SPOILER: Metropolis (1927)

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  1. Tal como Greed, esta maravilha de Fritz Lang foi cortada pelo estúdio depois da estreia. Se hoje podemos ver uma cópia incrível da Kino International com cerca de 95% do filme original, é porque em 2008 foi encontrada na Argentina uma versão de 16mm com os fotogramas perdidos. Que chatice, Jorge, o que interessa isso? É, eu sei. Tenho um gozo adicional (lembro-me de vê-lo filmado no Cigarrette Burns do Carpenter) por estes filmes resultarem de uma caça e por milhões de pessoas antes de mim não os terem conseguido ver porque a caça não estava concluída. Há egoísmos piores, vai.

  2. Aliás, graças a Deus por esse restauro: só aquele Intermezzo já valia os dois anos de trabalho.

  3. Vi Metropolis como uma criança veria. Ou seja, ele fez-me não pensar e entrar no enlevo da história e das imagens, o que é ótimo. É incrível como as obras-primas do passado são tão espetáculo e como o cinema mudo é rapidíssimo e eficaz a contar a sua história. Talvez não tenha havido evolução da linguagem sem pensar o público receptor. Muito refrescante de pensar.

  4. Reparem como Lang filma e ilumina Brigitte Helm de um jeito quando ela é Maria e de outro quando ela é Maschinenmensch. Entretanto, esqueçam Lang e reparem como a extraordinária Brigitte Helm transforma o seu corpo e o seu rosto quando passa de Maria a Maschinenmensch.
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  5. A direção de arte é aquilo que sempre se soube, mas arrisco dizer que é a primeira vez que apareceram no cinema a câmera de vigilância e a videochamada - décadas antes de serem inventadas. Se alguém souber de alguma aparição anterior, comenta aí.

  6. Diz-se que há marxismo em Metropolis, mas, sinceramente, como comunista ele é bem fraquinho. O dono da cidade (e dos meios de produção, se quisermos ser espertinhos) é o "cérebro". Os proletários, burros o suficiente para se deixarem levar pelo ímpeto de destruição sem lembrar que estão pondo os seus filhos em perigo, são as "mãos". Para se entenderem, só precisam de um "coração", que aparece na figura do bonzinho filho do dono, tão herói à moda antiga que para ser o Errol Flynn só lhe falta a capa e a espada. Mais do que comunista, Metropolis é keynesiano: ele só quer um capitalismo com amor.

Melhore a sua vida em meia hora

Saia do Facebook. Ou não saia do Facebook. Continue por lá, ou não. Eu não saí, ao mesmo tempo que estou escrevendo muito lá. Está confuso? É para confundir mesmo.

Já há uns tempos que andava cansado com a bacoquice do Facebook, mesmo antes da cena toda do Cambridge Analytica. A propósito, vocês caíram nessa? Pelo amor, né. Parafraseando aquele meme antigo, a melhor maneira de não ter os seus dados compartilhados na Internet é não os compartilhando.

Ao mesmo tempo, a conversa de sair do Facebook sempre soou, ela mesma, a bacoquice do Facebook. Por deus, tenho tanto amigo lá divulgando tanta coisa interessante. Não quero sair, não. Quero é não ficar exposto a tanta bosta irritante.

Um dia, decidi então que ia acabar com uma rotina que durava há anos: deixar a página do Facebook aberta o tempo todo, evitando distração, chateação e crispação minhas e alheias.

Primeira dificuldade: e se algum amigo ou parente quiser chamar? Superada com o Messenger.

Segunda dificuldade: eu seguia um monte de jornais e sites no Facebook, que punha em prioridade na timeline, para ver primeiro as notícias do momento. Como lidar?

Lida-se assim: comece por aceitar que as notícias mais compartilhadas nem sempre são as que mais lhe interessam. Em seguida, volte ao fiel, antigo e lindo RSS. Com o Feedly, acompanho tudo o que me interessa e, se encontro um artigo que quero ler mais tarde, mando-o automaticamente para o Pocket. Ambos são gratuitos e funcionam tanto no celular quanto no browser, tudo sincronizado.

Mais umas coisinhas: como comecei a sentir que queria mandar alguns artigos do Pocket para o Kindle, instalei o Upload to Kindle no celular. Dois ou três cliques e tenho o texto no leitor na hora. Ainda cheguei a usar, no browser, o P2K, que envia automaticamente para o Kindle todos os artigos guardados no Pocket na periodicidade que se quiser, mas acabei por abandonar, porque os textos são enviados em forma de digest e não em arquivos separados, o que fica pouco prático se quiser guardar só um ou outro para ter de referência.

Por fim, como postar no Facebook sem nem entrar lá? Com o Hootsuite, também para mobile e browser, com o qual consigo até publicar simultaneamente no Facebook e no Twitter. Depois, só vou lá de vez em quando para ver se vocês gostaram e aproveito o momento para uma passada pelos vossos desabafos e novidades.

Aproveitem e sejam felizes e, se tiverem dicas, mandem!

SPOILER: Greed (1924)

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  1. Nunca vira Greed (Ouro e Maldição BR, Aves de Rapina PT). Escolhi a versão de 1999 da Turner, de 4h. Se 4h parecem muito, é de lembrar que o diretor tinha feito um primeiro corte de 8 horas, que a Paramount sequestrou e mutilou para 2h. O melhor foi que o estúdio perdeu as horas cortadas, diz a lenda que por conta de um faxineiro distraído. A versão completa - que terá sido vista apenas por umas doze pessoas numa estreia para amigos - já foi chamada de "Santo Graal" dos filmes perdidos e afloram de vez em quando lendas sobre bobinas escondidas em misteriosas coleções privadas.

  2. As 4h da Turner foram reconstruídas a partir de fotografias e de uma escaleta original de Stroheim. Pelo menos, dois subplots foram recuperados, expandindo uma análise cruel da natureza humana, tão cruel que reconheci nela pessimistas posteriores como Herzog. Estarei louco? Talvez apenas ambicioso, mas fazer o quê? Sou humano.

  3. Há muito tempo que não via cinema mudo. Revê-lo confirma-me uma sensação que tenho desde o "Story of Film" do Marc Cousins: a inventividade era muito maior, o ritmo muito mais intenso. Tudo para prender a atenção do espectador.

  4. A personagem principal, McTeague, começa no escuro de uma caverna e termina a sua viagem sob a luz do deserto, numa sequência que demorou dois meses a filmar. McTeague, o bom selvagem, mas indefeso contra os defeitos da humanidade. Quem pensa que representar nessa era equivalia a fazer um esfumado no olho e dar pulos histriônicos deve olhar para Gibson Gowland, o ator principal, um gigante que rouba a cena num segundo.800px-greed2c_19242c_12_scale

  5. Não consigo afastar o pensamento que hoje Stroheim teria feito isto numa série para binjar e estaria tudo bem. Por causa de Greed, vou pensar duas vezes antes de me queixar sobre a vida.

O casamento real

É possível ver o casamento do príncipe Harry com Meghan Markle de várias formas.

As roupas, os chapéus, o vestido da noiva a barba do noivo, as alianças, o bolo: quem tenta perceber o que poderá ou não ser tendência no consumo dos próximos tempos presta atenção a estes pormenores.

Porém, há uma pergunta curiosa, bem simples, que poucos se fazem: por que este casamento tem o poder de definir tendências?

Porque é real, dirão alguns. Por que, então, os casamentos reais da Dinamarca ou do Butão não têm o mesmo poder de influenciar modas pelo mundo?

Isso leva-nos àqueles dias em que não havia Netflix, a vida das pessoas era cinzenta e o principal função da realeza estava mais à vista: ser corpo que espelha a hegemonia cultural e política da Grã-Bretanha, e do seu império, no mundo.

