Renoir, disfarces, pessoas

Há muito tempo que não via Renoir, e quis recomeçar por Les Bas-Fonds (1936) porque, no My Voyage to Italy, o Scorsese fala que foi um dos filmes em que ele foi assistido por Visconti, então um mero aristocrata entediado e sem saber o que fazer da vida. A amiga Coco Chanel apresentou-o ao diretor francês que, então envolvido com a Frente Popular, terá sido uma influência fundamental para que o conde se aproximasse do Partido Comunista e dos dramas dos trabalhadores, o que é sempre bom para quem vai fundar o Neo-Realismo.

Visconti não é creditado neste filme, tal como não o é em outros filmes que fez com Renoir. Provavelmente, ele foi mais uma espécie de estagiário, assistente pessoal ou simples penetra. Ainda assim, Les Bas-Fonds é interessante para qualquer pessoa que se interesse por ele, porque junta os dois universos que tratou na sua obra: o aristocrático e o proletário, que aqui corresponde a um lumpenproletariat de ladrões, bêbedos e prostitutas. Todos extremamente simpáticos, por sinal.

Apesar de Les Bas-Fonds ser uma elegia de quem tem pouco, ele não é um filme panfletário, mas uma fábula moral e humanista, que mostra que, com posses a mais ou a menos, somos todos muito parecidos e igualmente sujeitos tanto à perdição quanto à redenção. Toda a gente quer dinheiro, ninguém quer pagar o que deve e, pelo meio, salva-se quem rejeita a aparência e vale por si mesmo.

Esta cena incrível é bem expressiva disso (pulem para os 2min do vídeo). O Barão, que perdeu tudo no jogo, encontra Pépel na sua casa disposto a roubá-lo. Este é o mesmo Barão que, mais tarde, dirá Sinto como se tivesse passado a vida toda trocando de disfarces. Reparem na sutil troca de roupas, sugerindo que ele partirá para o último disfarce ou, quem sabe, se despir de vez.



O encontro de Gabin e Jouvet é histórico e os momentos em que eles contracenam são - não há outra palavra - uma maravilha. Aqui temos dois atores bem diferentes, mas que claramente estão adorando trabalhar juntos e fazem a sua arte como quem brinca. Diz Pascal Merigeau em Jean Renoir: A Biography:

gabin-jouvet

As duas personagens fazem um caminho sincero, e por isso nos agradam tanto. A câmera de Renoir é a ideal para estas figuras. Os seus atores enchem o quadro. A câmera segue-os, precisa deles. Veja-se a cena em que Pépel termina tudo com a sua amante: a forma como o enquadramento é construído a partir dos atores, como as pessoas no fundo enchem o quadro e somam uma serenidade cotidiana ao que poderia ser um simples pastelão melodramático.



O modo como Gabin interpreta este ladrão barato é incrível. Pépel é pobre e criminoso, mas honrado, um ser de valores sólidos, que atravessa a vida e os seus acidentes com uma consciência muito pacífica daquilo que é certo e errado. Ou seja, uma figura de essência chaplinesca. Por isso, não me surpreendeu nada que o final de Les Bas-Fonds invoque do de Tempos Modernos, que Chaplin lançara no início desse mesmo ano de 1936.

Pior, melhor, abrigo

Nada pior do que uma estrada parada.


Nada melhor do que uma sala com amigos.

Nada pior do que chuva em frio.

Nada melhor do que jantar com amigos.

O amor está a um beijo de distância.

Tempo, baton, luz

Há anos que subo a rua do trabalho mais ou menos pela mesma hora, todos os dias. Muitas coisas mudaram. Restaurantes tornaram-se hamburguerias. Lugares mineiros tornaram-se lugares árabes. Um duo de irmãos sapateiros de Viseu veio e foi-se, mas não sem antes me ter feito um trabalho horrível num par de sapatos. O cabelo do manobrista do restaurante italiano está mais branco. O da pet sitter, há uns anos já que deixou de ser liso e cortado à chanel; hoje ela tem-no cacheado e preso num coque alto. Também já a vi passear mais cães ao mesmo tempo do que vejo agora. O problema será da crise ou da minha percepção corrompível?

***


Uma noite, quando eu ainda morava em Lisboa, fui ver o Greil Marcus na Cinemateca. Marcus escreveu um livro chamado Lipstick Traces, (Marcas de Baton na tradução portuguesa da Frenesi) que, ao situar o punk numa tradição cultural e filosófica que inclui o Letrismo, o Dadaísmo e o Protestantismo Radical do século XVI, mudou muito a forma como eu pensava o rock e um monte de coisas.


Nessa noite, ele foi apresentar o Great Rock’n Roll Swindle, ou seja, o documentário do Julien Temple sobre os Sex Pistols (não o mais recente; o outro), mas Marcus também conversou sobre outras coisas e outros filmes.


A dada altura, ele disse algo como Se gostaram do The Warriors, deviam ver o Streets of Fire, o grande filme rock do Walter Hill. Por isso, fui vê-lo logo no dia seguinte.


Streets of Fire está muito longe de ser perfeito e, no entanto, é inesquecível. Até hoje, não me saíram da cabeça esta cena e esta música, meio anos 80 e meio memória difusa dos 50, meio synth pop e meio The Crickets. O plano com o ligeiro tilt sobre o público no 1min, o vermelho e o azul no 1min15 (tão marcados que, por um momento, parece que a Diane Lane foi filmada na frente de uma tela verde), a entrada dos motoqueiros aos 2min54: é tudo uma bela lição sobre o uso da luz em cinema.


E, além disso, ainda me traz a memória da noite em que fui ver o Greil Marcus falar na Cinemateca de Lisboa.


https://www.youtube.com/watch?v=arxD3Ro9mAk

Animais, tempo, azul, conta

Gosto de passar na frente de açougues e de peixarias. O umami toca-me a maçã de adão (ou será o hipotálamo?). Eu não see dead people, mas eu smell dead animals.


