SPOILER: O Vampiro (Vampyr, 1932)

Carl T. Dreyer já provara que sabia fazer imagens com força, mas em 1932 o jogo tinha mudado. Para os diretores desta época, considerar o som parece ter sido tão melindroso quanto considerar a televisão 30 anos depois ou a internet hoje em dia. Vampyr até pode ter som, mas os intertítulos frequentes e a forma de filmar fazem-nos pensar que estamos vendo algo que, formalmente, está ainda no reino do mudo.

Dá para entender o porquê. A dublagem ainda não era uma solução tecnicamente perfeita, e os atores tinham que dizer as suas falas em duas ou três línguas diferentes para encaixar direitinho as vozes que vinham depois. Aqui, Dreier filmou em francês, inglês e alemão - e talvez por isso reduziu ao mínimo o número de diálogos.

Não sei se Dreyer confiou que o público já conhecesse os contos de Sheridan Le Fanu aqui adaptados ou se nem quis se incomodar com isso, mas a verdade é que este filme é muito menos uma história e muito mais uma coleção de inquietações visuais assentes no ritmo, tanto da edição quanto do movimento.

O ator protagonista é creditado como Julian West. Na verdade, ele é Nicolas de Gunzburg, um riquinho de ascendência russa, brasileira, portuguesa e polonesa. Na época, era moda entre os aristocratas financiar curtas de diretores de vanguarda (já tivemos aqui outro exemplo, no profundamente antiaristocrata L'Age d'Or). No seu entendimento particular de lei Rouanet, Gunzburg, que queria muito convencer a família de sua vocação para representar, prometeu financiamento a Dreyer com a condição de ser o ator principal do filme. O diretor acedeu e soube aproveitar as capacidades limitadas de Gunzburg para o papel de um homem que não faz muito mais além de observar coisas estranhas com uma expressão nula.

Estamos vendo aqui o início do cinema de terror (não por acaso, a estreia do filme foi atrasada para não competir com o Dracula de Tod Browning e o Frankenstein de James Whale, ambos de 1931). O suspense ainda não é bem construído: momentos que esperaríamos lentos são rápidos demais, como uma porta misteriosa se abrindo; e momentos que esperaríamos rápidos, como a leitura de um texto escrito, são lentos demais.  Mas vamoquevamo. A direção e o ritmo são hipnóticos, lembrando o paralelismo entre cinema e hipnose que Lars von Trier (admirador confesso de Dreyer, que até dirigiu um roteiro que o este deixou incompleto) fez nos seus primeiros filmes. Os planos são cheios de sombra, movimentos sinuosos, imagens misteriosas, e fascinam tanto que até nos permitem ultrapassar a falta de empatia com o protagonista. Vejam esse trabalho com a sombra, por exemplo. Boa sorte para os filmes da Marvel em fazer em alguma coisa que deixe você mais inquieto.
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A primeira vez que vemos alguém sorrir é quando uma mulher se torna vampira na nossa frente, como se o sorriso fosse coisa do demônio e a melancolia e a tristeza a condição natural do ser humano. Um sorriso na mão de Dreyer é tão ou mais inquietante do que uma dentadura na mão de Coppola.
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Mais do que um filme de terror, Vampyr parece uma exploração da psique de um homem que perdeu a noção de limites entre a realidade e imaginário, uma espécie de Dom Quixote das trevas. Dreyer constrói o filme como um mistério surrealista, onde o protagonista anda por um mundo desconhecido e ninguém questiona a sua presença. Mas, quando um livro relata que os vampiros andam por um reino de sombras, percebemos que é precisamente isso o que ele está fazendo. E, então, apercebo-me: é também isso que eu, espectador, estou fazendo. Então, o filme é a fantasia tanto do protagonista quanto a minha; e somos, tanto eu quanto ele, vampiros dessa fantasia que observamos.

Eu disse "fantasia"? Leiam "pesadelo".

SPOILER: Limite (1931)

A princípio, temia falar sobre cinema brasileiro, porque isso significa admitir o meu desconhecimento de grande parte da cinematografia do meio onde trabalho. Mudei de ideias. Primeiro, porque esta é uma viagem de conhecimento - que não deve ser confundido com o autoconhecimento da moda; esse é circunscrito a nós mesmos, o que me parece um campo bastante limitado. Segundo, porque imagino que muito boa gente (excluindo os meus bons amigos bacharéis da ECA-USP) também não viu as obras de que vou falar aqui.

A pergunta surgiu-me: devo assistir estes filmes antigos como um espectador da época em que eles saíram ou como eu, JV Nande, vivo décadas depois e com uma cultura visual completamente diferente? A primeira hipótese seria impossível para mim. A segunda, injusta para os filmes. Então, tento fazer as duas coisas: contextualizá-los no tempo do mundo e da arte, sim, mas sendo fiel ao meu gosto. Afinal, sou cinéfilo, não professor.

Li um pouco sobre Limite antes de o ver, mas expressões como "proto-imagem", "estado amorfo fluido" ou "cérebro-câmera" não me entusiasmaram por aí além.

À primeira vista, ele me lembra muito A Concha e o Clérigo: plástico, cheio de fundidos, enquadramentos fora do comum, o espectador sendo convidado a construir o significado do filme. O ritmo é lento, bem mais lento do que o dos filmes mudos sobre que escrevi até agora. Nota-se a sua intenção de fazer arte pela arte e os poucos recursos com que foi filmado. Talvez o título seja uma piada com o tamanho da produção.

Em todos os sentidos, este é um filme experimental, porque faz experiências com a linguagem cinematográfica, mas também porque Mário Peixoto experimenta o cinema. O fotógrafo Edgar Brasil parece livre para fazer o que quer, e os seus travellings e planos picados e enviesados lembram o que, menos de uma década depois, Orson Welles, suposto admirador, faria no cinema americano. Porém, às vezes, parece que o filme nos diz "olha eu filmando isso aqui, que legal!", ou porque nos quer fazer ter a noção da câmera ou porque o câmera padecia de TDAH.  Veja-se este plano, por exemplo, a que gosto de chamar "mas que linda florzinha!".
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Limite tem 87 anos, a mesma idade de Fernando Henrique Cardoso e de Paulo Maluf. Todas as pessoas que nele aparecem e que o fizeram estão mortas.  Porém, digam lá se esta rapaziada não parece os vosso amigos hipsters com um belo filtro Moon por cima.

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O cinema é uma arte de fantasmas. Ou, como melhor diria André Bazin:
Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagóricas, quase ilegíveis, já deixaram de ser tradicionais retratos de família para se tornarem inquietante presença de vidas paralisadas em suas durações, libertas de seus destinos, não pelo sortilégio da arte, mas em virtude de uma mecânica impassível; pois a fotografia não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o subtrai à sua própria corrupção.

Pergunto-me se, surgido em plena ditadura Vargas, Limite não terá um viés político. De qualquer forma, o sentimento que nele domina parece-me endêmico no Brasil: neste país gigante, as pessoas sentem-se presas e sem escolhas perante um destino do qual não conseguem escapar. Será que os amigos de Mário Peixoto entenderam isso na primeira sessão do filme? Ou será que saíram sem terem entendido absolutamente nada e falando para o diretor Nossa, muito bom, que filme maravilhoso você fez?

Se há um defeito que se poderá apontar a Limite é que ele é visualmente repetitivo. Um nadica de nada, assim. Não precisamos ver o mesmo plano duas, três, quatro vezes para entender o que ele quer dizer. Não precisamos de tantos cactos para espicaçar nossa curiosidade. Não precisamos de planos intermináveis das ondas do mar para sacar que está sendo tratada a transitoriedade do humano em contraste com a violência perene da Natureza (quem falar que Mangaratiba, onde o filme foi gravado, é uma das suas personagens principais não vai ganhar o prêmio de Frase Mais Original e/ou Menos Óbvia do Ano).  Limite é como um amigo teimoso que suportamos para ouvir a novidade interessante que ele tem para nos contar.

Não sei se é devido à Depressão americana ou ao avanço dos fascismos, mas sinto nas obras deste período um pessimismo enorme. Em Limite, uma mulher que foge da prisão e uma esposa que abandona o marido abusador ganham o prêmio de ficarem presas num barco com um homem cuja amante morreu. Já ouvi histórias mais alegres. Aliás, um dos livros que mais me fez rir na vida chama-se Três Homens e Uma Canoa.

Dá para entender a importância de Limite, uma obra tão sensível, pessoal e delicada, para o cinema brasileiro, principalmente pelos caminhos que abriu. Glauber Rocha e o Cinema Novo não teriam sido o que foram sem ele. Faz todo o sentido que a Abraccine o tenha colocado em primeiro lugar na sua lista dos 100 melhores filmes brasileiros.

