sinto-me nervoso, a boca seca, e o chá gelado não parece resolver. Tenho um trabalho do mestrado por acabar, mas é como se tivesse tomado uma injeção de Maluquinol e não consigo parar de olhar para as coisas à minha volta, uma após outra, como se tivessem uma importância singular recentemente adquirida: olha um sofá; olha uma televisão; uma mesa; uma bola antiestresse. Tudo pode ser um pretexto para fazer outra coisa, ser outro, mas a minha vontade tem que ter algum significado contra o mundo. São 1h40 e está-me a apetecer um café: vou à padaria,  vou tomar um expresso, mas não vou comprar. Não posso comprar, e o jeito de me distrair vai ser olhar para dentro e entender o desejo e a falta e a dor. Se outros conseguem, eu também consigo.

A Grande Ilusão e o mítico humanismo europeu


Em tempos de extremos que emergem, de nacionalismos que se extremam e coisas más no geral que aparecem, A Grande Ilusão lembra-nos um certo ideal da Europa com homens de honra. Digo "homens", porque mulheres aqui há poucas, quase nenhuma - o que aparece são oficiais, que iam para prisões especiais e se guiavam por um código de conduta particular, então, talvez fosse fácil falar. Homens que se travestiam para alimentar o desejo, que recebiam harmónicas dos carcereiros e que cantavam A Marselhesa na prisão. Também há aqui homens para quem um travelling ainda era uma questão de moral. Renoir faz-nos perguntar: se todos sabemos do valor de todos e somos cordiais uns com os outros, guerrear porquê?

A História passa por aqui. Em fúria, prisioneiros queimam o presente da rainha que pensavam ser vodka e, afinal, é livros, mas um grita "não devem queimar livros", como alguém talvez tenha gritado (ou não, pois o medo pode muito) na Alemanha em 10 de Maio de 1933, quatro anos antes de o filme estrear. Um oficial deixa-se ser alvejado por outro, para permitir que os seus correligionários fujam, e, enquanto morre, os dois conversam uma conversa onde está todo o existencialismo que, 9 anos depois, seria chamado de Humanismo.


Por fim, há quem discuta e faça as pazes de costas para os Alpes. E, nalgum momento, diz-se que "as fronteiras não existem, são uma invenção do homem".

Cajón del Maipo

Imaginei dois homens se perseguindo. Um tem uma arma. O outro corre. Atravessa o rebanho de cabras. O da arma aponta, tem o outro na mira, mas um bode mal disposto ataca-o com uma bela cornada pelo flanco. O homem armado fica em mal estado, mas consegue desvencilhar-se do bode. O perseguido corre em ziguezague e espanta três cavalos na direção do armado, que apenas por uma sorte incrível não é pisoteado. Pedras se soltam do chão. Os homens escorregam. O perseguido torce o pé e cai. Finalmente, eles ficam frente a frente. Parece que não há escapatória. O perseguido resigna-se: vai morrer. O armado dá um passo em frente para se apoiar melhor. Grande erro: o chão está cheio de água, e o pé afunda-se na lama. O perseguido levanta-se a custo e foge na direção das montanhas cobertas de neve. O armado ainda dispara, mas falha. A última coisa que vê antes de perder os sentidos é um cavalo preto num galope zangado. Vem na sua direção.

Cidadão

Não sei se sabem, mas eu escrevo poesia.
Em 2009, fui finalista europeu de Poetry Slam, em Berlim. Por causa disso, fui convidado para fazer uma performance no aniversário de uma associação de cultura francesa em Lisboa.
Antes do evento, pediram-me para testar o som. Disse um poema e, assim que acabei, uma mulher aproximou-se com expressão consternada.
É que o poema (posto aqui em baixo) era uma crítica ao então presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso.
E o espaço, que fora cedido à associação, era o da sede da Comissão Europeia, da qual a mulher era funcionária.


Nesse momento, o dilema que se punha àquela mulher era básico: ser representante da Comissão numa censura a um evento que nem da Comissão era; ou não fazer nada e arriscar-se a ter problemas caso se soubesse que uma crítica a Durão Barroso fora dita naquele espaço.