Ou seja, esmagar os adversários por dentro e por fora, como quem diz "olhem como somos grandes, resplandescentes e respeitáveis".

A família real funciona como os personagens de uma novela, ou como uma mitologia privada, que, num diálogo permanente, molda os seus súditos ao mesmo tempo que é moldada por eles.

Meghan é atriz, americana, filha de uma negra e um branco. Harry casou com ela numa cerimônia ecumênica, com um pastor negro, um coro gospel e convidados famosos conhecidos por suas posições progressistas. A noiva entrou sozinha na igreja e omitiu a obediência ao marido nos seus votos.

Não ponho em causa a sinceridade dos sentimentos do casal nem escondo a minha simpatia com as causas levantadas hoje. Que ótimo que a realeza britânica demonstra abertura.

Só não esqueçamos que ela o fez numa cerimônia que é, como sempre foi, um puro ato de exibição de poder.

Por que me marquei como seguro no desmoronamento do prédio em São Paulo

Hoje de manhã, depois de um prédio a menos de 2km da minha casa ter incendiado e caído, marquei-me como seguro na funcionalidade que o Facebook disponibiliza nesses casos. Estou a começar uma gravação, então tinha que trabalhar durante o dia e, como moro num continente diferente do da minha família e de muitos dos meus amigos, não queria que ninguém ficasse preocupado desnecessariamente e a mandar-me mensagens que não conseguiria responder.

Pela tarde, uma colega comentou que estava rolando uma discussão no Facebook sobre quem desnecessariamente se estaria marcando como seguro, numa espécie de reflexo torto do perene divórcio litigioso entre as classes sociais do Brasil. Quando cheguei a casa, apercebi-me que vários amigos meus tinham entrado nessa batalha também.

Há uma guerra cultural neste país e no mundo e todos somos soldados nela. Faz todo o sentido que uma tragédia entre na cultura e, por consequência, na guerra cultural.

Os posts não me incomodaram nada, nem julgo quem os escreveu. O impulso que me fez marcar-me como seguro foi íntimo e, considero, mais importante do que a significação cultural do ato. Ou seja: alegremente aceito a acusação de ridículo se esse é o preço de fazer um parente ou amigo dormir mais descansado.

"Ah, Jorge, mas tudo bem, você mora no centro, tem a família longe e tal. E quem mora em Moema e tá se marcando como seguro falando que é para os amigos no estrangeiro?"

Até pode ser, mas é verdade que a notícia do desabamento do prédio passou em todo o mundo, como, ao longo dos anos, também passaram em todo o mundo notícias de atentados em Paris, em Londres, terremotos, inundações, derrocadas.
Ao longo do tempo, vi amigos e familiares marcarem-se como seguros num monte de coisas, morassem perto ou longe dos locais dos desastres - porque quem pode dizer se eles não estavam no local do desastre na hora em que ele aconteceu?
Outros simplesmente postavam mensagens como "gente, não se preocupem comigo, está tudo bem" ou compartilhavam um vídeo de gatinhos.
Qualquer uma destas coisas me deixava mais tranquilo. A ausência de notícias e movimentos fazia-me pensar que poderia ter mais uma campa a visitar.
Nenhum tipo de mensagem me pareceu eticamente mais ou menos correta do que a outra.

Mas isso, realmente, não importa nada. Importante é que, no meio disso tudo, não se esqueçam que há pessoas a precisar de ajuda. Por favor, façam o que for possível. Fui há pouco no Paissandu levar comida, roupa e mantas. Fui guiado pelos orientadores no local para uma família de umas cinco pessoas que estavam num colchão no chão. Talvez fizessem parte do pérfido sindicato do crime que o nosso prefeito diz que residia no prédio, mas, entre duas crianças e três adultos com o rosto marcado pela preocupação com o dia de amanhã, não me pareceu.

Sei que também estão recebendo doações na rua Benjamim Constant 170 e, a partir de amanhã, na sede do PSOL, na Alameda Barão de Limeira 1412. Comidas não perecíveis, mantas e produtos para bebê (fraldas, mamadeira, etc) parecem ser as prioridades.

Termino dizendo que, quando voltei, olhei para o lugar onde até ontem havia um prédio. Na frente do céu recortado, ainda pairava no ar a poeira do concreto, que caía sobre quem perdeu tudo o que tinha na derrocada. Em quem passava, aquela ausência impunha a memória da morte, da perda e um silêncio respeitoso.

Não são necessárias cruzes ou monumentos: hoje aquele espaço vazio é luto.

O que realmente estava em causa na decisão sobre o habeas corpus de Lula

A sanha da luta política e cultural em que vivemos não permitiu que muitas pessoas percebessem que, na verdade, a discussão de ontem foi sobre uma divergência jurídica bem complicada e que diz respeito a todos nós. Afinal, ninguém está imune a um dia ser preso.

Voltei então aos meus tempos de Faculdade de Direito e fui pesquisar sobre o assunto.

Primeiro, um detalhe importante. Houve quem dissesse que a prisão após condenação em 2ª instância é regra fora do Brasil. Não é, e este artigo explica bem. Citando:
(No Brasil) há quatro instâncias possíveis de julgamento. Primeiro, nas varas criminais e, depois, nos tribunais estaduais ou regionais federais, em que são analisados os fatos concretos e provas. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF julgam se a lei foi corretamente aplicada nas instâncias inferiores, podendo absolver condenados se houver ilegalidades no processo. (...)

Na Holanda, França ou Portugal, só há, em geral, três instâncias. Ou seja, há uma menor possibilidade de recursos.

Já nos EUA, apesar de haver muitas prisões após a decisão de 1ª instância, elas acontecem ou porque os réus abrem mão de recursos em troca de penas mais favoráveis ou porque lhes é negada a possibilidade de recorrer, um sistema nada isento de falhas. Ainda do artigo:
O juiz federal e professor da Universidade de Columbia Jed Rakoff, por exemplo, diz em artigo sobre o tema que o sistema americano tem penas altas e dá poder desproporcional à acusação em relação aos defensores. Com isso, pessoas inocentes acabam aceitando se declarar culpadas por temer julgamentos longos que podem acabar em graves condenações.

Então, recapitulemos.

Por um lado, o Brasil tem uma instância de recurso a mais do que outros países, o que  pode significar a impunidade de réus poderosos e ricos. Como bem disse Luís Roberto Barroso ontem:
“Se tornou muitíssimo mais fácil prender um menino com 100 gramas de maconha do que prender um agente público ou um agente privado que desviou 10, 20, 50 milhões. Esta é a realidade do sistema penal brasileiro: ele é feito para prender menino pobre e não consegue prender essas pessoas que desviam por corrupção e outros delitos milhões de dinheiros, que matam as pessoas”

Por outro, a Constituição brasileira institui, no seu art. 5º inciso LVII, que:
Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Por "trânsito em julgado", entendam "não haver mais possibilidade de recurso porque se esgotaram os prazos ou as instituições para recorrer".

Aqui é que a coisa fica interessante.

Considerando o art. 5º, se alguém for preso antes do trânsito em julgado, isso equivale a aplicar uma pena a alguém que não é constitucionalmente considerado culpado.

Porém, surge a dúvida: a Constituição proíbe considerar culpado antes do trânsito em julgado, mas não proíbe expressamente a aplicação de uma pena a alguém nessa condição. O El País resumiu ontem bem a divergência de opiniões:
Os que não concordam com a prisão após o julgamento em segunda instância argumentam que o inciso afirma que ela só pode acontecer quando não existam mais recursos, já que só assim alguém é considerado "culpado", segundo a Constituição; por isso, a prisão antes disso seria ferir a presunção de inocência do indivíduo.

