Tempo, baton, luz

Há anos que subo a rua do trabalho mais ou menos pela mesma hora, todos os dias. Muitas coisas mudaram. Restaurantes tornaram-se hamburguerias. Lugares mineiros tornaram-se lugares árabes. Um duo de irmãos sapateiros de Viseu veio e foi-se, mas não sem antes me ter feito um trabalho horrível num par de sapatos. O cabelo do manobrista do restaurante italiano está mais branco. O da pet sitter, há uns anos já que deixou de ser liso e cortado à chanel; hoje ela tem-no cacheado e preso num coque alto. Também já a vi passear mais cães ao mesmo tempo do que vejo agora. O problema será da crise ou da minha percepção corrompível?

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Uma noite, quando eu ainda morava em Lisboa, fui ver o Greil Marcus na Cinemateca. Marcus escreveu um livro chamado Lipstick Traces, (Marcas de Baton na tradução portuguesa da Frenesi) que, ao situar o punk numa tradição cultural e filosófica que inclui o Letrismo, o Dadaísmo e o Protestantismo Radical do século XVI, mudou muito a forma como eu pensava o rock e um monte de coisas.


Nessa noite, ele foi apresentar o Great Rock’n Roll Swindle, ou seja, o documentário do Julien Temple sobre os Sex Pistols (não o mais recente; o outro), mas Marcus também conversou sobre outras coisas e outros filmes.


A dada altura, ele disse algo como Se gostaram do The Warriors, deviam ver o Streets of Fire, o grande filme rock do Walter Hill. Por isso, fui vê-lo logo no dia seguinte.


Streets of Fire está muito longe de ser perfeito e, no entanto, é inesquecível. Até hoje, não me saíram da cabeça esta cena e esta música, meio anos 80 e meio memória difusa dos 50, meio synth pop e meio The Crickets. O plano com o ligeiro tilt sobre o público no 1min, o vermelho e o azul no 1min15 (tão marcados que, por um momento, parece que a Diane Lane foi filmada na frente de uma tela verde), a entrada dos motoqueiros aos 2min54: é tudo uma bela lição sobre o uso da luz em cinema.


E, além disso, ainda me traz a memória da noite em que fui ver o Greil Marcus falar na Cinemateca de Lisboa.


https://www.youtube.com/watch?v=arxD3Ro9mAk

Animais, tempo, azul, conta

Gosto de passar na frente de açougues e de peixarias. O umami toca-me a maçã de adão (ou será o hipotálamo?). Eu não see dead people, mas eu smell dead animals.


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O passado é presente, mas, enquanto futuro, é próximo demais. Sou adepto de parar para respirar. O ar é distância, e eu sempre prefiro as coisas de longe.


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O que vê cada um de nós quando vê uma cor? O azul que eu vejo é o mesmo que tu vês? Se a palavra vem antes, quantas palavras cabem dentro de uma cor? Nada ou o mundo inteiro?


O Blue come forth. O Blue arise. O Blue ascend. O Blue come in.

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O que comprova que eu moro onde moro? Uma conta. Ó malvado e consumista quadrado em que o meu xis foi marcado.

Tempo, Bernardo, Bach

Os historiadores dizem que há séculos longos e séculos curtos. Também os dias podem ser longos e curtos. O meu dia de hoje começou na noite de ontem. Poder-se-ia dizer que uma coisa é o que existe no mundo e outra o que existe nas nossas mentes. Mas dizer 'dia' é pensar naquilo que o 'dia' é. Quando, em algum momento, deixamos de pensar?


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O passado é também presente e futuro. Às vezes, o que parecia morto e enterrado apenas o parece. Para o mal, para o bem.


(já não falo sobre dias)


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Não, 'mandar o Bernardo às compras' não é uma gíria para transar em Portugal. 'Afiambrar', sim. 'Pinocar', com certeza. 'Refustedo', admito que mais do que uma pessoa o diga. Bernardos e compras, não.