A funcionária pediu-me para trocar o texto por outro, e tudo ficaria bem.
Eu disse que não ia fazer isso.
Entretanto, passa um homem de barba e terno. Era colega da mulher e parecia mais sereno. Ela explicou-lhe o que estava a acontecer e pediu-me para eu lhe mostrar o poema impresso.
O homem leu e, no final, de sobrolho franzido, disse "pois, isso, realmente, tem uns termos mais fortes...".
Pediram-me para omitir as palavras mais pesadas, e tudo ficaria bem.
De novo, eu disse que não ia fazer isso. Tinha sido convidado para fazer o meu repertório de poemas - e esse era um dos meus poemas.
Eles não ficaram muito satisfeitos e continuaram uma conversa mole, tentando que eu mudasse de ideias.
A diretora da associação percebeu o burburinho, aproximou-se e conversou com eles.
Ela argumentou que o espaço lhes tinha sido cedido para eles fazerem o seu evento. Que eu fazia parte do evento. E que o poema era uma performance minha. Portanto, eu tinha todo o direito de o dizer.
Os funcionários, contrariados, calaram-se e anuíram.


Dali a pouco, na frente de algumas dezenas de pessoas, disse o poema.
A funcionária, sentada num canto como uma vigia de escola, abanava a cabeça. A sua face ia do azul ao roxo como um termómetro prestes a explodir.
Mas fui muito aplaudido e, no final, ouvi muitos elogios do público.


Não foi Durão Barroso que quase me censurou, foram os seus burocratas. Porque é sempre assim: é sempre outra pessoa que te vai querer calar, ou bater, ou matar, em nome do respeitinho, dos bons costumes ou seja lá qual for a desculpinha barata que arranjarem para dizer que tu os incomodas.
Um amigo, com quem tinha uma banda de spoken word, também estava lá. Depois, enquanto descíamos a rua para apanhar o metro, disse-me, rindo, "o que tu fizeste foi como gritar pelo Benfica no meio do estádio de Alvalade cheio de sportinguistas".
Ele tinha razão. Mas é muito fácil falar dos direitos e liberdades individuais da boca para fora e mais difícil levantar a cabeça e dizer "não" quando é preciso. Eu não vou abdicar do meu direito por causa de conveniências.
Democracia é falar, discutir, respeitar o diferente e fazermo-nos respeitar enquanto diferentes. Não é ter medo daquilo que nos possa acontecer pelo que dizemos, fazemos ou somos.


Se Bolsonaro ganhar esta eleição, ganha a gente do medo. A gente que acha correto censurar uma peça em que uma mulher trans interpreta Jesus. Que acha que um homem nu num museu é um elogio à pedofilia. Que acha que uma exposição sobre o sexo na arte é um atentado à moral. Que acha que os seus opositores devem ir para a prisão ou para fora do país.


Mas também tenho certeza de uma coisa: Bolsonaro já perdeu esta eleição. Seja qual for o resultado das urnas, e contra a aclamação geral que ele buscava, está claro que metade dos eleitores se uniram na certeza de não quererem a sua incompetência, a sua mesquinhez e o seu ódio. Metade dos brasileiros estão dizendo que levantarão a cabeça e dirão "não" contra propostas que limitem as suas liberdades e os seus direitos, e toda a classe política já percebeu isso.


Em Lisboa, eu fui temerário e provocador. Hoje faria diferente?
A única coisa que hoje faria de diferente seria dizer o poema direto na performance, e não no teste de som.
Porque, a bem dizer, eles que se fodam.
Boa eleição a todos.







 