Os que defendem a prisão após a segunda instância afirmam que considerar "culpado" é diferente de prender e que a expressão constitucional serve apenas para colocar o nome do réu no rol dos culpados.

Eu diria que o problema se resolveria mais facilmente mexendo no processo penal e eliminando uma instância de recurso, mas isso daria muito trabalho e acabaria com alguns empregos no meio judicial. Então, a solução mais lógica não interessa a ninguém.

As motivações dos dois lados são muito razoáveis.

Os defensores da pena após 2ª instância pensam na eficácia dos tribunais e em impedir que poderosos consigam evitar as penas ad nauseam.
(Não consideremos este ou aquele ministro do STF que muda de opinião consoante ela possa afetar ou não os seus amigos da política, não vale a pena). 


Os defensores da pena só após o trânsito em julgado consideram que as garantias constitucionais valem para todos e que as consequências que delas se podem razoavelmente intuir são para cumprir.

Então, quem tem razão?

Eu diria que o arremedo jurídico que ontem prevaleceu é um pouco perigoso.

Não me agrada nada essa conversa de "cumprir prisão não significa que depois não venha a ser declarado não-culpado".

É que, considerando ser quase certo que os tribunais brasileiros tomarão esta decisão do STF praticamente com a força de uma ação declaratória de constitucionalidade, ela valerá, não só para Lula, mas para qualquer um de nós.

E agora respondam: se vocês fossem condenados por um crime, achariam justo poderem ser presos sem esgotarem todos os recursos judiciais a que têm direito?

Também achei que não.

Alckmin

Alckmin diz no Twitter:

Curiosamente, eu não discordo de Alckmin.

Eu adoraria que o dinheiro de meus impostos fosse poupado em excrescências e usado para ter educação, saúde e segurança públicas incríveis.

Mas o que sei é que, quando esse papinho neo-liberal começa, está implícita também a ajuda aos amigos empresários, os mesmos que vão financiar a campanha e esperam leis amigas.

Isso fica ainda mais claro no trecho de vídeo que não é transcrito, em que Alckmin gonga a "partidarização das agências reguladoras".

Alguém duvida que "partidarização", no caso, significa apenas "partidarização por outro partido que não o nosso" e que, uma vez chegando lá, as cabeças dos outros cairão para serem substituídas por cabeças ligadas ao PSDB ou distribuídas pelos amigos do Congresso?

É muito fácil falar de mãos invisíveis quando há uma mão pública bem visível te carregando.

8 coisas sobre Marielle

1. A munição usada para matar Marielle veio de um lote vendido à PF de Brasília em 2006.

2. Soubemos que a Polícia Militar tem essas balas desde que foram usado pelos PMs que cometeram a chacina de Osasco em 2015.

3. Essas balas ficaram só com as forças da PM? Foram desviadas para milicianos?

4. É imprescindível sabermos se os mandantes da morte de Marielle são de estruturas regulares policiais, políticas ou do crime organizado.

5. Seja quem for esse mandante, parece claro que Marielle morreu por defender os indefesos e os direitos humanos devidos a todos.

6. Não pode ser pura coincidência seu assassinato com balas de um lote que já foi usado por policiais militares numa chacina poucos dias após denunciar brutalidades da Polícia Militar em Acari.

7. O Estado falhou em dar a uma representante política dos cidadãos mais pobres a proteção que ela merecia.

8. Marielle foi assassinada com balas que um dia foram compradas com o dinheiro de seus impostos.

Sobre Marielle


Não há eufemismo possível: Marielle Franco foi executada.

Fora nomeada relatora da comissão de acompanhamento da intervenção federal semanas antes e criticara a brutalidade do 41º batalhão da PM em Acari dias antes.

Então, a PM como órgão, o 41º batalhão ou, quem sabe, as milícias que tomam conta de certas zonas do RJ aparecem como primeiras suspeitas. Não me surpreenderia.

Há também quem sugira que ela teria sido alvo do crime organizado, em reação à sua posição na comissão da intervenção, o que seria cruelmente irónico, já que ela era contrária à mesma.

Confesso que acho um pouco estranho o caso.

Marielle, do que se sabe, nunca sofrera ameaças e, como vereadora, não me parece que estivesse numa posição suficientemente alta para fazer alguém se sentir ameaçado.

Mesmo que isso tivesse acontecido, o que vemos é usarem os parentes, dizerem algo como "se você não parar, matamos sua filha".



Será que o assassinato fora encomendado para outro político? Não sei.

Será que a loucura crescente do Rio levou a isto? Não sei.

O que sei é que, se hoje é possível matar políticos desta forma no RJ, fica provado que a intervenção federal do exército realmente não serve para mais nada a não ser importunar moradores e salvar a face de Temer depois do fracasso da votação da Previdência.



Chegamos no cume da montanha de discórdia e sanha que começou com o impeachment da Dilma e cresceu com a Lava Jato e só posso esperar que Marielle seja a mártir que vai fazer todos pararem e refletirem.

Mas não estou otimista.

A Garraiada de Coimbra

Talvez um dia, sim, tenha havido na tourada a beleza estranha e cruel de touro e homem dançando com a morte.

Não foi isso que vi em 98 ou 99, quando apanhei o comboio de Coimbra para a Figueira da Foz durante a Queima das Fitas e fui à Garraiada.

Na época, ainda havia "novilhada": um pobre indivíduo de roupas paramentadas tentava provocar um touro magro até que este se aproximasse para ter ferros cravados no lombo.

Nenhum parecia ter muita vontade de estar ali, mas o público aplaudia a cada farpa espetada.

O touro desorientado, como um refém a quem mandavam atacar o captor só para poder ser agredido na volta.

Depois, mandaram um tourinho mais magro ainda para os estudantes pularem em volta e provocarem. A garraiada propriamente dita, ou uma sequência bêbeda e triste de palhaçadas aborrecidas.

Das coisas mais miseráveis que assisti na vida.

Saí antes de acabar e nunca mais voltei.

Nos anos seguintes, continuei a apanhar o comboio sonâmbulo para a Figueira.

Dormia na praia, queimava o rosto, comia gelado e voltava para Coimbra à tarde. Era ótimo.

Desde então, às vezes me intrigo com o absurdo que era pedir para manter certas "tradições" em Coimbra, não só porque ninguém tem obrigação de perpetuar uma tradição de que não gosta, mas também porque se vai descobrindo como cada uma dessas tradições foi um dia cuidadosamente inventada, construída e ficcionalizada.

Amanhã os estudantes de Coimbra têm a possibilidade de acabar com este espetáculo de trampa.

Seria bom que o fizessem.

Defeitos do Brasileiro: A Elite

Nesta série, analiso os pequenos grandes defeitos que descubro em vocês, meus amigos brasileiros. Vocês são um povo extraordinário e fascinante tanto nas qualidades quanto nas mazelas, mas quero debruçar-me sobre estas últimas, porque quem quer saber de qualidades, não é mesmo? Não estou jogando pedras, porque, como todos, sou pecador e também porque não quero: acredito sinceramente que, melhor do que ser perfeito, é ser deliciosamente imperfeito. 

Como diz Eduardo Bueno no seu ótimo canal Buenas Ideias, o que se segue está cheio de generalizações. Mas, como de boas especificações está o inferno cheio, espero que me perdoem.

Os meus anos no Brasil ensinaram-me que sempre que a elite brasileira espreita por cima dos muros de seus condomínios privados para dizer alguma coisa é geralmente digno de nota.

Não por boas razões, é claro.

Por "elite", não quero dizer grandes pensadores, artistas ou políticos, mas aquela alta burguesia mesmo, que, no seu faustiano caminho para o topo, parece ter prometido a Mefistófeles não só entregar a alma no final da viagem mas também despojar-se de todo e qualquer bom senso no caminho.