***


O passado é presente, mas, enquanto futuro, é próximo demais. Sou adepto de parar para respirar. O ar é distância, e eu sempre prefiro as coisas de longe.


***


O que vê cada um de nós quando vê uma cor? O azul que eu vejo é o mesmo que tu vês? Se a palavra vem antes, quantas palavras cabem dentro de uma cor? Nada ou o mundo inteiro?


O Blue come forth. O Blue arise. O Blue ascend. O Blue come in.

***


O que comprova que eu moro onde moro? Uma conta. Ó malvado e consumista quadrado em que o meu xis foi marcado.

Tempo, Bernardo, Bach

Os historiadores dizem que há séculos longos e séculos curtos. Também os dias podem ser longos e curtos. O meu dia de hoje começou na noite de ontem. Poder-se-ia dizer que uma coisa é o que existe no mundo e outra o que existe nas nossas mentes. Mas dizer 'dia' é pensar naquilo que o 'dia' é. Quando, em algum momento, deixamos de pensar?


***


O passado é também presente e futuro. Às vezes, o que parecia morto e enterrado apenas o parece. Para o mal, para o bem.


(já não falo sobre dias)


***


Não, 'mandar o Bernardo às compras' não é uma gíria para transar em Portugal. 'Afiambrar', sim. 'Pinocar', com certeza. 'Refustedo', admito que mais do que uma pessoa o diga. Bernardos e compras, não.


***


O período é enervante: decisões no horizonte, facadas no estômago e tanta coisa que deveria estar segura e não está. Para este tipo de momentos, recomendo Bach. Não florais, mas suítes. Esta não é nada obscura, acompanhou-me em vários alarmes matinais e proporcionou-me um momento cotidiano de grande beleza, quando começou a tocar enquanto eu corria no Minhocão e, de repente, era como se os telhados dos prédios flutuassem sobre mim e sobre o resto da cidade.


https://www.youtube.com/watch?v=eUtCC5VPwBs

Tempos Modernos, rolezinhos e o fim de Carlitos

Nos Tempos Modernos (Modern Times, 1936), os homens são gado.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=ZyHOi5lY16M?rel=0&w=560&h=315]

Nove anos antes, Metropolis já falara das lutas sociais. A Grande Depressão ainda não tinha acontecido, mas a Alemanha pós I Guerra Mundial já sabia um pouco de greves e revoltas dos trabalhadores. Arrisco que o filme de Lang tenha sido uma influência para Chaplin, até porque não tenho visto muito mais filmes dos anos 30 que incluam conversas de Skype. Porém, repare-se como, em Lang, só o patrão vê o empregado, num plano inferior; e, em Chaplin, ambos se veem, mas ele prefere a perspectiva do empregado olhando o patrão sobre ele.



[gallery ids="3364,3365" type="slideshow" link="none"]
Já tinha percebido em Luzes da Cidade, mas aqui é mais claro ainda: por resistir ao colocar som nos seus filmes, Chaplin parece ter sido um dos diretores que mais o pensou. Aqui, as falas vêm de gravações ou através de telas, nunca diretamente das bocas das personagens. Ou seja, ele coloca a palavra falada no cinema, a sua grande nêmesis, a assassina da sua pantomina, do lado das máquinas num filme em que as máquinas são fonte de todo o mal. Sutil, senhor Chaplin, mas direto.

O filme tem pedigree. Supostamente, Chaplin terá sido sensibilizado para a influência das máquinas na desumanização do trabalho pelo próprio Mahatma Ghandi. Pode-se argumentar se, ao associar a denúncia social ao seu melodrama habitual, ele não terá antecedido o neorrealismo sete anos antes do Ossessione de Visconti. Na verdade, a sua crítica às autoridades, representantes sérias da sociedade burguesa, acaba por encaixar na perfeição com o tema do filme. A mulher do pastor com gastrite tem algo do anticlericalismo de Buñuel. Carlitos nunca foi amigo da polícia, mas não me lembro de ele ter sido preso tantas vezes quanto aqui.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=KykfDXtZYmI?rel=0&w=560&h=315]

E o que falar da sequência da "invasão" noturna da loja de departamento, que tem ecos ainda hoje? Lembram dos rolezinhos, sobre os quais Eliane Brum escreveu tão bem?  Chaplin já está mostrando os excluídos da sociedade de consumo invadindo as catedrais desta. E brincar com o fogo desta maneira é como patinar ao lado do precipício.

 [youtube https://www.youtube.com/watch?v=vlMFQHbmtpg?rel=0&w=560&h=315]

Chaplin também achou aqui o lugar ideal para colocar algo que ele sabe fazer muito bem pelo menos desde The Gold Rush: filmar uma refeição. Primeiro, Carlitos é alimentado por uma máquina, e não consegue comer nada. Mais tarde, num belo contraponto, ele alimenta um trabalhador que, apesar de preso numa máquina, consegue assim almoçar. Ou seja, um homem sempre conseguirá ser alimentado por outro com boa vontade, apesar da máquina que o sufoca.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=n_1apYo6-Ow?rel=0&w=560&h=315]

Além de ensaio sobre as dificuldades da classe trabalhadora após a Depressão, Tempos Modernos mostra ter uma importância íntima muito grande para o autor. Primeiro, porque é uma espécie de carta de amor à sua recém-esposa da época, Paulette Godard, com cuja personagem Carlitos se alia e tem momentos dignos de jovem casal apaixonado.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=Ov--LxnP318?rel=0&w=560&h=315]

Depois, e apesar de tudo que se possa dizer sobre a personagem de O Grande Ditador, para Chaplin Carlitos acabou aqui. Dois momentos marcam esse fim: a primeira vez que ele fala - sem nada dizer, mas fazendo todo mundo rir...