Cidadão
estás-te a cagar
se me chamo josé manuel barroso
presidente da comissão europeia
ou durão barroso
antigo primeiro-ministro
se mudei o nome quando mudei de profissão
porque os franceses não conseguem dizer "durão"
ou se fui revolucionário maoísta na juventude
e depois
eu não sou já esse rapaz e se o encontrasse
rir-me-ia dele
estás-te a cagar se mudei de nome
como um escritor artista ou stripper
e se mudei de pensamento
não sou mentiroso nem vendi os meus sonhos
sou um político profissional
sou josé manuel barroso
presidente da comissão europeia
e tu estás-te a cagar
num dos meus comícios
citou-se o início de um poema português
"sigamos o cherne!", disse-se
e toda a gente aplaudiu
no fim do poema ninguém sabia
o cherne é um "peixe traído"
quem o disse
não a minha mãe
não sou hamlet
quem o disse
não o meu filho
não sou césar
quem o disse
a minha mulher
ela chamou-me um peixe traído
não leão tigre ou cavalo
um peixe
traído
à tua frente
e ainda assim fui eleito
porquê
porque tu estás-te a cagar
prometi descer-te os impostos
e subi-os
disse que ia reformar
não reformei
mas abri os meus ares à CIA
com carga desconhecida para Guantamo Bay
nada de mais
uma vida tranquila
mas um dia
houve uma guerra para decidir
matar ou não matar, eis a questão
e era preciso uma ilha
porque o mar relaxa
onde querem ir Bermuda não
Bermuda soa a calção
venga Señor José Maria Aznar
please do come Sir Tony Blair
get the party goin' George W. Bush
venham aos belos Açores
é difícil lá chegar
e eu sei que gritos de manifestantes
são particularmente enervantes
enquanto se decide uma chacina
venham e comam cherne ao almoço
mas deixem-me aparecer na fotografia
como um empregado de restaurante
servindo comida aos adultos
deixem-me mostrar que também sei brincar
dêem-me uns minutos para discursar
não se vão arrepender
baterei os calcanhares e direi
as vezes que quiserem
eu vi as armas de destruição maciça
eu vi as armas de destruição maciça
eu vi as armas de destruição maciça

e tu sabes
15 meses depois a chamada chegou
durão tornou-se josé manuel
no more mister prime-minister
e tu sabes
que se entreguei portugal
à versão política de uma love doll
um homem com erecção vitalícia
foi porque isso é bom para hastear a bandeira
e tu sabes que hoje
sou o presidente da comissão europeia
e tudo bem
porque tu estás-te a cagar
e quando olho pela janela
o mundo fica escuro
e eu penso no passado
os milhões de estrelas mortas no céu
os corpos escuros debaixo do chão
e a corrente sem fim do mal esperneando no fundo da noite
faço xixi e vou para a caminha
porque devidamente tranquilamente seguramente
tu estás-te a cagar
e todos se vão esquecer.

Montale

Não me repitam que até um palito
uma migalha ou uma minúcia pode conter o todo.
Isso pensava eu quando o mundo existia,
mas o meu pensamento desvaria, agarra-se onde pode
para se dizer que não se extinguiu.

(L'Eufrate)

Nick Cave

Isto não foi um show de música. Isto foi uma liturgia. Cada canção era uma peça de teatro sobre duas personagens, o Bem e o Mal, e com dois atores: nós e ele.

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Morrer de pé ou viver ajoelhado?

Como imigrante no Brasil, há vários meses que reflito sobre o modo como esta eleição deveria influenciar a minha permanência aqui.
Depois dos resultados do primeiro turno, a resposta ficou clara.
A partir de amanhã, darei início ao processo de pedido de igualdade de direitos e deveres, que me permitirá votar e participar plenamente na vida política deste país.
Isso significa perder o direito de votar em Portugal, o que muito me custa.
Porém, considero que escolher o modo como vai ser gasto o dinheiro dos meus impostos e manter a cabeça erguida contra simpatizantes de tirania é mais importante ainda.
Imagino que alguns de vocês pensaram que estava anunciando a minha partida.
Também vejo muitos brasileiros, gracejando em desespero, que perguntam qual o melhor país para se exilar.
Mas Jair Bolsonaro, o círculo que o rodeia e os esbirros que o apoiam não me dão medo.
Imagino que a maioria dos seus eleitores votaram nele mais por acharem que ele seria o melhor candidato contra o PT do que por concordarem com as ideias do ex-deputado e que inúmeros nem saibam muito bem no que estavam votando.
Eu não perco a esperança nesse povo desesperançado. Porquê?
Nasci no sexto ano da democracia portuguesa.
Não tive que combater numa guerra.
Nunca fui denunciado ou vigiado pelas minhas opiniões.
As coisas que escrevo nunca tiveram que passar por censura, prévia ou posterior.
Ao longo dos meus 37 anos, 8 dos quais morando no Brasil, vi governos com que concordei ou não dando-se bem ou mal.
Mas eu nunca vi tamanha glorificação de políticos que se aproveitam das liberdades democráticas para apelar ao saudosismo por tempos obscuros, ao elogio de torturadores e ao insulto mais sujo.
Acima de tudo, nunca vi tamanha concentração de incompetência, falta de preparo para lidar com os problemas de um país e slogans vazios de conteúdo ascender à primeira linha do debate político.
Eu não tenho nenhum problema em ver políticos de quem não gosto subir aos lugares de poder (os amigos brasileiros poderão pesquisar "Cavaco Silva" para entenderem).
Mas há não gostar e não concordar, e depois há considerar que alguém não preenche as condições mínimas para ser um representante político numa sociedade democrática, quer pelas posições que defende, quer pela incapacidade de construir uma visão com pés e cabeça para o país que pretende governar.
Fazer frente a isto é um dever ético fundamental do cidadão, esteja ele no poder, na oposição, num cargo eleito ou, simplesmente, participando da vida pública do seu país.
Emiliano Zapata disse "prefiro morrer de pé a viver ajoelhado". É um lema pelo qual gosto de pautar a minha vida. Levantar a cabeça faz-nos chegar à luz. Baixá-la leva-nos às trevas.
E ninguém me vai fazer descer até as trevas.