Mefistófeles terá dito Mas, olhe, não é realmente necessário, só para ouvir Não, Mefistófeles, se é para fazer isso, vamos fazer a sério. Toma meu bom senso aqui e vamoquevamo.

E Mefistófeles aceita, relutante, e, ao virar da esquina, joga o bom senso da elite brasileira no lixo, porque já é tão pequeno e pouco impressionante que não vale a pena levar para casa nem tentar vender na Santa Efigênia.

Talvez por isso a elite brasileira seja responsável por tantas e tão estranhas afirmações, daquelas que nunca se espera ouvir de ninguém.

Metrô do lado de casa? Não queremos.

Ciclofaixas tirando espaço aos carros? Nunca.

Dar mais dinheiro à cultura, aos museus, ao teatro? Imagina.

Não gostamos de quem está na presidência, vamos quebrar a normalidade democrática? Conta comigo.

O apego da elite brasileira ao seu carro estupidifica ao ponto de fazer pensar se ela não terá uma freudiana inveja de taxista.

O "público" em "transporte público" assusta-a.

A ideia de classes menos abastadas se movimentando, ameaçando a chiqueza esterilizada de seu bairro, ameaça-a.

Abrir o conhecimento, a cultura, a educação e o discurso deixa-a insegura.

Um representante político eleito por uma maioria à qual ela não pertence é um alvo a abater.

Portanto, a observação levou-me à conclusão sofisticada que a elite brasileira é burra e sabe-o.

Em vez de se educar, abrir a cabeça e, aceitando a sua situação privilegiada, ajudar a sociedade como um todo a avançar, prefere sonegar impostos e manifestar-se contra tudo aquilo que pode expô-la e as suas fraquezas ao opróbrio e ao reconhecimento da sua íntima inferioridade.

É como se os muros e o arame farpado de que se cerca não servissem para a proteger, mas para a esconder.

Fascinada com os paramentos e os chapéus que vê em suas televisões turbinadas quando príncipes ingleses se casam, sente-se de qualidade inferior e culpa o seu país pelos seus próprios defeitos.

E o mais fascinante é como, nesse ímpeto de autoproteção, ela, que ascendeu com o dinheiro, inventou uma identidade de classe que mantém além do dinheiro.

Já conheci moradores da Vila Nova Conceição que quebraram e viviam com menos dinheiro do que terá, por exemplo, o dono de um boteco de Taboão da Serra, mas, ainda assim, falavam com condescendência da "gente feia da periferia", com quem evitavam contato além da babá ou da doméstica, certamente devidamente uniformizadas ou, se preferirem, "diferenciadas".

As elites do antigamente, dos tempos que a Globo gosta de mostrar nas novelas das seis, tinham uma espécie de código de honra aristocrata.

Aqueles que, por obra e graça dos reis, deus e nossa senhora, tinham herdado uma posição, propriedades e rendimentos conexos e, por isso, se consideravam superiores à plebe, consideravam que fazia parte de sua posição de vanguarda social ser mecenas de teatros, artistas, organizar saraus e dar esmola para alimentar a mente e o corpo da turba obscurecida.

Como disse no início, com certeza generalizo.

Ser rico não é crime no presente e no passado muito aristocrata terá cagado para o que se esperava dele.

O argumento é apenas que, se você fosse aristocrata, era esperado de você mais do que a simples prática do escrotismo, do alheamento e da mediocridade.

E o mais fascinante é que, a partir do momento em que a classe do topo fixa essas características definidoras de si mesma, as pessoas que querem chegar ao seu nível adotam-nas para, um dia, quem sabe, serem também aceitas no clube, espalhando assim o escrotismo, o alheamento e a mediocridade por toda a sociedade como uma dengue que não precisa de aedes aegypti.

A elite gosta de imaginar o Brasil como um grande trem em que ela está na frente, puxando vagões que diz serem pesados, lentos e preguiçosos.

Mas eu tenho certeza que é a locomotiva que é fraca.

O que pensei enquanto assistia o filme proibido de Louis CK

I Love You, Daddy, escrito e dirigido por Louis CK, foi banido depois de o autor ter sido levado pela enxurrada de denúncias de 2017.
Estas são as coisas que fui pensando enquanto via.

(tem spoilers)

1


É uma pena e também de uma ironia fatal que a carreira de CK tenha sido interrompida neste filme.
Por causa da revelação de suas perversões no mundo do espetáculo, é "cancelada" a obra em que ele analisa a possibilidade de um relacionamento puro (entre pai e filha)... no meio dos pervertidos relacionamentos do mundo do espetáculo.
Na verdade, a dado momento, é dito mesmo que toda a gente é pervertida.
Olhando as personagens, faz sentido.
Um diretor quase septuagenário de quem se desconfia ser abusador de menores.
Um ator que faz comentários sexuais inadequados o tempo todo.
Um roteirista apaixonado por uma atriz grávida que a dado momento lhe diz "você dormiu comigo para eu te dar o papel", só para ela responder "não, eu falei que queria o papel só para dormir contigo".
Lembra-me um ensaio sobre comédia que li uma vez.
Aparentemente, para os gregos antigos, a comédia, e não a tragédia, era a forma artística superior.
A tragédia era feita a partir da perspectiva humana (adoecemos, morremos), enquanto que a comédia correspondia ao olhar divertido dos deuses enquanto nos observavam lá do alto.
"Olhem esses tontinhos sendo perversos", parece dizer CK.

2


CK adora os seus atores.
Ele adora colocá-los para falar, adora monólogos, adora dar-lhes espaço.
Isto leva-o a uma forma bem teatral, como se cada cena fosse uma desculpa para colocar os atores a contracenar nalgum canto (a cena da filha contando o encontro com o John Malkovich numa loja é bem revelador disso).
Se, em Horace and Pete, ele já tinha feito a ligação entre essa dinâmica e os formatos clássicos de televisão, neste filme ele recorre às convenções do cinema americano dos anos 40, ao mesmo tempo que invoca Lolita e Manhattan.
O seu repertório é maravilhoso.

3


Quem acha que a personagem da filha é um apenas um objeto bidimensional para o pervertido CK babar e fazer tarados como ele babarem deve esperar a maravilhosa cena em que ela conta a John Malkovich a sua experiência de spring break.

4


O que fez CK famoso foi a sua capacidade para falar sobre a sua vida privada com honestidade total.
É excessivo dizer que toda a sua obra deve ser vista através do filtro de desrespeito para com as mulheres, porque ela é muito mais do que isso.
As perversões de CK - cuja gravidade não vou discutir - existiram e, no momento em que o filme foi gravado, CK já tinha pedido desculpa a suas vítimas, mas continuava negando publicamente os seus pecados.
Sabendo isso hoje, é impossível não ver o filme com esse viés. Mas, como disse, ele é muito mais do que isso.
No mundo de CK, a humanidade é um caos e quase ninguém é inocente.
Quem é - e a personagem da filha é - deve ser protegida.
Por isso, estava todo errado o hype todo do tempo do escândalo, no seu tom de "oh, não, vejam como esse homem horrível fala de uma menina sendo abusada por um cineasta mais velho como se fosse uma coisa normal e compreensível".
Não digo "errado" no seu julgamento moral, mas porque foge completamente do que o filme é e conta.
Primeiro, porque ficamos o tempo todo a avaliar se o abusador realmente abusa ou não.
Segundo, porque CK não faz apologia de nada, sendo, no máximo, reflexivo sobre agressões de que ele próprio um dia foi culpado.
Terceiro, porque o motor da história é, na verdade, a batalha pela inocência da filha, que o pai CK, quebrado pela vida, quer perpetuar, talvez para ele mesmo poder acreditar na bondade do mundo.
O fatalismo da história é o de que ele não pode querer isso ao mesmo tempo que pede que a filha se torne adulta - ou seja, plena de si mesma, com defeitos e feridas.
É como se o filme nos dissesse "sim, estamos todos fodidos e é por isso mesmo que não nos devemos importar".
Dizer que não deveria ser assim, e que deveria haver um final com o castigo de quem se comportou mal, é defender que a finalidade última da arte é ser moralizante, e eu não concordo com isso.
A derradeira ironia do filme é essa.
Apesar de ser em preto e branco, ele diz-nos que nós, pessoas, estamos cheias de áreas cinzentas.