Ainda assim, gostava que alguém me dissesse que, na época em que foi gravado, já havia protetor solar, porque, se não havia, coitadinhos desses atores...

SPOILER: Luzes da Cidade (City Lights, 1931)

O filme é definido na abertura como um romance cômico em pantomina. Chaplin, pantomineiro incorrigível, resistiu por uns 10 anos a integrar diálogos falados nos seus filmes. Havia um lado de sobrevivência: a figura de Carlitos/Charlot fez dele uma estrela global, uma das primeiras, precisamente porque Carlitos não falava uma língua específica. A sua magia é que ele poderia ser qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo.

Ora, isto é sabido e repetido. O que não é tão sabido e repetido é que, ainda que resistisse a usar diálogos, Chaplin usou muito bem os recursos do som! A trilha, pela primeira vez escrita por ele e pensada para não ser tocada ao vivo por uma orquestra, acompanha as inflexões e movimentos dos atores. Se alguém bate num piano em cena, o som de um piano sendo batido entra na trilha. Mais do que alguém que nega um recurso, parece que vemos um perfeccionista aprendendo a usá-lo. Veja-se a cena em que ele engole o apito para entender.
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Neste filme, Chaplin já não faz de si o centro de todos os enquadramentos ou de todas as cenas. 10 anos antes, em The Kid, ele olhava diretamente para a câmera para enfatizar piadas; agora, ele é cada vez menos performer e cada vez mais diretor/autor. Três sequências me chamam a atenção.

O filme abre na inauguração de uma estátua pelas autoridades da cidade. Quando elas dão os seus discursos, as suas vozes são cornetas desafinadas (a professora dos Peanuts claramente foi inspirada neles) e, quando levantam o lençol da estátua, descobrem que Carlitos/Charlot está lá dormindo. Enquanto ele tenta descer da estátua, a sua atrapalhação quebra ainda mais a solenidade e a convenção do momento. Eu diria que é uma das cenas mais subversivas que alguma vez se filmou.

A mise-en-scène desta sequência no restaurante é - não há outra palavra - perfeita.

Já ouvi dizer muito que Chaplin é um bailarino. É verdade, mas só meia verdade: ele é um diretor bailarino, porque a dança é dele com a câmera. A famosa cena do ringue de boxe é um claro exemplo disso.

Começa-se a notar a curva descendente da personagem de Carlitos/Charlot. Quanto mais poderia render esta figura, inspirada nos bêbedos e no vaudeville londrinos da virada do século XIX para o XX, quando o seu cenário da cidade americana estava em plena transformação e a Grande Depressão criava todo um novo e cruel tipo de miséria? Por enquanto, ele retém o encanto de quem parece, simultaneamente, estrangeiro de país e estrangeiro de tempo.

Mascarada sob uma história romântica, Chaplin dá-nos uma moral que, embora cheia de sentimento, é, na verdade, bem pesada: se o valor de um homem é medido pelo bem que ele faz aos outros, mas a lei, a justiça e os poderes não querem nem saber disso, porque devemos então considerar esses poderes?

Ainda assim, é a terceira vez que chorei no final deste filme - mesmo número de vezes que o vi.

SPOILER: O Anjo Azul (Der Blaue Engel, 1930)

Confesso que estava pronto para não gostar de O Anjo Azul. Sempre pensei que o filme fosse pouco mais do que um veículo meio bobo para lançar Dietrich. Além disso, acho que apenas vira um filme de Sternberg, num momento particularmente ensonado de um workshop. Ou será que era Lubitsch? Bem, já entenderam.

O ator principal chama-se Emil Jannings e, ao que parece, foi o primeiro vencedor de um Oscar de representação (se bem que há quem diga que ele perdeu a votação para um cão). A carreira do homem tinha esfriado e ele esperava que O Anjo Azul fosse o seu regresso glorioso. Talvez por isso, Jannings não gostava de Dietrich, que lhe roubou o filme. Acho injusto dizer isto, pois o ator está ótimo. Também dizem que Dietrich roubou à mulher de Sternberg os afetos do diretor, mas isto parece-me publicidade do estúdio para atrelarem a imagem de femme fatale à atriz.


Depois da série de filmes mudos que vi para este caderno, com edições e fotografia primorosas, O Anjo Azul começa parecendo extremamente careta. Apesar de uns telhados tortos bem expressionistas - afinal, isto é a UFA - a primeira cena na casa do Professor, em plano geral,  com a empregada descrevendo o que vê ("livros empoeirados, bitucas de cigarros...") lembrou-me os enquadramentos frontais dos primeiros filmes mudos e fez-me gritar aquela primeira regra que qualquer roteirista aprende: "show, don't tell!". O que eu não sabia era que Sternberg, cineasta criado na América que foi à Europa gravar este filme durante um período de trabalho tépido, está nos segredando que o seu estilo serve para mostrar as personagens e os atores, não para se mostrar. O trabalho será bem sucedido.

Há alunos rebeldes e hormonais; uma lição sobre Hamlet logo no início; e um submisso assistente de professor chamado Angst. Tudo isto fez-me pensar que talvez o filme não fosse o divertimento musical tontinho que esperava.

O Anjo Azul é um cabaré/ semiprostíbulo onde Dietrich/Lola Lola é uma estrela em pelo menos uma das áreas. O professor descobre que os seus alunos passam a noite lá e decide ir espreitar o show de Lola. Afinal, um homem não é de ferro, e o pássaro dele tinha morrido nesse dia, então é preciso afogar as mágoas. Mas, chegado lá, o professor prefere perseguir os seus alunos à bengalada. Então, professor?!

Lembrei-me de uma frase de Alberto Seixas Santos, um dos fundadores do cinema novo português: "o cinema é mulheres bonitas fazendo coisas". Pelo menos aqui a frase faz sentido. Enquanto Lola se troca, o professor espreita-a. O aluno, escondido, espreita-a. Sternberg, fascinado por Dietrich, espreita-a. E o público, claro, espreita-a. Isto revela a chave para entender este filme: um jogo voyeurístico e fetichista e um vaivém entre o que é espetáculo/palco/público e o que é privado/íntimo.

Entendam que, sim, Dietrich claramente está aqui para ser olhada. Porém, a sua personagem Lola sabe do seu poder e usa-o em seu favor. Dona de si mesma do início até ao fim, ela é sujeito sexual, não um objeto.

As personagens são tipos saídos do teatro popular: o professor, a cantora, o mágico, o palhaço, os alunos, o policial. Mas o professor é a figura com mais dimensões. A morte do seu pássaro marca a morte de sua antiga vida. O seu idílio com Lola acaba com a sua caretice; o homem do intelecto deixa-se tomar pelo sentimento. Mas também o faz perder o respeito de seus alunos e colegas e a sua posição na escola. O plano em que ele percebe que seu futuro é diferente do que se adivinhava, em que a câmera recua para mostrar as cadeiras desertas de alunos, é revelador: escolhendo a sua liberdade íntima, perdeu a sua posição pública.

A momentos, vai aparecendo a figura silenciosa e lazarenta de um palhaço. Ninguém fala com ele, ele não fala com ninguém; é invisível, insignificante, quase fantasmagórico. Pensei talvez represente o público, ou Deus, ou um anjo, ou o destino. Mas estava enganado. O professor casa com a cantora e perde tudo. Rapidamente, começa a ganhar a vida vendendo os postais dela, os mesmo que, no início do filme, ele pegara os seus alunos vendo. Passa as meias dela, veste-a, ajuda-a com a chapinha do cabelo. Numa sequência brilhante, Sternberg mostra como o tempo passa, com as folhas de calendário ardendo; e, no plano seguinte, vemos o professor transformado num novo palhaço. Será que o palhaço anterior era um antigo marido ou amante de Lola? Não é explicado (o primeiro palhaço some de um momento para o outro), mas também não precisa ser explicado, porque está claro: este filme não é convencional ou careta; ele é, sim, uma bela obra sobre o fetiche de dominação e submissão.

A trupe volta à cidade natal do professor e ao Anjo Azul. Entretanto, Lola enrola-se com um Homem Forte e leva-o para o seu quarto. O professor palhaço recusa-se a atuar, mas basta uma ordem dela para o fazer mudar de ideias. Porque não deveria, afinal? Aquela humilhação é tudo o que lhe resta.