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=0daS_SDCT_U?rel=0&w=560&h=315]

...e o final, que rima com o de O Circo, com a diferença que, desta vez, Carlitos vai acompanhado e sorrindo.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=J3aQkfIvx6k?rel=0&w=560&h=315]

Chaplin, com 47 anos, deixou Carlitos marchar em direção ao horizonte para, finalmente,  o nome do diretor não ser ofuscado pelo da personagem. Bela forma de ilustrar uma virada na obra.

Filmes, comida, dúvida, cura

Comparado com os giallo jovens e intensos do Argento, os de Mario Bava parecem adaptações classiconas de histórias da Agatha Christie. Mas que fotografia, que direção de arte! Um Visconti do terror.


Já Um Lugar Silencioso, nhec, parece uma adaptação caladinha de Jurassic Park.

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No restaurante, disse ao garçom que tentei uma adaptação caseira de uma sobremesa deles, mas troquei o requeijão de corte por queijo coalho e, em vez de uma chapa simples, coloquei manteiga para conseguir a casquinha crocante. Ele riu e soltou um "a gente vai inventando". Lembrei-me de Michael Pollan contar, no Cooked, que há quem opine que a humanidade não começou a cultivar cereais para comer, mas porque queria embebedar-se com cerveja. Associamos "civilização" com seres sábios e precavidos; talvez a devamos começar a associar com bêbedos epicuristas que foram inventando, sempre inventando.


***


Na rua, uma mulher contava uma história a outra. Aí ela falou 'Eu me mudei para essa casa e quem deu ela foi Deus!'. E eu falei 'Duvido!!!'.


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Gente demais para a exposição na Pinacoteca. Fomos então passear no parque, e tirei uma foto com o Garibaldi.


https://www.instagram.com/p/BnfmcMaAdCi/?taken-by=jvnande

Depois ouvi: If you slip going under/ Slip over my shoulder/ So just pull on your face / Just pull on your feet/ And let's hit opening time/ Down on Fascination Street.

Corrida, ave, Coltrane

A vida não pára. Ou talvez ela pare, mas nós não. Feriados eram dias de festejar santos. Os santos de amanhã festejam os dias de hoje?

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Entre dois momentos, liguei Hitchcock a um sonho e pensei no pássaro invisível que ataca as pessoas na rua.

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O feriado acaba e, no documentário, o John Coltrane diz Obrigado, Deus.

Matéria, História, Moby Dick

Lia Moby Dick. Melville falava sobre as antigas espécies de baleias. Pensei numa hipótese comprovável só por uma conta impossível: e se a vida, ou a matéria orgânica, for como a água e nenhuma se perder? E se o número de células vivas for o mesmo desde o início dos tempos, sendo elas só distribuídas e redistribuídas entre vegetais e animais?

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História é o conto da tensão. Interessam-lhe mais os Grandes Conflitos do que as Grandes Pazes. Enquanto os peixes do Padre António Vieira se perseguem, eles também avançam. Exceto um, que espera num consultório médico por um acompanhante obrigatório entretanto comido.
***

Também de Moby Dick: "é necessário dar-se conta (...) de que os próprios deuses nem sempre são felizes".

Meteorito, sala de roteiro, chuva

Parece que, no Museu, pouco mais se salvou do que o Meteorito do Bendegó.

https://www.instagram.com/p/BnRTb_YBpW6/?utm_source=ig_web_copy_link
Já não é vermelho e liso como o vi há seis anos. Está escuro, coberto de cinzas. Cão assustado no meio das ruínas. Mas penso que ele veio do espaço e que, há muito tempo, ele incandesceu, parou, esfriou. Hoje, assustado, continua. Cão, altivo, presente, testemunha de todo o Tempo.

***

Pouco se diz que salas de roteiro são abrigo na tempestade de horas e confusão. Talvez nem todas sejam.
***

Choveu hoje, mas não chegou para nos lavar.

(diário)

(diário)

Há uma frase que não me sai da cabeça e ainda não consegui escrevê-la. Falta de tempo ou tempo de faltas. Queria que ela saísse bem, na máquina de escrever, da qual não se perde nada. Talvez seja só falta de coragem. Sem fazer, nada se perde.

Fui ouvir o Archie Shepp no SESC Pompeia É a segunda pessoa que tocou com o John Coltrane que vi ao vivo (há seis anos vi o McCoy Tyner na República, num palco da Virada). Jazz à moda antiga, solos, comunhões, entregas, aquele que traduz uma certa forma de ser humano: estar-se acompanhado e sozinho; o esforço é de todos, mas o valor é de cada um. Isso tudo porque achei o pianista pouco inspirado. Talvez por ser o mais jovem ali, sentir-se-ia intimidado. Pena ser solista.

Em casa, apeteceu-me reouvir a Richard Pryor Addresses a Tearful Nation, do Joe Henry. Agora escuto Leonard Cohen.

Cada vez me apetece menos compartilhar coisas. Ou dizê-las. Aqui ninguém, ou quase ninguém, me escuta. Falo só para mim, um pensamento.

A frase está pronta. É tarde. Será hoje?

Black Sabbath, a comunhão e a teimosia

Como há tempos vi a Trilogia dos Bichos, do Dario Argento, e fiquei interessado nas raízes do Giallo e do terror italiano, aproveitei para ver o Black Sabbath do Mario Bava.