Defeitos do Brasileiro: O Pequeno Poderoso

Nesta série, analiso os pequenos grandes defeitos que descubro em vocês, meus amigos brasileiros. Vocês são um povo extraordinário e fascinante tanto nas qualidades quanto nas mazelas, mas quero me debruçar sobre estas últimas, porque quem quer saber de qualidades, não é mesmo? Não estou jogando pedras, porque, como todos, sou pecador e também porque não quero: acredito sinceramente que, melhor do que ser perfeito, é ser deliciosamente imperfeito. 

Dizia Dalberg-Acton que todo o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente.

O brasileiro médio parece ter absorvido muito bem essa sentença e, por isso, contenta-se em ser apenas pequenamente corrompido ao conquistar um pequeno poder.

Não falo daquela conhecida e feia corrupção política, do troca-troca e rouba-rouba e pega-pega. Dessa vocês já estão fartos de saber.

É mais aquela corrupção estilo Sassá Mutema, do homem bom que vai dando pequenas e saborosas dentadas na sua moral até que dela não reste mais do que um miserável e triste toco.

Falo do síndico do prédio que quer porque quer aumentar o condomínio de todos para instalar uma tela LCD no elevador que anuncie as notícias do dia e a previsão do tempo que vocês acabaram de ver no Wifi de casa.

Falo do porteiro que, com um singelo olhar, já decide que um visitante não é bom o suficiente para alugar um apartamento no prédio e que nunca deixará um entregador de pizza entrar na portaria, mesmo que lá fora comecem a chover canivetes com as pontas viradas para baixo.

Falo do funcionário de repartição que te faz esperar porque não gostou da tua cara.

Falo do administrador de grupo de Facebook que adora impor aos seus membros as regras e castigos que defecou numa noite solitária do mesmo jeito que o Dr. Moreau impunha as suas às criaturas da ilha.

(há que considerar a leve diferença de que o administrador bloqueia e o Dr. Moreau matava. Mas acho que deu para entender o argumento).

Num país tão grande, surpreende que tanta gente adore conquistar o seu pequeno espaço para brincar de pequeno ditador ou, melhor, de pequeno bundão.

Eu sei que a atitude tem a ver algo com os grandes bundões do passado e presente, que chegaram e chegam com pessoas e armas (principalmente com armas), disseram e dizem "isso agora é meu" e levaram e levam.

Mas a bundice alheia não deve motivar bundice própria, amigos.

Não é porque o António Conselheiro perdeu o arraial que você tem que transformar o seu próprio quintal em sertão.

Aí, você pode dizer "se não gosta, não é obrigado a ficar no prédio/grupo/mesa do bar", mas não seria melhor para você mesmo respirar um pouquinho e considerar o outro?

Amargura no coração mata mais do que não ter poder, amiguinho.

Que o diga Getúlio Vargas, suicidado com uma amarga bala.

O que é o FERIDO

Uma vez, vi uma entrevista ao Duke Ellington em que lhe fazem uma pergunta qualquer sobre "o seu povo". Avesso a deixar-se categorizar, um elegantíssimo Ellington divaga docemente. "O meu povo... qual dos meus povos? Estou em vários grupos. Estou no grupo dos pianistas, dos ouvintes..." . Entre outras hipóteses relutantes, ele diz que faz parte do "grupo dos que aspiram a ser diletantes". Se quiserem ver a resposta inteira, está aqui.

https://youtu.be/aAx_qsCjHiM?t=1h43m37s

Aquele eu que já então varava madrugadas vendo filmes de nacionalidades estranhas e vídeos em localizações recônditas, lendo ideias diferentes e tentando juntar palavras até fazerem sentido,  identificou-se totalmente com "o grupo dos que aspiram a ser diletantes". Diletante é o que se deleita, o que faz pelo prazer, o que estuda sem ter (e talvez porque não tem) um exame para passar.

Aconteceu que, há uns 6 meses, eu decidi compor uma música para dizer umas coisas que me pareciam precisar ser ditas. Tinha um microfone, tinha uma guitarra, tinha software, então, gravei mesmo. Depois, decidi fazer um vídeo. Peguei no celular, pressionei o "rec" e juntei mais umas quantas imagens que me pareciam apropriadas. Depois, era preciso lançá-la. Então eu pensei: já que estou a inventar uma música, porque não invento um músico? Pensei num nome, inventei um logo, criei um canal no YouTube e uma página no Facebook. E assim nasceu o FERIDO. Depois disso, tudo o que vou inventando ou copiando em música vai para lá, incluindo esta canção, que fiz para a minha terra natal depois que ela ardeu.

https://www.youtube.com/watch?v=NJKKVULPgsE&t=76s

Não sou guitarrista, mas, bem ou mal, gosto de tocar guitarra. Não sou produtor, mas, bem ou mal, gosto de gravar e editar. Não sou compositor, mas, bem ou mal, gosto de criar canções. Sou apenas um diletante, e quem quiser que ouça. Espero que gostem e, se quiserem, chamem para conversar.

Para você, o meu amigo que todo mundo desconfia ser gay, mas ninguém tem certeza

A gente nunca conversou sobre isso, porque pertence a cada um o querer falar sobre isso ou não.
No entanto, sem que chegue a seus ouvidos, o questionamento existe entre nós, seus amigos.
E não existe, repare, porque isso nos importe muito ou porque vá mudar profundamente as nossas vidas.
A grande verdade é que as pessoas são todas meio egoístas, e trabalhar o nosso próprio bem estar ocupa grande parte do nosso tempo.
Não é que nós sejamos assim, é o mundo que é.
Nós só coincidimos em existir nele.
Se outros mundos houvessem, talvez não fosse assim.
Elon Musk está aí, tentando levar-nos daqui para fora, quem sabe por essas razões.

Porém, há aqueles momentos do dia em que pensamos se aqueles de quem gostamos estarão bem e se poderemos fazer alguma coisa para estarem melhor.
E é nesse momento que pensamos em você.
Depende de você querer ser feliz ou não, e não vou ser eu a dizer que, para o ser, tem que andar por aí abrindo o cadeado do seu diário.
Pessoalmente, eu até acho que esse papo de felicidade é sobrevalorizado.
Se almoçou e jantou e dorme por baixo de um teto, já está melhor do que muitos.

Eu só gostaria que você entendesse que, se isso for importante para você, e se por acaso o seu silêncio sobre aquilo de que gosta, não gosta ou não sabe se gosta vem do medo de que os seus amigos resolvidos na heterossexualidade deixem de ser seus amigos, ou te deem uma palmadinha no ombro enquanto dizem "que bom que você falou" e depois se afastem porque não sabem mais como lidar com você, para já com isso.
A gente já sabe que nestas coisas não há normal. Como poderia, se não há norma? A gente já conviveu com tudo o que é matiz sexual, já flutou sobre todas as possibilidades da vida e, melhor ainda, a gente já é velho e sabe que todo mundo está fodido.
Todos temos que pagar impostos, o dinheiro é mais finito do que as contas por pagar, vamos ser idosos mais ou menos doentes e, pelo caminho, haverá pessoas nos desapontando, nós desapontando pessoas, e é assim mesmo.
Você falar "eu gosto de meninos", "eu gosto de meninas", "eu gosto de tudo" ou "eu não gosto de nada" não vai mudar isso.
As bocas estão por aí, os corpos junto com elas, e as leis que regem as atrações e os encontros são pormenores quando comparadas com a reforma da Previdência.