O professor palhaço sobe ao palco e todos riem dele: os seus antigos alunos, colegas, vizinhos. Louco, ele abandona o palco, ataca Lola, é imobilizado. Desfigurado, cambaleante, ele sai do teatro. Ainda vê Lola, que aparece pela primeira vez vestida de preto, como uma viúva. O professor vai até à escola, entra na sala onde dava aulas e desfalece na sua antiga cadeira. Ouvimos o sino da torre do relógio, que já tocara antes, mas nunca pareceu tão fúnebre. De novo, a câmera recua para mostrar as cadeiras, mas, desta vez, elas não estão vazias para uma aula: estão vazias para um funeral.

A última refeição de Anthony Bourdain

Acordei no dia de folga com a notícia de que Bourdain tinha morrido. Os meus grupos de trabalho no Whatsapp estavam cheios de lamentos, talvez porque qualquer pessoa que faz programas de gastronomia hoje em dia sabe que, em grande parte, devemos o nosso sustento a ele. No nosso caso, que fazemos a versão brasileira do programa The Taste, em que ele foi jurado, a conexão é mais forte ainda.

Daqui a uns anos, vai ser difícil explicar o que Bourdain fazia ou porque ele era famoso. Ele não era conhecido por ser um grande chef; quando ainda trabalhava em cozinhas profissionais, a sua especialidade era salvar lugares que estavam prestes a fechar ou, então, ajudar a fechá-los de uma vez por todas. Ele também não era exatamente um crítico de gastronomia, apesar de ter comido e divulgado a comida de dezenas de países.

É difícil explicar o que Bourdain fazia porque, de certa forma, ele inventou o que ele fazia. Desde que publicou o artigo Don't Eat Before Reading This, que depois transformaria no seu primeiro grande livro, Cozinha Confidencial,  ele foi um cronista gastronômico. Começou falando sobre o que acontecia dentro das cozinhas de restaurantes e rapidamente evoluiu para um divulgador da comida como espelho fiel do lugar onde ela acontece, do povo que a produz, da sua cultura, política e economia. Desde a nouvelle cuisine que conhecemos a importância do terroir, mas Bourdain expandiu e divulgou essa ideia, ao ponto de hoje sabermos que comer num lugar que visitamos significa, não só matar a fome, mas principalmente experimentar esse lugar através do paladar.

Bourdain suicidou-se enquanto visitava a França. É triste e é simbólico também. A sua carreira e vida gastronômicas sempre estiveram ligadas ao país. A sua família é de origem francesa, ele ficou popular quando comandava a brasserie Les Halles, em Nova Iorque, e foi também o país onde ele teve a experiência que começou a sua relação com comida, quando, ainda criança, acompanhou a família numa pescaria de ostras. Como ele relata em Cozinha Confidencial:
O senhor Saint-Jour, como que querendo desafiar os seus passageiros americanos, perguntou, com o seu forte sotaque da Gironda, se algum de nós queria experimentar uma ostra.
Os meus pais hesitaram. Duvido que eles tivessem pensado comer uma das coisas cruas e viscosas sobre as quais flutuávamos. O meu irmão mais novo recuou, horrorizado.
Mas, no momento mais orgulhoso da minha jovem vida, eu me levantei, sorrindo, desafiador, e me voluntariei para ser o primeiro.
E, nesse inesquecível e doce momento da minha história, que ainda é mais vivo para mim do que tantos outros "primeiros momentos" que se seguiram - primeira buceta, primeiro baseado, primeiro dia no colégio, primeiro livro publicado, tantas coisas - eu conquistei a glória. O senhor Saint-Jour fez-me ir até à amurada, onde ele se inclinou e debruçou até que a sua cabeça quase desaparecesse por baixo de água, e emergiu segurando, no seu pulso bruto e em forma de garra, uma única ostra, coberta de lodo, enorme e irregular.
(...)
Eu segurei-a, inclinei a concha na minha boca como me instruíra o agora radiante senhor Saint-Jour, e, com uma mordida e uma sorvida, engoli-a. Tinha sabor de água do mar... de salmoura e carne viva... e, de alguma forma, de futuro.
Tudo era diferente agora. Tudo.
Eu não tinha só sobrevivido - eu tinha apreciado.
Esta, eu sabia, era a magia da qual, até agora, só tinha uma noção vaga e despeitosa. Estava viciado. Os arrepios dos meus pais e a expressão de repulsa e surpresa ilimitadas do meu irmão só reforçaram a noção de que, de alguma forma, eu me tornara um homem. Tivera uma aventura, provado o fruto proibido, e tudo o que se seguiria na minha vida - a comida, a corrida longa e tantas vezes estúpida e autodestrutiva pela próxima coisa grande, fosse drogas, sexo ou qualquer outra nova sensação - teria a sua raiz nesse momento.

Hoje eu penso em Bourdain. Pergunto-me qual terá sido a sua última refeição e se ele lembrou dessa ostra primordial momentos antes do fim. Amanhã eu vou acordar e seguir para o estúdio, para fazer um programa sobre comida. Também por isso, obrigado a ele.

SPOILER: La Coquille et le Clergyman (A Concha e o Clérigo, 1928)

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  • Estava pronto pra entrar nos anos 30 e nos filmes sonoros, mas uma leitura sobre as possíveis influências de Buñuel para Un Chien Andalou L'Age d'Or levaram-me a retroceder a 1928, a um filme tão intrigante que a sua exibição terá sido proibida na Grã-Bretanha depois de uma avaliação tão odiosa quanto hilariante do censor: "se ele tem um sentido, com certeza é reprovável!".

  • A Concha e o Clérigo trata das alucinações eróticas deste último, que disputa uma mulher com um militar. A certo momento, o clérigo arranca a roupa da mulher, descobrindo-lhe os seios, que, num fundido, são cobertos por conchas. Fica assim também descoberto o título: a concha como símbolo da sexualidade feminina; o clérigo como o homem que, apesar das vestes eclesiásticas, não resiste aos ímpetos sexuais e persegue a mulher sem parar, recebendo recusas e mais recusas. Se expandirmos a nossa visão, veremos a metáfora da Igreja e do Estado como atacantes implacáveis do corpo e da sexualidade femininas.

  • Entende-se então porque ele é apontado, não só como o primeiro filme surrealista, mas também como um dos primeiros filmes com uma mensagem feminista, com os avanços do protagonista masculino e objetificador sendo constantemente frustrados.

  • 90 anos depois, poderá ser injusta a observação de que, se a intenção era essa, talvez fosse mais interessante se a figura feminina fosse protagonista e atuante, em vez de uma musa quieta e enjoada que apenas reage ao protagonista masculino. Ainda assim, certamente essa observação não é tão injusta quanto aquilo que os surrealistas fizeram à diretora na estreia.

  • As versões sobre o que aconteceu variam. Há quem diga que os surrealistas não gostaram que a diretora tivesse tomado muitas liberdades com o roteiro do comparsa Antonin Artaud. Outros especificam: os surrealistas, esse Clube do Bolinha de vanguarda, eram misóginos e reprovaram o empoderamento feminino mostrado no filme. Há até quem diga que Artaud, descontente por não ter ficado com o crédito de "consultor técnico privilegiado", chamou os amigos para o defenderem. O fato é que os surrealistas foram em alcateia até à estreia e, mal o filme começou, começaram a gritar impropérios, xingando a diretora de "vache" para baixo.

  • É um filme cheio de fundidos e de imagens sobrepostas sem fronteiras claras, como as de um sonho. Um ano anterior a Un Chien Andalou, é talvez uma injustiça que este tenha superado A Concha e o Clérigo como o filme surrealista por excelência. A dificuldade para o espectador é que ele é apenas, e todo, metáfora visual: ele não dá nos dá chão, uma referência de onde observar. O trabalho nele é essencialmente visual e plástico.

  • Se Buñuel e Dalí eram cômicos, farsescos, escrachados, escandalosos, abertamente sexuais e anticlericais e trabalhavam em cima de símbolos universais e poderosos (a lua, o corpo, o escorpião), Artaud e Dulac são melancólicos, plásticos, subtis e meticulosos. Aqueles são mais teatro e estes são mais pintura. Dê-se o significado que se quiser a ela, há uma história em Un Chien Andalou e em L'Age d'Or. Aqui não. Aqui há colagem de vinhetas visuais, maravilhosas, mas que aparecem mais como se fossem palavras vertidas num poema do que um raccord de imagens.
    Um exemplo disso é o modo como Buñuel constrói as suas sequências pensando numa edição diegética e não apenas visual, como a de Dulac. En Un Chien Andalou, um homem começa caindo num apartamento, mas acaba caindo numa floresta. Dulac não faz esse tipo de brincadeiras. Se eles fossem clipes do Radiohead, Buñuel seria o de DayDreaming  e Dulac o de Street Spirit (Fade Out).