Brasil

Os tempos andam estranhos. A alegria do deserto, por um lado, o de casa, o do coração. Do outro, o trópico em transe e em sangue que lentamente se vai esboroando. A mentira, cobra que escorrega por um chão sujo e coberto de mentiras. Avança, avança, e de onde aparece esta gente que quer que a cobra morda o mundo? A azia é grande, mas não vale a pena trocar o suco por cianeto. E, entretanto, outra multidão avança, com a cabeça erguida sem medo e o som do futuro nos passos. É  como se todos fôssemos Dâmocles.

Mudanças

A branquidão oculta uma pergunta: serás capaz? Não tenho respostas para ela. Às vezes, penso que paramos de crescer nalgum momento. Outras, que somos sempre diferentes.

Tenho certeza, sim, que não acredito que as pessoas nunca mudam. Elas mudam, sim. Mas, depois, voltam a mudar, uma e outra vez, podendo voltar a ser o que eram e deixando de o ser novamente.

E eu, mudei no quê? Fui capaz antes. Sê-lo-ei hoje?

Porque eu, português no Brasil, disse #elenão

Apesar de ainda não votar no Brasil, é aqui que eu pago os meus impostos. Por isso, preocupo-me com a forma como eles serão gastos e que tipo de governos eles estarão apoiando.

Sempre considerei Jair Bolsonaro um mal necessário: a personagem bocuda que fala frases de efeito machistas, racistas e fascistas e, assim, consegue o voto da extrema-direita, fazendo-a jogar pelas regras da democracia.

E não entendo haver quem acredite que ele é mais do que isso, mesmo depois de ele se ter candidatado à Presidência construindo a imagem de ser o homem de que o Brasil precisa.


Um parlamentar que aprova dois projetos de lei em 27 anos de congresso não demonstra ter a articulação necessária com o Legislativo para ser um presidente competente.

O candidato já disse que nunca foi corrupto porque era do "baixo claro". Ou seja, um político pouco importante, sem influência, que não valia a pena comprar. Mesmo assim, ao longo da sua carreira política, ele conseguiu trazer três dos seus filhos para a política e multiplicar o patrimônio familiar de forma incrivelmente suspeita. Contratou a sua atual mulher e, em um ano de serviço, quase triplicou o salário dela. Paga uma funcionária doméstica com dinheiro público. Tem um irmão que é funcionário-fantasma de uma assembleia legislativa e que é doador da sua campanha.

O candidato diz não saber nada de economia e deixar esses assuntos para o seu assessor e futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Mas Paulo Guedes é um liberal, e o seu chefe é um populista. A confusão entre os dois nas últimas semanas sobre a pauta absurda anunciada por Guedes não prenuncia um grande desenvolvimento para o país.

O seu programa de governo é uma mistura desconchavada de lunatismo e de autoritarismo, de obsessão com o exército e a polícia, de intervenção governamental na vida privada. Além disso, o candidato desconsidera as suas frases ofensivas do passado e do presente como piadas, exageros mal entendidos. As suas frases futuras serão legendadas para saber o que deve ser levado a sério?