Ser seu amigo significa que, depois de resolvidas as nossas necessidades, o que a gente mais quer é te ajudar a ser feliz.
Devo te avisar que minha prima ficou solteira ou que meu primo ficou solteiro ou que ambos ficaram solteiros?
Eu não sei, porque eu nunca vi você com ninguém.
Se o que você quer é continuar o silêncio, porque você considera que a sua vida íntima é sua e eu não tenho nada a ver com isso, nem vou ficar me perguntando se você me considera menos amigo por nunca me ter falado sobre o assunto e evitarei para sempre o pensamento mesquinho e invejoso que talvez você tenha falado sobre isso com outro amigo mais merecedor.
Eu adoro o silêncio e, se o que te deixa bem é deixar as coisas assim, maravilha.
Mas, se você sempre quis falar algo e nunca soube como, fica à vontade também, rapaz.
Você vai me falar dos teus problemas e eu vou poder dar os meus conselhos.
Provavelmente, estarão errados, mas serão sinceros e virão com um abraço.

Então, deixa de neurose, tá bom?

Teu amigo,
Jorge.

Sobre

Sou português e moro no Brasil, onde sou roteirista fixo na produtora Moonshot Pictures e desenvolvo vários programas, como o Desafio da Beleza, Cozinheiros em Ação, Que Seja Doce, The Taste Brasil e Que Marravilha: Aula de Cozinha.

Em Portugal, fiz o documentário Salvador no Brasil, para o Canal Q, e escrevi a série interativa online As Portas. Sou autor do e-book Uma Semana com Jack Nohaybanda (2014  - comprar), do livro Voz (Páreas Párias, 2013), do CD e DVD Magnetic Poetry, com a banda Social Smokers (2010) e do livro de crônicas A Estrada Curva (2004).

Participei de várias antologias de poesia ou ficção: Como Desenhar o Corpo Humano (Companhia das Letras, 2018 - comprar), O Pequeno Livro Sagrado do Menor Slam do Mundo (Edições doburro, 2012), Um Rio de Contos (Editorial Tágide, 2009) e Jovens Criadores 2005 e 2006 (101 Noites).

Em cinema, colaborei no roteiro do longa Um Funeral à Chuva (Lobby Productions, 2010) e fiz o curta Mediano (2011), vencedor do prêmio do Júri e do Público no Festival Silêncio.

Fui libretista das óperas Bichus (2007), A Chorona (2008) e Deu la Deu (2011).

A pior viagem da minha vida

1. SÁBADO: SÃO PAULO
Cheguei ontem de uns dias em Minas Gerais. Comi muito bem e sinto o estômago inchado até agora. Penso que, quando voltar ao Brasil no início do ano, depois de passar o Natal em Portugal, vou recomeçar a correr para abater a barriga.

Eu não sei ainda como os nutrientes acumulados no meu corpo serão preciosos nos meus próximos dias.

Converso no Skype com a minha mãe. Ela pergunta-me quais voos eu vou apanhar. Há uma semana, antes de partir para Minas, deixei já a mala de Portugal semifeita, bem ao contrário do meu hábito de deixar tudo para a última hora. O papel com o itinerário está prontinho, impresso em cima da mesa. Pego, leio e reparo em algo que não reparara meses antes quando comprei o bilhete, algo que sempre evitei fazer ao marcar passagens: o meu voo da Latam vai chegar a Heathrow, mas, para ir para o Porto, vou ter de ir até Gatwick, outro aeroporto de Londres, e apanhar um da British Airways. Apesar de ter quatro horas entre um e o outro, fico inquieto.

Faço pesquisas. Um site, já não sei se da British Airways ou do próprio aeroporto, recomenda os buses da National Express para fazer o translado e reservar 3 horas para fazer a viagem.

Esboço mentalmente o plano de chegar a Heathrow, pegar as malas e, se estiver apertado de tempo para apanhar o National Express, aproveitar o Wifi do aeroporto para chamar um Uber que me leve até Gatwick.

À noite, vou até Guarulhos e tento fazer o check-in na maquininha antes de despachar as malas, mas a maquininha não deixa. O rapaz da Latam diz-me que é por causa da mudança de voo e de aeroporto que vou ter de fazer, e manda-me direto para o balcão, onde sou atendido por uma moça muito simpática. Ela diz-me que, realmente, eles não têm serviço de transfer entre os aeroportos, mas que as quatro horas entre um voo e outro chegarão para pegar a bagagem e fazer a viagem. Para ser mais prático ainda, já me faz o check-in para o segundo voo.

O que nem ela nem eu esperávamos era a tempestade Ana. Mas isso vem mais à frente.

2. SÁBADO-DOMINGO: O VOO PARA HEATHROW
Embarco por volta das 23h30 no voo da Latam depois de uma das maiores filas de embarque que já vi. Esqueci-me de pedir no check-in um lugar no corredor, que sempre prefiro, e acabo sentado numa das cadeiras centrais, entre uma moça com longuíssimas unhas de gel e uma mulher de meia idade com cara de índia que tinha as instruções da tela de entretenimento em francês. O voo corre bem, com pouca turbulência, e, para variar, consigo até dormir umas horas boas, talvez porque não tomei café depois do jantar ou talvez porque os episódios de Friends que estava a ver me deram sono.

O avião chega a Heathrow às 12h30 de domingo, uns maravilhosos 45 minutos antes do previsto. Fico contente e penso que o futuro está a sorrir para mim. Porém, nada acontece, e o avião fica parado na pista. Os minutos transformam-se em quartos de hora, os quartos em meias horas, e nós parados, sem poder sair. O comandante explica que estão à espera de autorização da torre para estacionarem e que, por causa das condições meteorológicas, ela poderá demorar. Olho pela janela: o dia está feio e chove. Imagino que a tal tempestade Ana, sobre a qual tinha ligo fugazmente antes de partir, tenha deixado o aeroporto com muitos aviões em fila para estacionar. Ligo o celular. O meu TIM pré-pago não faz roaming, como já esperava, e a distância do terminal impede-me de acessar o Wifi do aeroporto. Reparo que a moça das unhas de gel está a conversar no Whatsapp e peço para mandar uma mensagem para a minha mãe, só para ela não ficar nervosa com a falta de notícias.

3. DOMINGO, 14h40-15h40: HEATHROW E O TÁXI
Pelas 14h40, finalmente conseguimos chegar ao terminal. Na saída da manga, digo a um rapaz da Latam que tenho um voo em Gatwick às 17h10 e já tenho o check-in feito. Será que ainda consigo pegar? Sei que é longe, mas não sei ainda que são uns belos 70km. Ele diz-me que sim e que posso pegar um bus direto da National Express ou, se precisar, um táxi lá fora.

Corro para as malas, mas a esteira demora um pouco para arrancar. Pego o celular e tento acessar o Wifi. Por alguma razão técnica, apesar de conseguir ligar-me à rede, nada funciona. Não há nem aviso para abrir uma conta em algum site estranho que me dê acesso. Esqueço o Wifi. Finalmente, uma mala aparece na esteira, mas a outra demora e demora e demora...

Agitado, reparo que algumas malas foram retiradas pelo funcionário do aeroporto e colocadas numa fila ao lado da esteira. Vou fuçar, e encontro a minha segunda mala. Olho o relógio: são 15h40, e o meu voo de Gatwick sai às 17h10.