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[youtube https://www.youtube.com/watch?v=LCJblaUkkfc&w=560&h=315]





    • Ou seja, há algo no surrealismo de Buñuel que o faz ter um apelo maior do que o de Dulac. Os seus primeiros filmes atraem-nos, não porque sintamos que qualquer coisa possa acontecer nos seus mundos, mas precisamente porque talvez nem tudo possa acontecer. São mundos com regras estranhas que não entendemos, mas que, intuimos, têm regras que queremos descobrir. A Concha e o Clérigo acontece principalmente dentro da cabeça dos seus criadores, o que imediatamente levanta uma muralha mais alta. Buñel parece oferecer-nos todo um mundo; Dulac parece oferecer-nos apenas ela mesma.

SPOILER: L'Age d'Or (1929)

  1. Este é o primeiro filme sonoro deste caderno. Como falas eram coisa recente no cinema, os poucos diálogos parecem ter sido pensados mais como intertítulos que, por acaso, acabaram ditos.

  2. De qualquer forma, o filme parece menos inspirado e mais lento nos momentos com mais falas. Com o som, não é preciso agarrar a atenção do espectador com uma velocidade maior, com efeitos especiais, com uma edição inventiva. Ou seja, houve algo na imagem do cinema que morreu quando o som chegou. Chaplin sabia-o, e por isso resistiu mais 10 anos até ter um filme inteiramente falado.

  3. Bispos tornam-se esqueletos e toda uma sociedade vem venerá-los. No lugar da veneração, é fundada Roma, onde, no Vaticano, toda uma sociedade venera outro tipo de cadáveres.

  4. Durante a veneração, um homem é capturado por estar dando uns amassos com uma mulher. Transportado por seus captores através da cidade, vê sexo em tudo e maltrata animais e cegos. Não entendo bem porquê, mas ver alguém chutando criaturas indefesas tem sempre muita graça.
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  5. A mulher que antes víramos dando uns amassos entra no seu quarto e tem que enxotar uma vaca deitada sobre a cama, o que, como todos sabem, é uma tarefa muito chata.

  6. Invariavelmente, as pessoas neste filme querem fazer mal umas às outras ou, pelo menos, não se importam muito com o sofrimento do vizinho. Não sei de onde Buñuel e Dalí foram tirar essa ideia de que a humanidade pode ser assim, mas explica a abertura do filme com um minidocumentário sobre escorpiões.

  7. Há uma ideia de eternos retornos pairando por aqui. Uma orquestra começa a tocar, mas a música é a mesma que ouvíramos momentos antes. Enquanto isso, o casal que víramos na praia se beijando e rebolando no chão começa a se beijar e a rebolar no chão. A ideia será a do sonho que volta?

  8. O casal continua a sua dança de amor, que pressentimos como a única coisa verdadeira no meio das convenções e fachadas de uma festa de alta sociedade. A mulher chega a dizer "que alegria termos matado as nossas crianças". Ao mesmo tempo que é verdadeiro, é um amor extremamente frágil. Estamos sempre à espera que ele seja interrompido por intrusos ou pelos próprios amantes.

  9. A mulher começa a beijar o maestro da orquestra. Enfurecido, o homem vai até o quarto dela e joga pela janela um bispo e uma girafa. Quem nunca, hein?

  10. A mistura nonsense de tempos históricos, o jogo com as expectativas do espectador, a insignificância cômica do sofrimento humano tiveram um claro descendente. Com uma ou outra adaptação, L'Age d'Or facilmente seria um episódio do Monty Python's Flying Circus.

SPOILER: Un Chien Andalou (1929)

  1. Traduzido, o título é "Um Cão Andaluz". Segundo relatos da época, os roteiristas, Buñuel e Salvador Dalí, inspiraram-se no apelido que, décadas mais tarde, o governo madrileno daria a Carles Puigdemont.

  2. Buñuel aparece na primeira cena do seu primeiro filme amolando uma faca e cortando o olho da sua atriz principal. Poucos diretores poderão se gabar do mesmo.
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  3. Agora a sério, o que podemos entender do famoso olho cortado, montado em paralelo com uma nuvem afiada passando na frente da Lua? Que tudo o que se segue é o sonho da mulher? É que sonhar não vai ser a primeira coisa que farei se me cortarem um olho.

  4. Um homem é recusado por uma mulher e persegue-a, mas, para o fazer, tem que arrastar dois pianos, dois burros mortos e quatro clérigos. Foi exatamente assim que eu conquistei a minha namorada.

  5. O homem é ameaçado por um outro, cujo rosto não vemos, e que o obriga a levantar-se da cama e encarar a parede. O homem que ameaça vira-se, e vemos então que ele também o homem que é ameaçado. Buñuel cria assim uma das primeiras obras com doppelgängers, ajudando a espalhar uma praga que infetará para todo o sempre as curtas-metragens feitas por universitários.

  6. Depois, o homem mata a tiro o doppelgänger, castigo merecido para qualquer pessoa que obriga outra a levantar-se da cama.

  7. O homem olha a mulher. Tapa a própria boca e, quando a destapa, não tem boca. A mulher, como seria de esperar, reage retocando o batom. Então, o pêlo do sovaco dela aparece na boca do homem.
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    O significado é claro: este homem é o par ideal para qualquer pessoa de pele sensível que aprecia o silêncio e truques de magia.

SPOILER: Chelovek s kinoapparatom (O Homem com uma Câmera, 1929)

1. Como um espectador moderno vê O Homem com uma Câmera? Todas as técnicas que ele fez revolucionárias são hoje corriqueiras. O seu objetivo confesso de fazer um cinema pelo cinema, sem roteiro, personagens ou intertítulos, dir-se-ia ultrapassado, porque, nalguns segmentos, ele venceu: se tantas bandas fizeram trilhas para este filme é porque principalmente os clipes musicais acabaram absorvendo a sua estética.

2. Digo estética, porque é uma batalha estética que ele trava, e uma específica do cinema. Filma-se e mostra-se o espaço, mas a matéria que realmente se trabalha é a do tempo real através do tempo diegético. Sim, porque há diegese aqui, apesar de Vertov reclamar que quer uma linguagem pura independente da literatura e do teatro e blá blá blá. Há um prelúdio numa sala de cinema, começamos de manhã, vamos até à noite. Do que ele tanto se queixa? Não ter drama não significa que não haja um início, meio e fim.

3. É um filme que, como The Greatest Movie Ever Sold, de Morgan Spurlock, é making of de si mesmo: o homem da câmera filma, mas também é filmado. Não é só cinema puro, é também cinema exibicionista. Acho que o mesmo pensamento gerou muito filme presunçoso ao longo dos anos, mas desculpa-se em 1929.

4. Ainda não havia câmeras de vigilância nesta época (apesar de Metropolis já as ter imaginado). De qualquer forma, é um dos conceitos inerentes do filme e é bem atual: o Homem e sua Câmera tudo captam, tudo registram. Nós não podemos presenciar toda a vida que existe, mas podemos iludir-nos que a presenciamos olhando a sua imagem. João Lopes falava sobre isto a propósito do stunt de Godard fazendo FaceTime com os jornalistas no último festival de Cannes - Godard, o mesmo que começou Le Mépris mostrando as câmeras que o filmam e nomeando o elenco e a equipe quase como se fizesse uma denúncia.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=i1iOFRZnKBo?rel=0&w=560&h=315]

5. Nunca gostei da expressão "a cidade é personagem", então não a vou dizer; mas a cidade e as vidas que nela acontecem, com os seus contrastes de tempo, movimento e respiração, é o material bruto trabalhado aqui. E é trabalhado todinho na sala de edição, que nos leva, em rápida sucessão, de um casamento a um funeral a um parto a um acidente, e assim por diante. Para ser exato, o filme dever-se-ia chamar "O Homem com uma Câmera e Também o Outro Homem com uma Tesoura".

6. Este filme, com o seu fascínio por pistões e motores, marca, ainda mais do que Metropolis, a concretização no cinema do Manifesto Futurista de Marinetti, escrito exatos 20 anos antes.

7. De vez em quando, vem um cheirinho de Riefenstahl, com corpos gloriosos fazendo esporte, retratos de Lenine e bustos de Marx, clubes proletários e outras propagandas. Pergunto-me se será para ajudar a engolir o comprimido de um filme de estilo nada realista-socialista. Imagino Daniil Kharms, que por este ano estava no seu período de maior sucesso, saindo de uma sessão do filme e chamando Vertov de medrosinho. A coisa não acabaria bem para nenhum deles.