(E, sim, o nome da banda veio deste filme)

É uma antologia de 3 histórias. Achei a primeira, sobre uma mulher estalqueada por um homem que não pára de ligar (para o telefone fixo, ainda por cima), monótona. A segunda, sobre uma família acossada por vampiros e com Boris Karloff (que também apresenta o filme), uma imitação pouco inspirada dos filmes da Hammer. Já me estava a perder num loop da Wikipedia quando chegou a terceira história, "A Gota de Água".

Uma enfermeira é chamada para preparar o corpo de uma condessa recém-falecida que gostava de fazer sessões de espiritismo. Enquanto arruma o cadáver, rouba-lhe um anel de safira do dedo e leva-o para casa. Durante essa noite, a condessa morta - ou visões dela motivadas pelo remorso, não se sabe - vem atormentar a moça.

A morta, apesar de ter um visual inquietante, também é claramente tão postiça quanto o Chucky, o Brinquedo Assassino. No entanto, os momentos em que ela assombra a enfermeira são bem arrepiantes.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=Cdd_LxOGnkY?rel=0&w=560&h=315]

Gosto de terror barato, com uma mudança de plano brusca e um barulho alto repentino, e, por isso, aprecio muito o gênero"assombrações". Sempre pensei no porquê. Além do "bu!" visual, o fantasma não ameaça: a menos que seja um espectrinho teimoso, à Poltergeist, o máximo que ele consegue fazer é dar uns sustinhos nas pessoas. Foi então que me lembrei de uma fala no primeiro episódio d'O Reino, do Lars Von Trier:
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=ryw5vGQjOWM?rel=0&start=1776&w=560&h=315]


Eu afirmo que o medo de ser tocado, de se aproximar das pessoas, é o medo da morte. Porquê? Porque é o medo da comunhão. Sempre que vocês trocam de lugar no ônibus para evitar contato, sempre que evitam pôr o dedo na ferida da um paciente, isso é o medo da comunhão, dessa comunhão maior. Todos em que aqui trabalhamos aceitaram o seu lugar na comunhão.... Um cadáver não tem exigências.  Com generosidade sublime, ele entrega o seu corpo à ciência que pertence a todos nós.

As histórias de fantasma representam numa escala essencial um elemento que, percebi então, faz parte de qualquer história de terror: a teimosia. O stalker não deixa de importunar, o vampiro não deixa de querer morder, o demônio não sai do corpo. A assombração leva esta teimosia ao nível básico da vida e da morte: ela insiste em continuar no mundo dos vivos apesar de já não pertencer a ele.

Em qualquer variante do terror, a vítima reflete e devolve essa teimosia, insistindo num erro (não fugir do lugar mal assombrado, não chamar a polícia, não tirar umas férias, etc) até que não consiga mais sair da cilada que lhe é imposta. Num filme de terror, ninguém pensa em oferecer um café à presença incômoda que o visita; quem é vivo tem medo de dar-se, porque dar-se é ser igual aos mortos, e dar-se aos mortos ainda mais.

É por isso que Les Revenants não é um filme de terror. Quando os mortos aparecem, eles não são uma ameaça, porque eles não querem comer, tocar ou importunar ninguém; eles aparecem, e é tudo. As regras que definem o seu acolhimento são as regras do nosso mundo; não há uma insistência incompreensível e sobre-humana em invadir o espaço de alguém.

Quem diria, o terror não é mais do que emanações extremamente chatas.

Fica a reflexão, e fica também o delicioso final anticlimático de Bava, que homenageia os fazedores de cinema ao mesmo tempo que diz "não se assustem, que isto foi só um filme".
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=Bhs2XVou6Tc?rel=0&w=560&h=315]

O Oscar e os filmes simpáticos

Li há dias que pensam atribuir um Oscar a filmes populares para aumentar a popularidade do prêmio. Coisa de tontos. O Oscar nunca foi mais ou menos visto porque satisfazia o público televisivo. Nós viamo-lo para espiar figuras inalcançáveis e um mundo proibido aos comuns mortais. Isto inclui os mais cinéfilos, prontos a falar mal de tudo, e às vezes com razão (sinceramente, Gladiador?). Por uma noite, toda a gente via de relance o brilho das estrelas e sonhava.

A pouca popularidade do Oscar é um sinal dos tempos. Porque vou ficar acordado até tarde para ver quem todos os dias divulga a sua privacidade no Instagram?

Já que estamos nessa, quero propor uma categoria também: a dos filmes simpáticos. Ou melhor, a dos filmes que são atos de amor. Há meses, vi um chamado Call Me Lucky, dirigido por Bobcat Goldthwait, de quem muitos se lembrarão como o policial drogado da Loucademia de Polícia. Do início ao fim, o filme é um ato de amor ao seu mentor, o incrível Barry Crimmins. Está aqui, para quem quiser ver.


Outro, que acabei de rever, é um filme desequilibrado e bonito e encantador. Chama-se Che Strano Chiamarsi Federico, é o último que Ettore Scola dirigiu e aborda a sua relação de uma vida inteira com Federico Fellini. Dividido em duas partes que têm pouco a ver uma com a outra, pouco profundo, imperfeito e indulgente com as suas próprias imperfeições, vê-se, ainda assim, com encanto, porque percebe-se que é uma despedida e, ao mesmo tempo, uma homenagem querida de um amigo a outro.

O Atalante, espaço mental e duas masturbações

Já tinha visto O Atalante (L'Atalante, 1934) quando tinha uns 20 anos. Foi bom ter tido mais tempo agora - de vida, de espectador e de coisas pensadas.

Algo que não tinha presente quando o vi pela primeira vez é a ideia do filme enquanto espaço mental, uma ideia que me pareceu fortalecida principalmente após os surrealistas. Falei dela, sem desenvolver, quando escrevi sobre A Concha e o Clérigo, Zero de CondutaGanga Bruta.