Sem nem entrar no mérito das propostas que gosta de lançar com fala grossa e alta, Bolsonaro comprovadamente não tem a competência para as cumprir, a postura de quem deve ocupar o mais alto cargo de uma nação nem a idoneidade de quem, como ele diz, quer combater a corrupção no Brasil.

É por isso que eu não quero que ele gaste o dinheiro dos meus impostos.

E é por isso que eu disse #elenão.

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O que eu não entendo

Moro no Brasil há oito anos, mas ainda não voto aqui. Cansaço de burocracias, por um lado. Medo de perder esse vínculo com o meu país natal, por outro.

Isso não significa que não acompanho a política brasileira. Acompanho, e com muita atenção. Mas, ainda hoje, há muitas coisas que não entendo.

Não entendo, por exemplo, a atribuição da culpa pela corrupção brasileira a um ou outro, como se não estivesse claro que há uma mamata instalada desde a Ditadura e que o "presidencialismo de coalizão" democrático foi baseado numa rede suprapartidária de favores, ajudas mútuas e acordos obscuros com o meio empresarial.

Não entendo que não se perceba que o impeachment que expulsou Dilma foi articulado por grandes corruptos, já julgados e condenados, e que certamente eles não o fizeram porque ela facilitava a sua ladroagem.

Não entendo quem não se ligou ainda que a contestação ao PT só veio depois do grande ciclo das commodities, quando muita gente viu minguar o dinheiro que até então lhe vinha facilmente para o bolso.

Não entendo como se fala tão pouco que Dilma foi a primeira a demitir pessoas como Antonio Palocci , Wagner Rossi ou Carlos Lupi após aparecerem as primeiras suspeitas de corrupção sobre elas.

Não entendo quem acusa o PT de "querer transformar o Brasil numa Venezuela" e esquece que os dois pés que legitimaram a Lava Jato - a lei da Delação Premiada e o fortalecimento da Polícia Federal - foram feitos do próprio PT, que também sancionou a Lei da Ficha Limpa.

Não entendo quem ostenta descaso e ódio por quem é mais fraco, mais pobre, diferente, quem celebra essa ostentação e quem faz dela bandeira política.

Talvez haja coisas que não sejam mesmo para entender. A memória das pessoas é curta. E eu sou naturalmente otimista. Quando, há 3 anos, escrevi um artigo de opinião no Diário de Notícias sobre a situação do Brasil, ainda nem tinha começado o impeachment, e eu acreditei muito na possibilidade de ele não acontecer. Aconteceu, e a estabilidade que tanto se esperava só foi sendo adiada e adiada, ao ponto de as instituições e a paz social parecerem às vezes prestes a entrarem em derrocada.

Quando estava no poder, o PT nunca me pareceu um partido tão de esquerda assim, mas mais um bloco abrangente que partia do centro-esquerda, com uma grande preocupação social. O crescimento econômico durante os seus governos foi uma benção e uma maldição. Com mais dinheiro entrando, e sem quebrar a tradição da roubalheira, mais dinheiro era pedido, distribuído e entregue. Não quebrar essa tradição foi culpa do PT, sim, e também de todos os políticos que passaram pelo poder nos últimos 30 anos. Devemos julgar um réu pelos crimes que cometeu - não pelos dos outros.

Silêncio, movimento, o teu rosto

Os silêncios falam o suficiente. Os rostos que se viram para ti e pedem as tuas palavras também não se precisam abrir: as intenções deles são claras. Se dormiste pouco, essa é a hora de acordar.

Outra lição: se está difícil transportar a coisa para o lugar onde a queres, talvez seja melhor seres tu o que se mexe e ires até ela.

E outra: nenhuma pessoa ou browser de internet têm o direito de te obrigar a olhares para o teu próprio rosto.