Como Desenhar o Corpo Humano

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No domingo, dia 10 de Junho, vai ser lançada na Feira do Livro de Lisboa a antologia "Como Desenhar o Corpo Humano", organizada pelo Tiago Patrício e o José Trigueiros e editada pela Companhia das Letras. Reúne vencedores do prémio Jovens Criadores e inclui um conto meu.
Venci o concurso duas vezes, em 2005 e 2006, e o convite do Tiago fez-me reler esses textos.
Enquanto lia, perguntava-me quem era aquela pessoa longínqua que escrevia, o que lhe interessava, que coisas o rodeavam. Pensava no quanto mudei, e se mudei bem.
Quando o pdf chegou para revisão, vi nele os nomes de muita gente conhecida e fui visitado por memórias da minha vida em Portugal, nos blogs, em Lisboa. Tanta gente.
O André Murraças, que nunca conheci pessoalmente, mas que convidei como amigo aqui porque via-o fazer tanta coisa no teatro que me perguntava como era possível.
A Joana Bértholo, que conheci na mostra dos Jovens Criadores em Amarante e que já tinha no olhar a autora inteira em que se acabou por se tornar.
O bom José Mário Silva, que um dia enfiou um livro por baixo da porta da casa onde eu morava na Vila Berta mesmo sem nunca nos termos falado (só o fizemos anos depois, na Casa Fernando Pessoa).
O Miguel Marques, secreto, silencioso, que acompanhava em blog e em papel e que escrevia tão bem que o invejava com a inveja boa de quem queria escrever igualmente bem.
A Margarida Vale de Gato, que tantas vezes encontrava no metro ou pela Graça e que não sei se alguma vez reparou o quanto eu tentava parecer inteligente quando conversava com ela (e certamente falhando, imagino).
Reparo que a Sandra Silva fez parte do júri que, na época selecionou o meu texto. A Sandra, companheira do Alex, que me convidou depois para os Social Smokers. E está também por lá um texto do João Tordo, que, uma noite, depois de um espetáculo dos Social Smokers no Cais do Sodré, me disse que deveria tirar os óculos para atuar (adoraria, João, mas seria prenúncio de acidente grave).
E o livro ainda é prefaciado pelo Jorge Barreto Xavier, o diretor da DGArtes que me deu a bolsa INOV-Art que me trouxe para o Brasil e que por cá me deixou.
Ainda há mais autores, muitos mais, e imagino que esta antologia tenha feito todos pensarem no passado. Quando aceitei o convite, não pensava que ela estaria tão cheia das vidas dos outros e da minha. E como está.
A distância impede-me de ir a este lançamento, mas adoraria que vocês fossem, meus amigos.

SPOILER: La Passion de Jeanne d'Arc (A Paixão de Joana d'Arc, 1928)

  1. Eu já vira La Passion de Jeanne d'Arc, há muitos anos atrás. Gravei-a no 5 noites, 5 filmes, antigo espaço de cinema na RTP2 onde vi muitas coisas que explicam muito do que sou e do que gosto hoje. O que eu não sabia era toda a saga por que o filme passou para que hoje o consigamos ver em toda a sua glória. Escutem essa história:
    Por pressões de grupos nacionalistas franceses e de católicos, incluindo o Arcebispo de Paris, o corte original do diretor dinamarquês e protestante Carl Th. Dreyer foi para os porcos ainda antes da estreia. O negativo foi enviado para os estúdios da UFA em Berlim, onde foi destruído num incêndio, e só sobraram umas cópias perdidas aí pelo mundo. Dreyer conseguiu fazer um segundo director's cut utilizando planos alternativos, mas também ele ardeu, como Joana d'Arc, num outro incêndio.
    O filme ganhou fama de amaldiçoado, mas os cinéfilos nunca se assustaram com coisas de Deus e o Diabo, e lá iam encontrando e remontando uma ou outra cópia que achavam por aí. Estas versões incompletas só foram ultrapassadas em 1981, quando um faxineiro - sempre os faxineiros! - encontrou as bobinas da versão original, anterior a toda a censura, no armário... de um manicômio na Noruega! Como ela lá chegou, não se sabe - não há registros de alguma vez ela ter sido enviada para Oslo -, mas presume-se que o diretor do manicômio na época da estreia, que era historiador, a tenha pedido por especial favor e guardado cuidadosamente.(Neste momento, desejo pedir aplausos para o anônimo herói norueguês que uma hora pensou "ei, isto não parece coisa pra jogar fora". Obrigado, senhor!)

  2. Curioso que, apenas um ano depois de Napoléon, apareça outro filme sobre uma grande figura da história francesa. Não esqueçamos, estávamos entre duas guerras e os nacionalismos andavam exacerbados, o que pode ter levado tanto ao reatar dos conflitos como ao seu fim. Será que a Resistência teria sido o que foi sem também este cinema?

  3. Mas este não é o épico de Gance. Este é um filme sobre psicologias e os rostos como tradutores imediatos da alma e experiência humanas. E é um filme de Dreyer, um dinamarquês luterano, que não se incomoda com tratar o tema reformista da comunicação direta com Deus. Os clérigos menosprezam Joana quando ela descreve seu encontro com o Arcanjo Gabriel e bombardeiam-na com perguntas do estilo "você acha mesmo que Deus iria conversar com você?". Fica claro que o seu encontro com o divino tem que ser feito além da Igreja. Por isso, a morte de Joana representa, ao mesmo tempo, o fracasso do Catolicismo organizado: quem a mata dá-lhe aquilo que ela mais deseja, o bilhete de ida para junto do Criador.

  4. Uma mulher, julgada por um comitê de homens, que reprovam as suas roupas, humilham, roubam, maltratam, degradam, manipulam, torturam, sangram. Para todos os efeitos, é um filme atualíssimo.

  5. Renée Jeanne Falconetti interpreta uma Joana D'arc em estado de graça, como se estivesse em constante diálogo com Deus. Porém, ela não está serena. O seu rosto e aqueles olhos onde cabem todas as dores do mundo são fascinantes como lembrava: esta não é a calma de quem pensa que dali a pouco estará no Paraíso, mas a angústia, transe e puro terror de quem encara a morte para cumprir um destino maior do que ela.
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  6. Os cortes são rápidos, o estilo é ascético. A verdade histórica é garantida pelo registro do texto do processo, que Dreyer apresenta como sua base logo no início, assim se desembaraçando para se ocupar com a criação de pura arte visual, uma dança de rostos sem sujeiras. O rosto de Joana/Renée ocupa quase sempre o centro da tela, dominante, retratistico, e seus perseguidores aparecem no fundo do enquadramento ou enviesados, tortos ou insignificantes como suas almas.
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  7. O absurdo do circo do mundo paralelo à dor íntima. Enquanto a fé é aprisionada, os homens divertem-se sem pensar em consequências. O medievalismo de Bergman está por aqui, o surrealismo de Fellini também.
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  8. A virada de Joana, ao negar a sua remissão, é estratégica. A grande vitória, diz ela a seu captor (de novo Antonin Artaud), é o seu martírio; a sua entrega é a morte. Deus dissera-lhe que a sua missão é salvar a França, e ela entende que a fogueira a tornará a mártir que une um país, assim como Cristo entendeu que a cruz era necessária para completar a sua missão.

  9. Joana arde, grita por Jesus e morre. O povo chora, protesta e é oprimido pela guarda. Enquanto ela encontra Deus, os franceses unem-se sob a repressão. Assim termina o filme que logo seria retalhado para melhor se adequar ao gosto do ofendido público francês e católico.

Pequenas derrotas

Há uns anos, dei um par de cursos de iniciação à fotografia.
Tentava preparar-me bem e sempre evitei prometer mais do que poderia oferecer.
Ontem sonhei que estava a dar um intensivão desse mesmo curso, começando na manhã de um sábado e terminando na noite do domingo.
Porém, fora pego de surpresa e não preparara nada.
Tinha pela frente meia dúzia de alunos entediados e com as taxas de admissão pagas.
Um deles, mais velho, tinha aquela cara bem brasileira de quem pensa "que absurdo!".
Desesperado, achei no computador a pasta com as fotos que acompanhavam a introdução, mas não as conseguia ordenar com coerência.
Ao contrário do que fizera no passado, não estava a oferecer o que tinha sido prometido.
Comecei a dispensar os alunos mais cedo para eles almoçarem e eu ganhar tempo.