Por "espaço mental", não me refiro ao modo como o espectador percepciona o espaço mostrado no filme, mas à forma como o cineasta trabalha o espaço e as personagens da sua história de forma a revelar algo não naturalístico; apesar de vermos formas e pessoas concretas, elas são instrumentos usados pelo autor para revelar uma psique, um sentimento ou uma tensão específica na forma como ele ou uma personagem reagem ao mundo. Estou partindo do raciocínio de Carrière e Bonitzer em Prática do Roteiro Cinematográfico, sintetizado nessa frase que qualquer pessoa entenderá:
No primeiro Rambo, tudo acontecia na cabeça da personagem; nos seguintes, tudo acontecia na cabeça do público.

Porém, estou indo além. Não existem apenas filmes que vemos acontecer na cabeça da personagem e os que vemos acontecer na cabeça do público, mas também os que vemos acontecer na cabeça de quem os fez. O autor deve, sim, deixar-se levar pelo filme, como Carrière e Bonitzer defendem, mas não só no sentido de que, enquanto criador, ele deve ser como um surfista levado pela onda/filme/história, e também no de que, enquanto narradoro filme o leva até ao espectador ao mostrar as suas escolhas sobre o ritmo dos movimentos dos atores, o andamento da edição, os diálogos e os sons, a escolha das situações representadas, a forma de enquadrar os espaços, a perspectiva sobre as cenas, a arquitetura dos cenários, as peculiaridades da direção de arte - em suma, todos os elementos cinemáticos (e não apenas os essencialmente cinemáticos, mas também o texto, a representação, a arte estática) que expressam uma ideia de como mostrar. 

Por isso, também estou indo além dos teóricos da Nouvelle Vague e afirmando o "autor" como não apenas o diretor, mas como a mente coletiva que faz o filme, soma das diferentes individualidades que o constroem, do roteirista ao projecionista, e da qual o diretor será o articulador e talvez principal, mas nunca exclusivo, decisor. Ao enunciar-se no filme, essa mente coletiva manifesta uma autoria coletiva ao construir coletivamente o narrador.

O Atalante fez-me pensar muito nisto, porque, desde o início, sentimos que ele é orientado pela presença de um olhar e de uma voz. Por trás das suas imagens, há alguém que nos quer falar da vida enquanto viagem, do casamento enquanto unidade e, mais profundamente, do espaço privado ao mesmo tempo confortável e apertado em contraste com o espaço público da liberdade, mas também do caos e da agressão.

Tudo começa com um jovem casal fazendo a lua de mel no barco em que o marido Jean é capitão. A esposa Juliette atravessa o convés ainda no seu vestido.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=FAQnONHntIk?rel=0&w=560&h=315]

Aqui, o navio é limite, como no filme brasileiro de 3 anos antes, mas o rio também é a vida, como em Apocalypse Now. Quando, após alguns dias de viagem, Juliette pergunta "Chegaremos em breve?", Jean responde "Aonde?". A sua viagem não tem destino, ou melhor, o destino é a própria viagem.

Dentro do barco, no espaço doméstico, as coisas são apertadas. Há uma luta constante entre os corpos e os espaços, uma tensão permanente entre o desejo de liberdade e a angústia que ela acarreta, assim se antecipando uns anos a O Existencialismo é um Humanismo de Sartre:
Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz.

Por isso é que a figura do imediato, Père Jules, é tão importante: velho, mas forte e viril, ele simboliza a pulsão incontrolável e primitiva da vida invadindo o espaço dos recém-casados. Não é à toa que, a certo ponto, eles não conseguem ter uma saída noturna por terem que esperá-lo; Père Jules é um ser livre, anfíbio, tanto da terra quanto do rio, que traz aquela para este. A cena no quarto, em que ele mostra o seu boneco para Juliette, se despe para lhe mostrar suas tatuagens e acaba tocando acordeão, prenuncia o que espera a moça inocente quando ela se aventurar sozinha na cidade.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=LihiCx8tDSM?rel=0&start=1788&w=560&h=315]

O que O Atalante nos mostra é, ao fim e ao cabo, pessoas tentando achar o seu caminho através da escuridão. Aquele plano da noiva atravessando o convés germina a construção de toda uma concepção do mundo. Portanto, o que aqui vemos não é exatamente o que vemos; o que acontece e onde acontece estão para servir a razão porque acontece.




Para terminar, duas curiosidades: O diretor de fotografia, Boris Kaufmann, era irmão de Dziga Vertov. E parece-me que ele, Jean Vigo ou ambos gostavam de pôr os atores a subir coisas.

[gallery ids="3370,3371" type="slideshow" link="none"]

Por fim, eu poderia dizer essa é a mais bela montagem paralela de duas masturbações que já vi. Só não digo porque não sei se alguma vez vi outra.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=gGu0WOC-7Cg?rel=0&w=560&h=315]

SPOILER: Terra sem Pão (Las Hurdes, Tierra sin Pan, 1933)

Para alguém que começou a obra destruindo toda e qualquer instituição social, é curioso como Buñuel dependeu tanto da generosidade de oportunos mecenas. Depois de os aristocratas franceses deixarem de financiar filmes de vanguarda para oferecer às esposas no aniversário, ele teve que esperar até que um amigo anarquista vencesse a loteria para produzir o seu filme seguinte.

Há algo fora do lugar em Terra sem Pão. Não Buñuel; ele continua igual a si mesmo. Só este plano de um bebê coberto de ouro durante uma festa religiosa já o prova. Um ser coberto por penduricalhos cujo valor não consegue entender é o símbolo perfeito da hipocrisia de uma Igreja Católica que condena os seus membros à corrupção moral desde a nascença.