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O período é enervante: decisões no horizonte, facadas no estômago e tanta coisa que deveria estar segura e não está. Para este tipo de momentos, recomendo Bach. Não florais, mas suítes. Esta não é nada obscura, acompanhou-me em vários alarmes matinais e proporcionou-me um momento cotidiano de grande beleza, quando começou a tocar enquanto eu corria no Minhocão e, de repente, era como se os telhados dos prédios flutuassem sobre mim e sobre o resto da cidade.


https://www.youtube.com/watch?v=eUtCC5VPwBs

Tempos Modernos, rolezinhos e o fim de Carlitos

Nos Tempos Modernos (Modern Times, 1936), os homens são gado.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=ZyHOi5lY16M?rel=0&w=560&h=315]

Nove anos antes, Metropolis já falara das lutas sociais. A Grande Depressão ainda não tinha acontecido, mas a Alemanha pós I Guerra Mundial já sabia um pouco de greves e revoltas dos trabalhadores. Arrisco que o filme de Lang tenha sido uma influência para Chaplin, até porque não tenho visto muito mais filmes dos anos 30 que incluam conversas de Skype. Porém, repare-se como, em Lang, só o patrão vê o empregado, num plano inferior; e, em Chaplin, ambos se veem, mas ele prefere a perspectiva do empregado olhando o patrão sobre ele.



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Já tinha percebido em Luzes da Cidade, mas aqui é mais claro ainda: por resistir ao colocar som nos seus filmes, Chaplin parece ter sido um dos diretores que mais o pensou. Aqui, as falas vêm de gravações ou através de telas, nunca diretamente das bocas das personagens. Ou seja, ele coloca a palavra falada no cinema, a sua grande nêmesis, a assassina da sua pantomina, do lado das máquinas num filme em que as máquinas são fonte de todo o mal. Sutil, senhor Chaplin, mas direto.

O filme tem pedigree. Supostamente, Chaplin terá sido sensibilizado para a influência das máquinas na desumanização do trabalho pelo próprio Mahatma Ghandi. Pode-se argumentar se, ao associar a denúncia social ao seu melodrama habitual, ele não terá antecedido o neorrealismo sete anos antes do Ossessione de Visconti. Na verdade, a sua crítica às autoridades, representantes sérias da sociedade burguesa, acaba por encaixar na perfeição com o tema do filme. A mulher do pastor com gastrite tem algo do anticlericalismo de Buñuel. Carlitos nunca foi amigo da polícia, mas não me lembro de ele ter sido preso tantas vezes quanto aqui.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=KykfDXtZYmI?rel=0&w=560&h=315]

E o que falar da sequência da "invasão" noturna da loja de departamento, que tem ecos ainda hoje? Lembram dos rolezinhos, sobre os quais Eliane Brum escreveu tão bem?  Chaplin já está mostrando os excluídos da sociedade de consumo invadindo as catedrais desta. E brincar com o fogo desta maneira é como patinar ao lado do precipício.

 [youtube https://www.youtube.com/watch?v=vlMFQHbmtpg?rel=0&w=560&h=315]

Chaplin também achou aqui o lugar ideal para colocar algo que ele sabe fazer muito bem pelo menos desde The Gold Rush: filmar uma refeição. Primeiro, Carlitos é alimentado por uma máquina, e não consegue comer nada. Mais tarde, num belo contraponto, ele alimenta um trabalhador que, apesar de preso numa máquina, consegue assim almoçar. Ou seja, um homem sempre conseguirá ser alimentado por outro com boa vontade, apesar da máquina que o sufoca.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=n_1apYo6-Ow?rel=0&w=560&h=315]

Além de ensaio sobre as dificuldades da classe trabalhadora após a Depressão, Tempos Modernos mostra ter uma importância íntima muito grande para o autor. Primeiro, porque é uma espécie de carta de amor à sua recém-esposa da época, Paulette Godard, com cuja personagem Carlitos se alia e tem momentos dignos de jovem casal apaixonado.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=Ov--LxnP318?rel=0&w=560&h=315]

Depois, e apesar de tudo que se possa dizer sobre a personagem de O Grande Ditador, para Chaplin Carlitos acabou aqui. Dois momentos marcam esse fim: a primeira vez que ele fala - sem nada dizer, mas fazendo todo mundo rir...

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=0daS_SDCT_U?rel=0&w=560&h=315]

...e o final, que rima com o de O Circo, com a diferença que, desta vez, Carlitos vai acompanhado e sorrindo.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=J3aQkfIvx6k?rel=0&w=560&h=315]

Chaplin, com 47 anos, deixou Carlitos marchar em direção ao horizonte para, finalmente,  o nome do diretor não ser ofuscado pelo da personagem. Bela forma de ilustrar uma virada na obra.

Filmes, comida, dúvida, cura

Comparado com os giallo jovens e intensos do Argento, os de Mario Bava parecem adaptações classiconas de histórias da Agatha Christie. Mas que fotografia, que direção de arte! Um Visconti do terror.