Não me perguntem como, mas cada vez mais eu sonho sabendo que sonho, como se estivesse vendo um filme que consigo mais ou menos controlar.
Tentei então tomar conta do sonho.
Pensei Vamos, isto tem de acabar bem; faz um PPT com essas fotos logo, bora!
Às vezes funciona, mas não desta vez: os alunos voltaram, mas, vendo que a minha atrapalhação continuava, saíram da sala, certamente para pedir o seu dinheiro de volta.
Havia pessoas do outro lado do pátio dizendo Olha, parece que o Jorge não se deu bem.
Derrotado para mim e para os outros, fiz um esforço mental para encerrar esse sonho chato e voltei ao adorável e escuro silêncio.
***

Comprei a cama sob a qual sonhei há mais ou menos um ano.
Quando chegou, vi que as instruções recomendavam virar o colchão, o lado de baixo para cima, a cada dois meses.
Porém,  a Cyntia sempre reclamou que um dos lados era diferente e sentia que não nos deveríamos deitar nele.
Ontem à noite, decidi que iria resolver essa dúvida.
Vasculhei o dossier onde guardo manuais de instruções (sim, eu faço isso) e achei as da cama, que, sinceramente, pensava perdidas.
Eu tinha razão: a indicação para virar o colchão estava lá.
Eu só não tinha reparado que havia uma especificação por baixo: "não vire o seu colchão se ele for das linhas X, Y e Z".
Pesquisei os e-mails da compra, mas nada de encontrar o nome da linha.
Hoje à tarde, a Cyntia perguntou se eu não queria abrir a capa protetora do colchão e ver se a linha estaria descrita na etiqueta.
Fizemos isso mesmo e lá estava: "linha Z".
O cuidado que tive durante um ano fora, afinal, desnecessário e precipitado.
***

A moral da história é: se não pudermos passar sem derrotas, pelo menos que sejam pequenas.

SPOILER: The Circus (O Circo, 1928)

  1. Não há muito de novo que se possa dizer sobre Chaplin. Ele importou para o cinema a mise-en-place do vaudeville e aperfeiçoou-a. Ele é o centro de todo o seu cinema, sujeito dos planos, locomotiva da ação. Simples e, no entanto, incansável na procura de novos movimentos e coreografias que surpreendam.

  2. The Circus parece-me um filme de transição. Não tem a pungência de The Kid, que foi feito após Chaplin ver o seu primeiro filho morrer com 3 dias de idade e é triste e imaginativo. Não tem a pureza e a essencialidade de The Gold Rush. Em vez disso, aqui há burros enlouquecidos, ficar trancado em jaulas com leões, donzelas que desmaiam, pontapés na bunda, coisas caindo na cabeça. Um verdadeiro circo, portanto.

  3. Adiciona-se uma nuance na personagem de Charlot/Carlitos sendo malvadinho, perseguindo a moça bonita como nunca antes, rindo das desgraças do seu rival, para quem, inevitavelmente, perde. Desta vez, ele não é o tímido injustiçado que se dá bem; ele vai atrás do que quer, enfrenta o que for necessário para conseguir, mas, no final, melhor sozinho do que mal acompanhado. Como Chaplin produziu o filme pelo meio do seu conturbado segundo divórcio, esta mensagem pode não ser pura coincidência.

  4. Ao mesmo tempo, o diretor está ampliando os limites da sua linguagem. Há mais cenários, mais viradas, mais adereços. O filme é maior do que os anteriores e ele está em pleno caminho para fazer essa obra-prima chamada City Lights três anos mais tarde. As cenas na corda bamba e, principalmente, os planos finais, após a partida do circo, manifestam um lado pouco falado da personagem de Carlitos e, talvez, de todos nós: o de que ser livre de tudo significa também ser cativo de si mesmo. Se confiarmos no final de Chaplin, o filme biográfico de 1992, terá sido este o final da montagem que lhe fizeram quando recebeu o Oscar honorário. Faz todo o sentido.
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  5. Antes que me esqueça: se quiserem criar filhos que reconheçam e reajam contra abusos de autoridade, mostrem-lhes filmes do Chaplin. É a melhor educação cívica possível.

SPOILER: Napoléon (1927)


  1. Demorei uns três dias vendo esse épico incrível de Abel Gance. Já tinha ouvido falar muito (Marc Cousins não escondeu a sua admiração por ele em História do Cinema), mas não é sempre que uma pessoa se predispõe a enfrentar cinco horas e meia de filme. Felizmente, a sua estrutura em episódios facilita as interrupções.

  2. A câmera não está só em movimento: ela está livre, documental, subjetiva, sempre disposta a quebrar a encenação e a hagiografia. Vemos estes momentos e pessoas como se os víssemos hoje no Jornal da Noite.
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  3. Abel Gance gaba-se de seguir os registros históricos nas falas e de filmar nos próprios locais da Córsega onde sucederam as cenas retratadas. Num momento de arrojada meta-temporalidade, vamos da placa que diz "Aqui morou Napoleão" para a janela onde ele se debruça. É exatidão histórica, mas também é vaidade!
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  4. A primeira parte, no colégio, faz pensar como os franceses sempre souberam criar grandes personagens infantis. Dos ombros deste jovem Napoleão já espreita Antoine Doinel.
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  5. Artaud, o dramaturgo da Crueldade, interpreta Marat, o super jacobino. Melhor casting, impossível. Aliás, Marat usa uma estola de oncinha, Danton parece um Robert Smith gordo e Robespierre é elegante e usa uns belos óculos escuros: se não fossem revolucionários, seriam uma banda indie.
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  6. O Napoleão das pinturas românticas é invencível e gigante. O de Gance é frágil e magoado. Mais antiherói do que herói, pálido, esquálido e andrajoso, lembra-me Samuel Fuller justificando Lee Marvin para o papel de Sargento em The Big Red One: "porque ele parecia a morte". Ainda assim, se o filme tivesse sido feito hoje, arrisco dizer que o ator principal Albert Dieudonné logo viraria garoto-propaganda de alguma marca de roupa.
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  7. Gance filma forte e feio, com muita câmera móvel, documental. Sabem Saving Private Ryan? É isso aí. Ele usa frequentemente planos subjetivos, e muito durante as cenas de batalha, colocando o espectador ao nível dos soldados na confusão e sujeira. Isto 66 anos antes do game Doom e 90 antes de Dunkirk fazer o mesmo utilizando o som. A sequência de Toulon, filmada à chuva, seria gloriosa por si só.
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  8. Abel Gance, o próprio diretor, interpreta "a figura mais temida do Terror: Saint-Just". Lembram o que eu falei de vaidade? Ahahah
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  9. Acho que só vemos Napoleão sorrir de verdade quando se apaixona por Josefina, e esse é talvez o segmento menos inspirado de todos. Seria demais esperar que "a figura mais temida do Terror" filmasse o Amor tão bem quanto filma a Guerra.

  10. Quando Napoleão entra na sala deserta da convenção e é assaltado por visões dos fantasmas da Revolução, algo fica claro: ele é uma personagem com o corpo no presente, a memória no passado e os olhos no futuro. É como se a História tivesse passado por ele, não o contrário.

  11. Napoleão diz aspirar por um futuro em que as batalhas sejam vencidas sem canhão ou baioneta. É uma fala compreensível 9 anos depois da Primeira Guerra Mundial, mas tristemente fadada ao fracasso 12 anos antes da Segunda.

  12. Também é curioso ver esta figura, que provavelmente se sentiu exilada a vida inteira, falando da utopia de uma Europa-pátria, onde os seus cidadãos se sintam em casa seja qual for o lugar específico dela onde se encontrem. Claramente, o Reino Unido não viu este filme muitas vezes.

  13. Gance sentiu a necessidade de filmar a grande sequência final em tela panorâmica. Só havia um probleminha: em 1927, não havia Cinemascope, Panavision ou qualquer outro desses formatos que, segundo Fritz Lang, só serviam "para filmar cobras e funerais".
    Gance foi engenhoso e gravou com 3 câmeras acopladas, cujos positivos exibiu na estreia em 3 projetores colocados lado a lado. Os distribuidores que vieram depois, claro, não tinham muita vontade de comprar projetores a mais por causa de um único filme, por isso, reeditaram e jogaram fora a película de que não precisaram. Só graças ao trabalho do grande historiador e restaurador Kevin Brownlow é que hoje podemos ver essa sequência como o cineasta a concebeu.
    Tecnicamente, é um triunfo. Porém, ao expandir o enquadramento, perde-se o poder do corte e o ritmo fica a milhas da sequência da batalha de Toulon.
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    Gance claramente entendeu isto e não perdeu muito tempo com as batalhas panorâmicas, logo seguindo para transformá-las num tríptico com imagens independentes, em que aplica tintura e faz desembocar - claro! - na bandeira de França!
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  14. Gance pode ter só conseguido fazer um filme dos 6 que pretendia sobre a vida de Napoleão, mas não se esqueceu de deixar a sua assinatura no último plano. Merecido, mas, ó, homem vaidoso, viu!
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SPOILER: Metropolis (1927)

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  1. Tal como Greed, esta maravilha de Fritz Lang foi cortada pelo estúdio depois da estreia. Se hoje podemos ver uma cópia incrível da Kino International com cerca de 95% do filme original, é porque em 2008 foi encontrada na Argentina uma versão de 16mm com os fotogramas perdidos. Que chatice, Jorge, o que interessa isso? É, eu sei. Tenho um gozo adicional (lembro-me de vê-lo filmado no Cigarrette Burns do Carpenter) por estes filmes resultarem de uma caça e por milhões de pessoas antes de mim não os terem conseguido ver porque a caça não estava concluída. Há egoísmos piores, vai.