Sem Wifi para chamar o Uber, vou para a fila de táxis. Pergunto se dá para pagar com cartão de crédito – dava – e entro pela primeira vez na minha vida num daqueles táxis engraçados de Londres, com um grande espaço traseiro, onde dá para colocar as malas e ainda sentar mais umas três pessoas em bancos que dobram. Quase uma minilotação. Estou preparado para pagar uma pequena exorbitância, mas tudo bem, pelo menos vou apanhar o avião e reencontrar a minha família, que não vejo há meses, nesse mesmo dia. Para Gatwick, passamos por uma autoestrada, e há avisos de que colocaram sal na via para derreter a neve. O trânsito está pesado, mas anda: o famoso “compacto, mas fluido” que escutei algumas vezes nas notícias das rádios portuguesas.

Pergunto ao taxista a que horas vamos chegar, e ele diz-me que às 16h40. Como tenho malas para despachar, começo a pensar que já não me vão deixar embarcar, mas conforto-me com o pensamento de que já fizera check-in em São Paulo e que isso valeria para alguma coisa.

Mal sabia eu que sair de Heathrow seria o meu grande erro no meio de toda esta história.

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4. DOMINGO, 16h43- 20h30: GATWICK
Às 16h43, o taxista deixa-me em Gatwick. Entro no terminal e corro até ao check-in da British Airways, onde três moças de uniformes azuis conversam e riem. Esbaforido, digo que venho de Heathrow e que tenho um voo para apanhar. Uma delas mexe no computador e, com cara desolada, diz-me que “computer says no”: apesar de o voo ainda não ter saído, já não conseguiriam despachar as malas. Por dez minutos – dez fodidíssimos minutos. Pergunto se não dá mesmo para fazer nada. Com voz condoída, lamenta-se que não e recomenda-me ir até ao balcão de Sales and Reservations.

Este balcão fica ao fundo do terminal, depois dos check-ins. Uma fila de pessoas espera para ser atendida por três funcionários com expressões muito cansadas. À minha frente, estão vários indianos cheios de bagagens a caminho de um intercâmbio em Vancouver. Ao meu lado, um casal de espanhóis fora expulso do avião porque o rapaz tivera um ataque de ansiedade e o comandante não esteve para o aturar. No balcão dos que pagam mais, uma italiana rabugenta resmunga algo do estilo “Claro, temos que aturar, não é? Qualquer país tem algo assim. Na Índia, temos que aturar as vacas na rua, porque tem que ser. E aqui temos que aturar as companhias aéreas!”. Até a espanhola do ataque de ansiedade ao meu lado soltou um “¡Pues, que pesado!...”.

Depois de esperar uma hora, sou atendido por um moço louro, de óculos redondos e que se chamava Harry. Conto-lhe a minha história. Ele conferencia com a sua colega e diz-me que a culpa é da Latam: apesar de o avião ter aterrado 45min antes da hora, o fato de só ter conseguido sair do voo deles horas depois do previsto torna-os responsáveis por custearem as minhas despesas de estadia e alimentação e por marcar um novo voo para eu seguir para o Porto. E nesse momento percebo que virei uma pequena e insignificante peça num jogo do empurra entre duas companhias aéreas. Digo “bem, vocês são parceiros da Latam. Você pode entrar em contato com eles por mim?”.

“Infelizmente, você mesmo é que terá de fazer isso. É uma pena, porque eles não têm balcão aqui em Gatwick. Mas vou-lhe dar o contato deles”. Harry pesquisa “Latam” no Google, dá-me o número deles para a Inglaterra e diz-me que, se precisar, que volte ali para falar com ele.

O meu celular continua a não querer entrar nos Wifis dos aeroportos de Londres. O TIM, claro, é como se não existisse. Em vez de pagar uma batelada num telefone público, decido comprar um “SIM card” (inglês para chip de celular/cartão de telemóvel). Encontro um desk de uma operadora inglesa e a moça vende-me um com um monte de minutos para falar e 10 gigas de dados.

Eu mal sabia, mas, mais tarde, este SIM card vai salvar-me.

Vou fumar um cigarro e aproveito para ativar o SIM card. Estou a ficar cansado de carregar as malas e arranjo um trólei, coisa que não fizera antes porque em Gatwick é preciso colocar uma moeda para soltar o bicho e, na correria, não tivera tempo de procurar 1 euro na mochila. Volto ao terminal, ligo para o número de Latam e fico muito surpreendido por não ser atendido por pessoas na Inglaterra e sim pela mesma linha de SAC do Brasil. Expliquei a minha situação ao atendente, mas ele diz-me que não consegue fazer nada e dá-me um número de São Paulo para ligar. Tento ligar, mas por alguma razão, o SIM card dá ruim e uma voz inglesa pré-gravada diz-me que não tenho mais créditos. Mas o pacote que comprei não dava não sei quantos minutos internacionais?! Bem, deixa. Tento ligar os dados de internet, mas também não consigo. Tenho então a idéia de ligar o laptop, que carregava na mochila e tinha alguma bateria, ao Wifi do aeroporto. Consigo, e converso no Facebook com a minha mãe e a minha namorada, a quem passo o número da Latam de São Paulo. Ela fica uma hora a tentar que alguém me ajude, mas dizem-lhe que não podem fazer nada. Entretanto, confirmo também que a Latam tem um balcão em Heathrow.

São umas 19h e começo a pensar que de Gatwick não me vou safar. Olho para o lado e vejo Harry saindo. Chamo-o.
“Harry, os números de telefone não funcionaram. Estou a pensar que o melhor para mim será voltar para Heathrow e conversar com a Latam lá, cara a cara. Diga-me com sinceridade, se você estivesse na minha situação, o que você faria?”.
Harry solta um sorriso de empatia e diz-me que eu estou certo. Agradeço, mas penso “em Guarulhos havia pessoas da Latam até à meia noite, mas será que aqui há?” Porém, é a melhor alternativa que tenho até agora, então é isso que vou fazer.

Sem nenhum interesse em pagar mais uma fortuna num táxi, vou até o balcão do National Express e compro um bilhete para o próximo bus para Heathrow, às 20h05. Está muito frio, algo como 1 grau centígrado, e, enquanto espero, aproveito e tiro da mala um par de meias, que calço sobre as que já tinha, e uma camisa, que visto sob os dois casacos que já tinha.

Todos os indianos que estavam no Sales and Reservations apanham esse mesmo bus e o motorista demora uma meia hora só para carregar as malas de todos os passageiros. Além disso, ele para nos terminais 5 e 4 de Heathrow antes de chegar ao meu, o 3. Por isso, só cheguei realmente ao terminal às 21h30. A coisa boa foi que, enquanto viajava, tive a brilhante idéia de desabilitar o chip brasileiro e consegui finalmente fazer o SIM card funcionar. Por fim, tinha acesso à internet sem ter que depender de Wifis públicos e instáveis.

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5. DOMINGO, 21h30-00h: DE VOLTA A HEATHROW
Entro no terminal. Há um monte de pessoas sentadas e deitadas pelo chão. Como eu, são vítimas da tempestade Ana, dos overbookings, dos atrasos e dos aeroportos sobrelotados. Vejo um balcão da Latam, mas o que temia aconteceu: está fechado e só abre amanhã. E não abre às 7, 8 ou 9 da manhã, mas a umas terríveis 15h30.

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O que fazer? Desistir, ir para um hotel e amanhã à tarde voltar ao aeroporto para exigir à Latam que me reembolsem e me ponham a caminho de Portugal? Com esta gente toda deslocada e a precisar de voo, quando poderei esperar chegar? Na 3ª feira? Na 4ª? Estou cansado, a última coisa que comi foi o café da manhã no avião que me trouxe até Londres. Não quero arriscar ficar a saltitar de avião pela Europa, quero ver a minha família.