A minha questão com o filme é que há muita coisa nele que não é crível. E isso faz-nos questionar todo o resto. Não acredito que a mulher com caxumba tenha 32 anos. Não acredito que a menina com uma simples garganta inflamada estivesse morta quando os cineastas voltaram à aldeia. Não acredito que todas as crianças da aldeia tenham sido adotadas para que as famílias pudessem receber uma pensão estatal.

[caption id="attachment_3369" align="alignnone" width="720"]
 
Segundo Buñuel, essa é a Miss Juventude de Las Hurdes.[/caption]É que, convenhamos: apesar de já sabermos desde L'Age d'Or que Buñuel não tem muito amor a bichos, se ele é capaz de fingir como acidentais as mortes de uma cabra e de um burro, é bem capaz de fingir muitas mais coisas!
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=-6kQhW-2W_I?rel=0&w=560&h=315]

Eu posso estar sendo injusto, pois ainda estávamos muito longe do cinéma vérité de Jean Rouch. Terra sem Pão é um documentário argumentativo, ou seja, é mais importante aquilo que Buñuel diz do que aquilo que ele mostra. Todos os defeitos humanos cabem à população de Las Hurdes: eles são pobres, doentes, mal alimentados, padecem de toda e qualquer desgraça possível e o mero fato de sobreviverem parece imbuído de uma teimosia miraculosa. Simpatizamos imediatamente com esta gente, seja ela real ou ficcional, e esse é o objetivo do autor: fazer-nos sentir compaixão pelo povo paupérrimo três anos antes do início da guerra civil espanhola. O epílogo da versão de 1936, primeiro ano da guerra, mostra bem os propósitos de Buñuel:
A miséria mostrada nesse filme tem remédio. Em outras regiões da Espanha, os montanheses, camponeses e operários conseguiram melhorar suas condições de vida, associando-se, ajudando-se mutuamente e fazendo reivindicações aos Poderes Públicos. Esta tendência que orientava o Povo para uma vida melhor orientou as últimas eleições e deu lugar ao nascimento de um governo de Frente Popular. A rebelião dos generais, ajudados por Hitler e Mussolini, iria restabelecer o privilégio dos grandes proprietários, mas Operários e Camponeses da Espanha vencerão Franco. Com a ajuda de antifascistas de todo o mundo, a calma, o trabalho e a felicidade ocuparão o lugar da guerra civil e farão desaparecer para sempre os lugares miseráveis que este filme mostrou.

Não deu muito certo, mas uma coisa é certa: Franco já se foi há muito tempo e o filme ainda é visto hoje em dia.

SPOILER: Ganga Bruta (1933)

O diretor de fotografia se chama Afrodísio, nome deveras interessante e cuja revitalização eu defendo.

Se em Limite a gente tinha um piano, aqui temos um órgão de igreja. Não sei porquê, mas o cinema brasileiro do início dos anos 30 adorava um teclado.

O filme foi gravado como mudo, e falas foram adicionadas depois para garantir a sua viabilidade comercial numa época em que o som era a novidade. Gostaria de saber, no entanto, qual foi o critério de seleção para decidir quais as falas merecedoras de gravação. Gostaria mesmo muito.
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Antes de ser recuperado pela geração do Cinema Novo, o filme era conhecido como "o abacaxi da Cinédia", que, fundada 3 anos antes, fora a primeira produtora de cinema brasileira. Foi caro para fazer e o pouco público que o viu não ficou muito agradado. Não entendo o porquê: afinal, o protagonista apenas assassina a própria esposa na noite de núpcias e é absolvido pelo tribunal porque a morte se deveu a ele se descobrir corno involuntário. É uma história que hoje teria certamente muita mais aceitação.

Existem três cinemas em Ganga Bruta: um cinema burguês, de salão, que filma as personagens em planos quietos, em interiores, a uma distância respeitável; um cinema futurista, de máquinas e construções, com travellings feitos a partir de trens e de guindastes, com planos picados em que os personagens viram pormenores no meio da paisagem industrial; e um cinema onírico, como nas cenas de jardim, com foco suave,  oscilações de uma câmera no ombro e que segue as personagens de perto, como se fossem reflexos de suas próprias psiques.

A influência freudiana de Humberto Mauro foi admitida. O filme é cheio de símbolos fálicos, como pedestais e coisas sendo erigidas. A ninfeta Sônia parece extremamente interessada em agradar o engenheiro assassino (aliás, todo mundo esqueceu que o homem é um assassino?!), apesar de estar envolvida com Décio, o colaborador próximo do homem. Então, ela própria está sendo adúltera, como se o filme dissesse que não dá para confiar em mulheres. Hoje em dia, parece piada, mas lembra-me algo que li uma vez sobre como o machismo nem sempre se expressou pelo binômio "homem com libido descontrolada e mulher que o constrange": há muito tempo atrás, numa galáxia distante, era o ventre feminino que deveria ser domado pelo homem como se fosse um animal selvagem. Sabemos que Freud começou a carreira tratando pacientes de histeria (do grego hystéra, ou seja, "útero"): a conexão é clara.

É um filme ótimo para analisar os estereótipos de gênero construídos no início do século 20. Os homens são seres brutos que constroem, destroem, bebem, lutam e são motores e decisores. As mulheres são seres delicados e submissos que seguem as suas vontades volúveis e sentimentos inconstantes. Homem-fogo e mulher-água: Ganga Bruta não se acanha nada para construir esse simbolismo.

O nosso engenheiro assassino envolve-se numa luta com os trabalhadores numa taberna. Vitorioso, sai dela com a camisa rasgada, como uma espécie de Rambo dos anos 30.