  2. Aliás, graças a Deus por esse restauro: só aquele Intermezzo já valia os dois anos de trabalho.

  3. Vi Metropolis como uma criança veria. Ou seja, ele fez-me não pensar e entrar no enlevo da história e das imagens, o que é ótimo. É incrível como as obras-primas do passado são tão espetáculo e como o cinema mudo é rapidíssimo e eficaz a contar a sua história. Talvez não tenha havido evolução da linguagem sem pensar o público receptor. Muito refrescante de pensar.

  4. Reparem como Lang filma e ilumina Brigitte Helm de um jeito quando ela é Maria e de outro quando ela é Maschinenmensch. Entretanto, esqueçam Lang e reparem como a extraordinária Brigitte Helm transforma o seu corpo e o seu rosto quando passa de Maria a Maschinenmensch.
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  5. A direção de arte é aquilo que sempre se soube, mas arrisco dizer que é a primeira vez que apareceram no cinema a câmera de vigilância e a videochamada - décadas antes de serem inventadas. Se alguém souber de alguma aparição anterior, comenta aí.

  6. Diz-se que há marxismo em Metropolis, mas, sinceramente, como comunista ele é bem fraquinho. O dono da cidade (e dos meios de produção, se quisermos ser espertinhos) é o "cérebro". Os proletários, burros o suficiente para se deixarem levar pelo ímpeto de destruição sem lembrar que estão pondo os seus filhos em perigo, são as "mãos". Para se entenderem, só precisam de um "coração", que aparece na figura do bonzinho filho do dono, tão herói à moda antiga que para ser o Errol Flynn só lhe falta a capa e a espada. Mais do que comunista, Metropolis é keynesiano: ele só quer um capitalismo com amor.

Melhore a sua vida em meia hora

Saia do Facebook. Ou não saia do Facebook. Continue por lá, ou não. Eu não saí, ao mesmo tempo que estou escrevendo muito lá. Está confuso? É para confundir mesmo.

Já há uns tempos que andava cansado com a bacoquice do Facebook, mesmo antes da cena toda do Cambridge Analytica. A propósito, vocês caíram nessa? Pelo amor, né. Parafraseando aquele meme antigo, a melhor maneira de não ter os seus dados compartilhados na Internet é não os compartilhando.

Ao mesmo tempo, a conversa de sair do Facebook sempre soou, ela mesma, a bacoquice do Facebook. Por deus, tenho tanto amigo lá divulgando tanta coisa interessante. Não quero sair, não. Quero é não ficar exposto a tanta bosta irritante.

Um dia, decidi então que ia acabar com uma rotina que durava há anos: deixar a página do Facebook aberta o tempo todo, evitando distração, chateação e crispação minhas e alheias.

Primeira dificuldade: e se algum amigo ou parente quiser chamar? Superada com o Messenger.

Segunda dificuldade: eu seguia um monte de jornais e sites no Facebook, que punha em prioridade na timeline, para ver primeiro as notícias do momento. Como lidar?

Lida-se assim: comece por aceitar que as notícias mais compartilhadas nem sempre são as que mais lhe interessam. Em seguida, volte ao fiel, antigo e lindo RSS. Com o Feedly, acompanho tudo o que me interessa e, se encontro um artigo que quero ler mais tarde, mando-o automaticamente para o Pocket. Ambos são gratuitos e funcionam tanto no celular quanto no browser, tudo sincronizado.

Mais umas coisinhas: como comecei a sentir que queria mandar alguns artigos do Pocket para o Kindle, instalei o Upload to Kindle no celular. Dois ou três cliques e tenho o texto no leitor na hora. Ainda cheguei a usar, no browser, o P2K, que envia automaticamente para o Kindle todos os artigos guardados no Pocket na periodicidade que se quiser, mas acabei por abandonar, porque os textos são enviados em forma de digest e não em arquivos separados, o que fica pouco prático se quiser guardar só um ou outro para ter de referência.

Por fim, como postar no Facebook sem nem entrar lá? Com o Hootsuite, também para mobile e browser, com o qual consigo até publicar simultaneamente no Facebook e no Twitter. Depois, só vou lá de vez em quando para ver se vocês gostaram e aproveito o momento para uma passada pelos vossos desabafos e novidades.

Aproveitem e sejam felizes e, se tiverem dicas, mandem!

SPOILER: Greed (1924)

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  1. Nunca vira Greed (Ouro e Maldição BR, Aves de Rapina PT). Escolhi a versão de 1999 da Turner, de 4h. Se 4h parecem muito, é de lembrar que o diretor tinha feito um primeiro corte de 8 horas, que a Paramount sequestrou e mutilou para 2h. O melhor foi que o estúdio perdeu as horas cortadas, diz a lenda que por conta de um faxineiro distraído. A versão completa - que terá sido vista apenas por umas doze pessoas numa estreia para amigos - já foi chamada de "Santo Graal" dos filmes perdidos e afloram de vez em quando lendas sobre bobinas escondidas em misteriosas coleções privadas.

  2. As 4h da Turner foram reconstruídas a partir de fotografias e de uma escaleta original de Stroheim. Pelo menos, dois subplots foram recuperados, expandindo uma análise cruel da natureza humana, tão cruel que reconheci nela pessimistas posteriores como Herzog. Estarei louco? Talvez apenas ambicioso, mas fazer o quê? Sou humano.

  3. Há muito tempo que não via cinema mudo. Revê-lo confirma-me uma sensação que tenho desde o "Story of Film" do Marc Cousins: a inventividade era muito maior, o ritmo muito mais intenso. Tudo para prender a atenção do espectador.

  4. A personagem principal, McTeague, começa no escuro de uma caverna e termina a sua viagem sob a luz do deserto, numa sequência que demorou dois meses a filmar. McTeague, o bom selvagem, mas indefeso contra os defeitos da humanidade. Quem pensa que representar nessa era equivalia a fazer um esfumado no olho e dar pulos histriônicos deve olhar para Gibson Gowland, o ator principal, um gigante que rouba a cena num segundo.800px-greed2c_19242c_12_scale

  5. Não consigo afastar o pensamento que hoje Stroheim teria feito isto numa série para binjar e estaria tudo bem. Por causa de Greed, vou pensar duas vezes antes de me queixar sobre a vida.

O casamento real

É possível ver o casamento do príncipe Harry com Meghan Markle de várias formas.

As roupas, os chapéus, o vestido da noiva a barba do noivo, as alianças, o bolo: quem tenta perceber o que poderá ou não ser tendência no consumo dos próximos tempos presta atenção a estes pormenores.

Porém, há uma pergunta curiosa, bem simples, que poucos se fazem: por que este casamento tem o poder de definir tendências?

Porque é real, dirão alguns. Por que, então, os casamentos reais da Dinamarca ou do Butão não têm o mesmo poder de influenciar modas pelo mundo?

Isso leva-nos àqueles dias em que não havia Netflix, a vida das pessoas era cinzenta e o principal função da realeza estava mais à vista: ser corpo que espelha a hegemonia cultural e política da Grã-Bretanha, e do seu império, no mundo.

Ou seja, esmagar os adversários por dentro e por fora, como quem diz "olhem como somos grandes, resplandescentes e respeitáveis".

A família real funciona como os personagens de uma novela, ou como uma mitologia privada, que, num diálogo permanente, molda os seus súditos ao mesmo tempo que é moldada por eles.

Meghan é atriz, americana, filha de uma negra e um branco. Harry casou com ela numa cerimônia ecumênica, com um pastor negro, um coro gospel e convidados famosos conhecidos por suas posições progressistas. A noiva entrou sozinha na igreja e omitiu a obediência ao marido nos seus votos.