Já Um Lugar Silencioso, nhec, parece uma adaptação caladinha de Jurassic Park.

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No restaurante, disse ao garçom que tentei uma adaptação caseira de uma sobremesa deles, mas troquei o requeijão de corte por queijo coalho e, em vez de uma chapa simples, coloquei manteiga para conseguir a casquinha crocante. Ele riu e soltou um "a gente vai inventando". Lembrei-me de Michael Pollan contar, no Cooked, que há quem opine que a humanidade não começou a cultivar cereais para comer, mas porque queria embebedar-se com cerveja. Associamos "civilização" com seres sábios e precavidos; talvez a devamos começar a associar com bêbedos epicuristas que foram inventando, sempre inventando.


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Na rua, uma mulher contava uma história a outra. Aí ela falou 'Eu me mudei para essa casa e quem deu ela foi Deus!'. E eu falei 'Duvido!!!'.


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Gente demais para a exposição na Pinacoteca. Fomos então passear no parque, e tirei uma foto com o Garibaldi.


https://www.instagram.com/p/BnfmcMaAdCi/?taken-by=jvnande

Depois ouvi: If you slip going under/ Slip over my shoulder/ So just pull on your face / Just pull on your feet/ And let's hit opening time/ Down on Fascination Street.

Corrida, ave, Coltrane

A vida não pára. Ou talvez ela pare, mas nós não. Feriados eram dias de festejar santos. Os santos de amanhã festejam os dias de hoje?

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Entre dois momentos, liguei Hitchcock a um sonho e pensei no pássaro invisível que ataca as pessoas na rua.

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O feriado acaba e, no documentário, o John Coltrane diz Obrigado, Deus.

Matéria, História, Moby Dick

Lia Moby Dick. Melville falava sobre as antigas espécies de baleias. Pensei numa hipótese comprovável só por uma conta impossível: e se a vida, ou a matéria orgânica, for como a água e nenhuma se perder? E se o número de células vivas for o mesmo desde o início dos tempos, sendo elas só distribuídas e redistribuídas entre vegetais e animais?

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História é o conto da tensão. Interessam-lhe mais os Grandes Conflitos do que as Grandes Pazes. Enquanto os peixes do Padre António Vieira se perseguem, eles também avançam. Exceto um, que espera num consultório médico por um acompanhante obrigatório entretanto comido.
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Também de Moby Dick: "é necessário dar-se conta (...) de que os próprios deuses nem sempre são felizes".

Meteorito, sala de roteiro, chuva

Parece que, no Museu, pouco mais se salvou do que o Meteorito do Bendegó.

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Já não é vermelho e liso como o vi há seis anos. Está escuro, coberto de cinzas. Cão assustado no meio das ruínas. Mas penso que ele veio do espaço e que, há muito tempo, ele incandesceu, parou, esfriou. Hoje, assustado, continua. Cão, altivo, presente, testemunha de todo o Tempo.

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Pouco se diz que salas de roteiro são abrigo na tempestade de horas e confusão. Talvez nem todas sejam.
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Choveu hoje, mas não chegou para nos lavar.

(diário)

(diário)

Há uma frase que não me sai da cabeça e ainda não consegui escrevê-la. Falta de tempo ou tempo de faltas. Queria que ela saísse bem, na máquina de escrever, da qual não se perde nada. Talvez seja só falta de coragem. Sem fazer, nada se perde.

Fui ouvir o Archie Shepp no SESC Pompeia É a segunda pessoa que tocou com o John Coltrane que vi ao vivo (há seis anos vi o McCoy Tyner na República, num palco da Virada). Jazz à moda antiga, solos, comunhões, entregas, aquele que traduz uma certa forma de ser humano: estar-se acompanhado e sozinho; o esforço é de todos, mas o valor é de cada um. Isso tudo porque achei o pianista pouco inspirado. Talvez por ser o mais jovem ali, sentir-se-ia intimidado. Pena ser solista.

Em casa, apeteceu-me reouvir a Richard Pryor Addresses a Tearful Nation, do Joe Henry. Agora escuto Leonard Cohen.

Cada vez me apetece menos compartilhar coisas. Ou dizê-las. Aqui ninguém, ou quase ninguém, me escuta. Falo só para mim, um pensamento.

A frase está pronta. É tarde. Será hoje?