Ganga-rambo 
O tema de Ganga Bruta é o ciúme e o desejo ou, mais propriamente, o Intruso: intruso em lugares e intruso em relacionamentos. Isso misturado com símbolos fálicos freudianos e um engenheiro assassino, claro.
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O que seria do cinema se os atores não tivessem costas para fazer um fundido de vez em quando?
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Sempre tive a impressão que o brasileiro é muito melhor fazendo escândalo durante uma briga do que efetivamente brigando. Esse murro não me vai fazer mudar de opinião.
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Ganga Bruta é um filme dos anos 30, um pouco datado e fácil de ridicularizar. É notório que eu próprio não consegui resistir a esse exercício. Porém, ele está cheio de coisas interessantes e tem vários momentos brilhantes. Esta cena da vigília é incrível: a relação fotográfica entre as personagens e o espaço faz-nos entender que estamos em pleno espaço mental, conceito ao qual já aludi falando sobre Zero de Conduta e de que falarei melhor depois.

O filme termina com o casamento da ninfeta e do engenheiro assassino. Auguro um destino incrível para esse casal.

O que eu, homem, português e heterossexual, aprendi com Alan Ball

Lamento não andar com muita vontade de falar sobre as tropelias dos políticos no Brasil ou em Portugal. Não vejo nada de muito novo ou particularmente interessante. Além disso, ando a pensar bastante sobre a nova série do Alan Ball para a HBO, Here and Now.

A primeira razão é do mundo e do ofício. Six Feet Under (A Sete Palmos/Sete Palmos de Terra) foi a minha série preferida do início da Nova Era Dourada. Li todas as críticas contra Beleza Americana, mas continuo a achá-lo um filme lindo e uma história maravilhosamente contada.

Ver Alan Ball hoje é, de certa forma, ver o anti-Netflix. Here and Now não tem um gancho incrível como as séries da plataforma. "Um rapaz começa a alucinar com o número 11:11 e isso tem implicações para toda a sua família" não é uma premissa high-concept como "um político capaz de tudo para se tornar presidente dos EUA" ou "Really dark Amblin".

Porém, onde cada vez mais séries do Netflix falham - no desenvolvimento da premissa sonante - é onde Alan Ball brilha. As personagens são cheias de contradições, defeitos e, por isso, profundamente humanas. A família, núcleo da série, evolui ou regride como um grupo em que cada um cumpre uma função. Já não temos homens difíceis, temos pessoas difíceis. É difícil recomendar uma série de Alan Ball para um amigo, porque humano é um conceito difícil de recomendar - embora seja ótimo para assistir.

A segunda razão é minha. Here and Now lembra-me de assistir Six Feet Under com 20 e poucos anos e de pensar, por exemplo, que nunca vira uma série com personagens usando drogas sem ter moralismos atrelados. E lembra-me também que, assistindo-a, me tornei uma pessoa melhor.

Explico-me. Cresci numa vila pequena, num Portugal pequeno. Felizmente, fui educado bem o suficiente para reconhecer e matar na base a maioria dos preconceitos que vinham com a cultura em geral (obrigado, família; obrigado, professores). Por isso, nunca achei que afetos íntimos ou públicos fossem coisa a ser ditada por terceiros.

Ainda assim, raramente eu vira dois homens beijarem-se na rua. Não na minha terra, pouco no meu país. E, no íntimo, bem no íntimo, a imagem causava-me estranheza. Não reprovação ou incômodo, reparem, mas era algo que me suscitava reflexões silenciosas e condescendentes, ao estilo "que bom que estas pessoas se estão amando livremente, olha que gesto de coragem, muito bem!".

Eu não gostava disso, porque - eu sabia - enquanto não sentimos algo como banal, não conseguimos senti-lo por inteiro como normal. O normal tem que ser um pouco banal.

Six Feet Under tinha sexo. Muito sexo. Heterossexual, homossexual, entre adultos, jovens adultos, velhos adultos, dentro de relacionamentos, fora de relacionamentos, à missionário ou com fetiches. Como as drogas, o sexo não era apresentado com moralismo; era mostrado assim como ele é, como algo que acontece.

No primeiro episódio, ver David beijar Keith fazia-me pensar "que afirmação, que autor corajoso, muito bem!". No último, David apenas beijava Keith, e nada mais. Lembrei-me disso aqui no Brasil quando a novela mostrou o primeiro beijo gay e todo mundo aplaudiu (mesmo; escutei na minha vizinhança). Gostaria que chegasse o dia em que já se viram tantos que nem dá vontade de aplaudir.

Acho que, para assistir Alan Ball, é preciso gostar de pessoas. Eu gosto de pessoas. Graças a ele, pude gostar um pouco mais de mim também.

A Croácia é nazista?

Há uma coisa que me inquietou durante a Copa, que foi a insistência em dizer que os jogadores e a presidente croata eram fascistas e nazistas. Eu já estive na Croácia. Achei um lugar muito bonito e com pessoas muito simpáticas. Vi muitos sorvetes e nenhuma suástica. Depois de ver o seguinte vídeo, pesquisei o que queria ter pesquisado semanas atrás.

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PRÉVIAS
O lixo do passado caiu forte nalguns lugares.

Uma vez vi um documentário chamado What Our Fathers Did: A Nazi Legacy, sobre dois filhos de criminosos de guerra nazistas.

Há uma sequência que foi particularmente reveladora: um deles vai a uma festa de aldeia na Ucrânia onde o pessoal fazia uma reconstituição das Wafen SS. Tipo Meu Querido Mês de Agosto, mas com suásticas.

Sempre tinha pensado os nazistas como invasores. Foi a primeira vez que percebi que há gente que os associa a libertação e independência, principalmente quando comparados com os comunistas que vieram depois.

Imagino que isso, misturado com os nacionalismos exaltados com a guerra da Jugoslávia, deu uma bela duma salsada.

(aliás, se tiverem estômago, vejam A Serbian Film e curtam a metáfora sobre a insustentabilidade da vida após uma guerra civil)

Uma maravilha, a confusão que o lindo do século XX deixou pelos Balcãs e Leste Europeu, né?