Não ponho em causa a sinceridade dos sentimentos do casal nem escondo a minha simpatia com as causas levantadas hoje. Que ótimo que a realeza britânica demonstra abertura.

Só não esqueçamos que ela o fez numa cerimônia que é, como sempre foi, um puro ato de exibição de poder.

Por que me marquei como seguro no desmoronamento do prédio em São Paulo

Hoje de manhã, depois de um prédio a menos de 2km da minha casa ter incendiado e caído, marquei-me como seguro na funcionalidade que o Facebook disponibiliza nesses casos. Estou a começar uma gravação, então tinha que trabalhar durante o dia e, como moro num continente diferente do da minha família e de muitos dos meus amigos, não queria que ninguém ficasse preocupado desnecessariamente e a mandar-me mensagens que não conseguiria responder.

Pela tarde, uma colega comentou que estava rolando uma discussão no Facebook sobre quem desnecessariamente se estaria marcando como seguro, numa espécie de reflexo torto do perene divórcio litigioso entre as classes sociais do Brasil. Quando cheguei a casa, apercebi-me que vários amigos meus tinham entrado nessa batalha também.

Há uma guerra cultural neste país e no mundo e todos somos soldados nela. Faz todo o sentido que uma tragédia entre na cultura e, por consequência, na guerra cultural.

Os posts não me incomodaram nada, nem julgo quem os escreveu. O impulso que me fez marcar-me como seguro foi íntimo e, considero, mais importante do que a significação cultural do ato. Ou seja: alegremente aceito a acusação de ridículo se esse é o preço de fazer um parente ou amigo dormir mais descansado.

"Ah, Jorge, mas tudo bem, você mora no centro, tem a família longe e tal. E quem mora em Moema e tá se marcando como seguro falando que é para os amigos no estrangeiro?"

Até pode ser, mas é verdade que a notícia do desabamento do prédio passou em todo o mundo, como, ao longo dos anos, também passaram em todo o mundo notícias de atentados em Paris, em Londres, terremotos, inundações, derrocadas.
Ao longo do tempo, vi amigos e familiares marcarem-se como seguros num monte de coisas, morassem perto ou longe dos locais dos desastres - porque quem pode dizer se eles não estavam no local do desastre na hora em que ele aconteceu?
Outros simplesmente postavam mensagens como "gente, não se preocupem comigo, está tudo bem" ou compartilhavam um vídeo de gatinhos.
Qualquer uma destas coisas me deixava mais tranquilo. A ausência de notícias e movimentos fazia-me pensar que poderia ter mais uma campa a visitar.
Nenhum tipo de mensagem me pareceu eticamente mais ou menos correta do que a outra.

Mas isso, realmente, não importa nada. Importante é que, no meio disso tudo, não se esqueçam que há pessoas a precisar de ajuda. Por favor, façam o que for possível. Fui há pouco no Paissandu levar comida, roupa e mantas. Fui guiado pelos orientadores no local para uma família de umas cinco pessoas que estavam num colchão no chão. Talvez fizessem parte do pérfido sindicato do crime que o nosso prefeito diz que residia no prédio, mas, entre duas crianças e três adultos com o rosto marcado pela preocupação com o dia de amanhã, não me pareceu.

Sei que também estão recebendo doações na rua Benjamim Constant 170 e, a partir de amanhã, na sede do PSOL, na Alameda Barão de Limeira 1412. Comidas não perecíveis, mantas e produtos para bebê (fraldas, mamadeira, etc) parecem ser as prioridades.

Termino dizendo que, quando voltei, olhei para o lugar onde até ontem havia um prédio. Na frente do céu recortado, ainda pairava no ar a poeira do concreto, que caía sobre quem perdeu tudo o que tinha na derrocada. Em quem passava, aquela ausência impunha a memória da morte, da perda e um silêncio respeitoso.

Não são necessárias cruzes ou monumentos: hoje aquele espaço vazio é luto.

O que realmente estava em causa na decisão sobre o habeas corpus de Lula

A sanha da luta política e cultural em que vivemos não permitiu que muitas pessoas percebessem que, na verdade, a discussão de ontem foi sobre uma divergência jurídica bem complicada e que diz respeito a todos nós. Afinal, ninguém está imune a um dia ser preso.

Voltei então aos meus tempos de Faculdade de Direito e fui pesquisar sobre o assunto.

Primeiro, um detalhe importante. Houve quem dissesse que a prisão após condenação em 2ª instância é regra fora do Brasil. Não é, e este artigo explica bem. Citando:
(No Brasil) há quatro instâncias possíveis de julgamento. Primeiro, nas varas criminais e, depois, nos tribunais estaduais ou regionais federais, em que são analisados os fatos concretos e provas. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF julgam se a lei foi corretamente aplicada nas instâncias inferiores, podendo absolver condenados se houver ilegalidades no processo. (...)

Na Holanda, França ou Portugal, só há, em geral, três instâncias. Ou seja, há uma menor possibilidade de recursos.

Já nos EUA, apesar de haver muitas prisões após a decisão de 1ª instância, elas acontecem ou porque os réus abrem mão de recursos em troca de penas mais favoráveis ou porque lhes é negada a possibilidade de recorrer, um sistema nada isento de falhas. Ainda do artigo:
O juiz federal e professor da Universidade de Columbia Jed Rakoff, por exemplo, diz em artigo sobre o tema que o sistema americano tem penas altas e dá poder desproporcional à acusação em relação aos defensores. Com isso, pessoas inocentes acabam aceitando se declarar culpadas por temer julgamentos longos que podem acabar em graves condenações.

Então, recapitulemos.

Por um lado, o Brasil tem uma instância de recurso a mais do que outros países, o que  pode significar a impunidade de réus poderosos e ricos. Como bem disse Luís Roberto Barroso ontem:
“Se tornou muitíssimo mais fácil prender um menino com 100 gramas de maconha do que prender um agente público ou um agente privado que desviou 10, 20, 50 milhões. Esta é a realidade do sistema penal brasileiro: ele é feito para prender menino pobre e não consegue prender essas pessoas que desviam por corrupção e outros delitos milhões de dinheiros, que matam as pessoas”

Por outro, a Constituição brasileira institui, no seu art. 5º inciso LVII, que:
Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Por "trânsito em julgado", entendam "não haver mais possibilidade de recurso porque se esgotaram os prazos ou as instituições para recorrer".

Aqui é que a coisa fica interessante.

Considerando o art. 5º, se alguém for preso antes do trânsito em julgado, isso equivale a aplicar uma pena a alguém que não é constitucionalmente considerado culpado.

Porém, surge a dúvida: a Constituição proíbe considerar culpado antes do trânsito em julgado, mas não proíbe expressamente a aplicação de uma pena a alguém nessa condição. O El País resumiu ontem bem a divergência de opiniões:
Os que não concordam com a prisão após o julgamento em segunda instância argumentam que o inciso afirma que ela só pode acontecer quando não existam mais recursos, já que só assim alguém é considerado "culpado", segundo a Constituição; por isso, a prisão antes disso seria ferir a presunção de inocência do indivíduo.

Os que defendem a prisão após a segunda instância afirmam que considerar "culpado" é diferente de prender e que a expressão constitucional serve apenas para colocar o nome do réu no rol dos culpados.

Eu diria que o problema se resolveria mais facilmente mexendo no processo penal e eliminando uma instância de recurso, mas isso daria muito trabalho e acabaria com alguns empregos no meio judicial. Então, a solução mais lógica não interessa a ninguém.

As motivações dos dois lados são muito razoáveis.

Os defensores da pena após 2ª instância pensam na eficácia dos tribunais e em impedir que poderosos consigam evitar as penas ad nauseam.
(Não consideremos este ou aquele ministro do STF que muda de opinião consoante ela possa afetar ou não os seus amigos da política, não vale a pena). 


Os defensores da pena só após o trânsito em julgado consideram que as garantias constitucionais valem para todos e que as consequências que delas se podem razoavelmente intuir são para cumprir.

Então, quem tem razão?

Eu diria que o arremedo jurídico que ontem prevaleceu é um pouco perigoso.

Não me agrada nada essa conversa de "cumprir prisão não significa que depois não venha a ser declarado não-culpado".

É que, considerando ser quase certo que os tribunais brasileiros tomarão esta decisão do STF praticamente com a força de uma ação declaratória de constitucionalidade, ela valerá, não só para Lula, mas para qualquer um de nós.

E agora respondam: se vocês fossem condenados por um crime, achariam justo poderem ser presos sem esgotarem todos os recursos judiciais a que têm direito?

Também achei que não.