A moral e o travelling de Kapò

Há já muito tempo que li a frase tutelar que Godard soltou num debate sobre Hiroshima Mon Amour, de Alain Resnais:


Um travelling é uma questão de moral.*

Pela mesma época, li a crítica devastadora de Jacques Rivette sobre um filme obscuro, curiosamente com a mesma atriz de Hiroshima Mon Amour:


Vejam em Kapò o plano em que [Emanuelle] Riva se suicida, atirando-se sobre o arame farpado electrificado: o homem que decide fazer, nesse momento, um travelling para reenquadrar o cadáver em contra-picado, tendo o cuidado de colocar a mão erguida num ângulo preciso do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo dos desprezos.*

Foi preciso ler Serge Daney e mais algumas coisas para entender que o que estava em causa era a espetacularização da guerra e do Holocausto. Um movimento de câmera - que também é um reajuste do olhar do espectador - não vale apenas pela sua beleza, mas pela sua adequação ao que mostra. Kapò é um filme sobre um campo de concentração: será moralmente adequado embelezar o horror para fazer um enquadramento bonito? Disse Daney sobre o plano de Kapò:


[O travelling] quer ser belo, [mas] não é - ou, mais claramente, ele é belo, mas não é correto.*

Daney, porém, admite uma coisa: ele nunca viu o filme.
Serei eu o único a nunca o ter esquecido, apesar de nunca o ter visto? É que eu nunca vi Kapò mas, ao mesmo tempo vi-o. Vi-o porque alguém - através das palavras - mo mostrou.

Não tenho nada contra Daney, mas há anos que vivo com a curiosidade de ver o famigerado plano. Hoje, graças às maravilhas da Internet, matei essa pendência. Aqui está, para todos verem também.

https://www.youtube.com/watch?v=pCud43zOqAM

Terror, campanha, amanhã

Disse há dias que o terror é teimosia. Mas, vendo Profondo Rosso, há algo mais. Nele trabalha-se a cor e fala-se do dentro e do fora, do perto e do longe, da música e do silêncio. E todos são teimosos. Mas será terror?

- Terror é esta campanha, que nos mata, nos trucida, nos tortura, nos condena para sempre.

Nem tenho tido muito tempo de prestar atenção. Gosto muito do meu trabalho. Ainda bem.

- O que importa é haver trabalho.

O que importa é haver vida. Nascemos pequenas bolhas neste mundo e, enquanto fazemos aniversários, teimamos em não ir.

- A vida será terror.

Então. Talvez não. E eu nunca disse que eles são uma e a mesma coisa. Qualquer drama é herói, objetivo, dificuldades; qualquer drama é teimosia. E eu não sei se slasher - ou até gore - é terror.

- Mas isso é muito subjetivo.

Sim.

- Devias mentir.

Será culpa da geração ou do Freddy Krueger? Preciso do sobrenatural ou da sua possibilidade. A violência incomoda. A distorção do corpo pode repugnar-me. Mas não me aterrorizam.

- E amanhã?

- Amanhã...

Renoir, disfarces, pessoas

Há muito tempo que não via Renoir, e quis recomeçar por Les Bas-Fonds (1936) porque, no My Voyage to Italy, o Scorsese fala que foi um dos filmes em que ele foi assistido por Visconti, então um mero aristocrata entediado e sem saber o que fazer da vida. A amiga Coco Chanel apresentou-o ao diretor francês que, então envolvido com a Frente Popular, terá sido uma influência fundamental para que o conde se aproximasse do Partido Comunista e dos dramas dos trabalhadores, o que é sempre bom para quem vai fundar o Neo-Realismo.

Visconti não é creditado neste filme, tal como não o é em outros filmes que fez com Renoir. Provavelmente, ele foi mais uma espécie de estagiário, assistente pessoal ou simples penetra. Ainda assim, Les Bas-Fonds é interessante para qualquer pessoa que se interesse por ele, porque junta os dois universos que tratou na sua obra: o aristocrático e o proletário, que aqui corresponde a um lumpenproletariat de ladrões, bêbedos e prostitutas. Todos extremamente simpáticos, por sinal.

Apesar de Les Bas-Fonds ser uma elegia de quem tem pouco, ele não é um filme panfletário, mas uma fábula moral e humanista, que mostra que, com posses a mais ou a menos, somos todos muito parecidos e igualmente sujeitos tanto à perdição quanto à redenção. Toda a gente quer dinheiro, ninguém quer pagar o que deve e, pelo meio, salva-se quem rejeita a aparência e vale por si mesmo.