SOBRE O VÍDEO E AS ACUSAÇÕES

O HDZ, partido da presidente, não é exatamente de extrema direita. É um partido de democracia cristã, tipo CDS-PP em Portugal ou - surpresa! - o Democracia Cristã no Brasil. Isso não é grande coisa, mas também não é lá essas coisas (coisas nazistas, bem entendido).

A Croácia é um regime parlamentarista, então, a presidente não terá tido grande responsabilidade no péssimo tratamento dos refugiados. Nem sei se ela ratifica as leis do governo. É verdade que este também é HDZ e que governa em aliança com partidos mais nacionalistas e radicais.

Porém, a Croácia não é de todo um país entregue à direita: a coligação do SPD (o maior partido da oposição, continuação da antiga Liga dos Comunistas e que estava no poder antes) perdeu por uns meros 3 pontos.

Curiosamente, o senhor do SPD, de esquerda, só perdeu porque foram vazados uns áudios dele numa reunião com veteranos de guerra a dizer que a Bósnia não é um país de verdade e que os sérvios são lamentáveis.

(repito: salsada, salsada)

Sobre a bandeira, eu até fui pesquisar quando isso começou a aparecer, mas, parafraseando o Trumpa, acho que é fake news.

A bandeira da Croácia nazista tinha sobreposto o "U" da Ustase.

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Essa da foto parece-me mais a que eles adotaram em 1990, imediatamente após a queda do comunismo e logo antes da independência, e era a bandeira da oposição ao comunismo no exílio. A bandeira atual é uma atualização dessa. É verdade que o brasão é semelhante, mas também é verdade que esse brasão já era croata vários séculos antes de Hitler ser bebê.

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A minha conclusão é que a Croácia é claramente um país com uma série de contradições agudas após guerras e totalitarismos vários, que deram em nacionalismos exacerbados e políticos que se aproveitam deles.

Nazista e fascista, não me parece.

SPOILER: Zero de Conduta (Zéro de conduite, 1933)

Vi este filme depois de ter revisto A Vida de Brian, o que me deixou pensando: o banimento de um filme significa que ele será considerado obra-prima décadas depois? Será esse o destino da peça recentemente banida em Pernambuco?

Zero de Conduta foi uma grande influência de Truffaut em Les quatre cents coups. Vejo-o integrando uma linhagem francesa exímia em filmar e mostrar os dilemas de crianças e adolescentes, onde incluo também NapoleãoEntre les mursÊtre et avoirLes Choristes, Un sac de billes. Filmar com crianças é difícil, mas está cada vez mais claro que os franceses criaram uma tradição e dominaram essa arte.

Jean Vigo era filho de um anarquista espanhol que morreu torturado e talvez isso explique o simbolismo que se monta desde muito cedo: os alunos são bagunceiros, mas espontâneos, solidários e bons, enquanto os professores e diretores já se deixaram corromper pela autoridade da vida adulta.

  •  Um dos alunos tem um ataque de sonambulismo no dormitório. Os outros são solidários com ele, como se eles soubessem quão precioso é manter um sonho no meio de uma realidade dura.

  • Há um adulto que está mais próximo dos alunos do que dos professores: o jovem monitor, que, como diria Capitão Nascimento, ainda não entrou "no sistema". Ele imita Carlitos, brinca, persegue uma paixão no meio de um passeio escolar, faz um desenho de Napoleão que vira uma personagem animada. Tudo é possível para quem não perde a imaginação, parece dizer Vigo.

  • O diretor da escola, a figura de maior autoridade, é um anão. Na sua primeira aparição, vemo-lo guardar o seu próprio chapéu sobre uma redoma de vidro. Ou seja, a autoridade é um adorno que se adquire e se guarda para ser exibido. Há lugar para a ostentação, mas não para o sentimento - por isso, mais tarde, o diretor censura alunos por serem amigos, dizendo que algo assim não pode ser.

  • Um professor gordo e asqueroso, que fica cheirando as coisas sem motivo, toca inapropriadamente nos alunos. Um deles, claramente farto de aguentar o velho, fala que ele é "um monte de merda". Estamos falando sobre abuso infantil em 1933 e mostrando como a consciência de que ele o é existe desde sempre. Nunca mais aceitem o argumento "antigamente era diferente" para nada.

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O que é essa câmera lenta, meu Deus? As penas voando como flocos de neve. Os alunos marchando como soldados em plena campanha militar. Que coisa bela.
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Durante a comemoração, eu penso em Fellini. Eu sei, eu sei: penso em Fellini muitas vezes. Mas é sério: só falta uma multidão ruidosa fazendo uma procissão para ser uma cena do mestre italiano. Repararam que a audiência é composta por bonecos? Este é só mais um dos momentos em que o filme nos diz que não estamos num espaço naturalístico ou concreto, mas mental, uma mistura assumida das memórias de Jean Vigo do colégio interno com as fantasias de como poderia ter sido. Depois dos filmes franceses desta época que já vi, parece-me claro que a influência surrealista e o seu tom onírico pesado foram marcantes, ainda que aqui o sonho venha filtrado pela memória.

No final, os alunos revoltosos são vitoriosos. Mas será que são mesmo? Enquanto eles escalam um telhado-montanha e festejam a sua vitória, os adultos observam-nos, protegidos no conforto de uma sala e com um certo orgulho paternalista. Parece que, a qualquer momento, eles podem sair para interromper a festa. Parece que eles pensam "oh, como nós também já fomos assim" e que o que espera os jovens do outro lado é transformar-se no que eles mais odeiam. No entanto, esse momento posterior já não entra no filme: ele é um recorte e a lembrança boa daquele dia em que tudo parecia poder ser diferente