Esta cena incrível é bem expressiva disso (pulem para os 2min do vídeo). O Barão, que perdeu tudo no jogo, encontra Pépel na sua casa disposto a roubá-lo. Este é o mesmo Barão que, mais tarde, dirá Sinto como se tivesse passado a vida toda trocando de disfarces. Reparem na sutil troca de roupas, sugerindo que ele partirá para o último disfarce ou, quem sabe, se despir de vez.



O encontro de Gabin e Jouvet é histórico e os momentos em que eles contracenam são - não há outra palavra - uma maravilha. Aqui temos dois atores bem diferentes, mas que claramente estão adorando trabalhar juntos e fazem a sua arte como quem brinca. Diz Pascal Merigeau em Jean Renoir: A Biography:

gabin-jouvet

As duas personagens fazem um caminho sincero, e por isso nos agradam tanto. A câmera de Renoir é a ideal para estas figuras. Os seus atores enchem o quadro. A câmera segue-os, precisa deles. Veja-se a cena em que Pépel termina tudo com a sua amante: a forma como o enquadramento é construído a partir dos atores, como as pessoas no fundo enchem o quadro e somam uma serenidade cotidiana ao que poderia ser um simples pastelão melodramático.



O modo como Gabin interpreta este ladrão barato é incrível. Pépel é pobre e criminoso, mas honrado, um ser de valores sólidos, que atravessa a vida e os seus acidentes com uma consciência muito pacífica daquilo que é certo e errado. Ou seja, uma figura de essência chaplinesca. Por isso, não me surpreendeu nada que o final de Les Bas-Fonds invoque do de Tempos Modernos, que Chaplin lançara no início desse mesmo ano de 1936.

Pior, melhor, abrigo

Nada pior do que uma estrada parada.


Nada melhor do que uma sala com amigos.

Nada pior do que chuva em frio.

Nada melhor do que jantar com amigos.

O amor está a um beijo de distância.

Tempo, baton, luz

Há anos que subo a rua do trabalho mais ou menos pela mesma hora, todos os dias. Muitas coisas mudaram. Restaurantes tornaram-se hamburguerias. Lugares mineiros tornaram-se lugares árabes. Um duo de irmãos sapateiros de Viseu veio e foi-se, mas não sem antes me ter feito um trabalho horrível num par de sapatos. O cabelo do manobrista do restaurante italiano está mais branco. O da pet sitter, há uns anos já que deixou de ser liso e cortado à chanel; hoje ela tem-no cacheado e preso num coque alto. Também já a vi passear mais cães ao mesmo tempo do que vejo agora. O problema será da crise ou da minha percepção corrompível?

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Uma noite, quando eu ainda morava em Lisboa, fui ver o Greil Marcus na Cinemateca. Marcus escreveu um livro chamado Lipstick Traces, (Marcas de Baton na tradução portuguesa da Frenesi) que, ao situar o punk numa tradição cultural e filosófica que inclui o Letrismo, o Dadaísmo e o Protestantismo Radical do século XVI, mudou muito a forma como eu pensava o rock e um monte de coisas.


Nessa noite, ele foi apresentar o Great Rock’n Roll Swindle, ou seja, o documentário do Julien Temple sobre os Sex Pistols (não o mais recente; o outro), mas Marcus também conversou sobre outras coisas e outros filmes.


A dada altura, ele disse algo como Se gostaram do The Warriors, deviam ver o Streets of Fire, o grande filme rock do Walter Hill. Por isso, fui vê-lo logo no dia seguinte.


Streets of Fire está muito longe de ser perfeito e, no entanto, é inesquecível. Até hoje, não me saíram da cabeça esta cena e esta música, meio anos 80 e meio memória difusa dos 50, meio synth pop e meio The Crickets. O plano com o ligeiro tilt sobre o público no 1min, o vermelho e o azul no 1min15 (tão marcados que, por um momento, parece que a Diane Lane foi filmada na frente de uma tela verde), a entrada dos motoqueiros aos 2min54: é tudo uma bela lição sobre o uso da luz em cinema.


E, além disso, ainda me traz a memória da noite em que fui ver o Greil Marcus falar na Cinemateca de Lisboa.


https://www.youtube.com/watch?v=arxD3Ro9mAk