Mudo então o meu plano. Vou comprar um novo voo. Não sei como ou por qual companhia, mas não saio deste aeroporto sem um voo marcado.

Quase todos os balcões de check-in estão fechados, mas no da Royal Jordanian há dois funcionários, um homem amaneirado e uma moça bonita. Pergunto-lhes se há algum lugar no aeroporto onde consiga comprar bilhetes para o Porto. Dizem que não, que terei de esperar a manhã seguinte, mas aconselham-me ir para o piso superior, onde há um internet café e poderei tentar comprar online. Subo pelo elevador e encontro um grupo de portugueses que também ficaram apanhados pela tempestade. Entre eles há um casal que está preso em Londres desde as 5 da manhã da noite anterior.

Não vou ao internet café – afinal, tenho um laptop e um celular com dados - e sigo até ao único coffee shop aberto. Fico em pé, do lado de fora, encostado ao balcão onde as pessoas tomavam cappuccinos. O meu celular está com bateria baixa e, com todo o descaramento, sem nem entrar no estabelecimento, ligo-o na estação de carregamento gentilmente disponibilizada para clientes pagantes.

Com o laptop na frente e celular na mão, corro todos os sites de venda de bilhetes de que me consigo lembrar: Skyscanner, Mytrip, Travelgenio. Em Portugal, a minha mãe chama a mulher do meu padrinho, que tem uma agência de viagens, e pede-lhe para ver o que encontra de bom. Não temos sorte: caros ou baratos, só encontramos voos para 3ª feira ou que demoram mais de um dia. Lembro-me do Gotogate, um site de viagens finlandês onde já uma vezes comprei viagens boas. Entro e – milagre! – encontro um lugar num voo da TAP às 10h10 de amanhã, saindo do London City Airport e chegando ao Porto às 15h com escala em Lisboa. O preço, considerando a pouca antecedência, é bem aceitável, e o fato de ele não sair destes bodiantes Heathrow e Gatwick parece-me um bom presságio.

Clico para comprar, preencho tudo o que é de preencher, mas o site co.uk não me aceita o cartão de crédito brasileiro. Tento de novo – volta a não aceitar. Estou em pânico e com pressa. O laptop, onde conversava com a minha mãe e a mulher do meu padrinho, fica sem bateria e apaga-se. Fico só com o celular na mão. Ponho o número do cartão de crédito da minha mãe, mas o site pede uma autenticação estranha qualquer e também não aceita. Ainda tento o meu de novo, e sou recusado de novo, antes de pôr o do meu pai. O site diz-me que lhe mandou um código de autenticação para o telemóvel. O meu pai manda-me o código pelo Facebook, eu insiro... e o bilhete é comprado! O número da reserva é enviado para o meu email, e eu escuto anjos a cantar!

Ainda fico desconfiado – afinal, esse assento vago não aparecia à mulher do meu padrinho de maneira nenhuma -, mas, depois de meia hora sem chegar um email fatídico cancelando-me a reserva, considero que tenho uma viagem comprada.

Mais relaxado, vou fumar um cigarro. Vejo dois dos estudantes indianos que estavam à minha frente na fila em Gatwick e meto conversa. Digo-lhes que estou no meio de uma viagem interminável, e eles dizem-me que passam pelo mesmo. Conversamos um pouco e percebo que eles são bem mais novos do que parecem: ainda no secundário, vão fazer esse intercâmbio para ajudá-los no seu intencionado curso superior de Informática. Eles são simpáticos e, antes de nos despedirmos, peço para tirarmos uma foto juntos.



6. SEGUNDA-FEIRA, 00h-1h10: O UBER
É tarde já. Decido que não vale ir à meia noite para um hotel para apanhar um avião às 10h10. Afinal, para que me serviu ter feito Interrail aos 23 anos se não para me ensinar a dormir em estações? O melhor é aproveitar o pouco trânsito, ir já para London City e tomar um café, dormitar um pouco, carregar o celular e o laptop, enfim. Os braços doem-me por carregar as malas de um lado para o outro e decido chamar um Uber. Pergunto a dois funcionários do aeroporto onde será o melhor lugar para apanhar um, e eles dizem-me para ir até à cabine do estacionamento em frente, onde eles normalmente param.

Chamo o Uber. Tanveer, que na foto parece indiano e sorridente, aceita a missão e vem. Porém, apercebo-me que, apesar de eu ter dado a indicação do GPS, o Uber não marcou o lugar exato onde estou. Tento ligar para Tanveer para avisá-lo, mas o número memorizado no app é o brasileiro e não sei o número do SIM inglês que comprei. Na rua gelada, ao lado dos taxis, não há ninguém a não ser um homem de capuz a alguns metros de mim. Aproximo-me.
“Senhor, desculpe: por acaso o senhor tem um telefone com número inglês?”.
“Tenho sim”.
“Eu comprei um SIM, mas não sei o número dele. Eu poderia ligar para o seu telefone para você me dizer o meu número?”.
O homem não esboça nem um esgar de estranheza, mas é muito prestável e de imediato faz o que lhe peço. Coloco o número no app do Uber e consigo ligar para Tanveer.
“Tanveer? Sou Jorge, o seu passageiro. Eu não consegui ligar antes, mas estou perto da cabine roxa do estacionamento”.
“O quê? Porque não disse antes? Eu já estou aqui à espera no desembarque. Para chegar aí vou demorar uns 10 minutos... talvez seja melhor cancelar! Você vai para onde?”
“Para o London City Airport”.
Com o olho nos 60km de viagem, Tanveer diz que, tudo bem, então ele vem até mim.

Apesar da agitação ao telefone, Tanveer é bem simpático. Diz-me que gosta do Cristiano Ronaldo e que veio muito jovem da Índia, mas não sei se percebi bem esta última parte, porque, pouco depois, quando lhe digo que no Brasil o pessoal tem uma fixação por beijar, ele responde-me dizendo que as mulheres deles tem uma coisa por fazer sexo por trás. “Perdão?”. “Sim, elas gostam de sexo por trás! É uma característica delas!”. “Mas das indianas, você quer dizer?”. “Então, as nossas mulheres, do Dubai, da Arábia, de Marrocos”. Deixei o tópico passar e, portanto, acabei por não perceber nem de onde Tanveer era nem quem são essas mulheres obcecadas por sexo anal.

Durante a viagem, Tanveer diz-me que não sabia que a TAP saía de London City. É um aeroporto pequeno, diz ele, saem mais voos fretados e domésticos. Fico desconfiado que comprei um bilhete tipo Ryanair, onde só posso levar uma mala de cabine. Vejo o site da TAP e parece que é isso mesmo. “Bem”, penso, “devo conseguir despachar as malas por uma taxa extra”. Toco na medalhinha de São Cristóvão que sempre levo ao peito e repito: “pelo amor de deus, que consiga despachar as malas por uma taxa extra”.

7. SEGUNDA-FEIRA, 1h10-1h45: LONDON CITY AIRPORT
Tanveer deixa-me na entrada de um aeroporto pequeno e isolado, com nenhum movimento em volta, e parte. Não sei, mas a coisa não me cheira bem. Entro. À minha frente está um corredor longo com máquinas de check-in. Do meu lado direito, umas portas automáticas de vidro, através das quais vejo um lobby normal de aeroporto, com balcões de check-in e cafetarias. Neste momento, isto parece-me o eldorado, mas está tudo fechado e não se vê vivalma. “Bem”, penso, “pelo menos fico sentado”. Aproximo o trólei das portas, mas elas não se abrem. “Não...”. Olho com atenção: à minha frente, um letreiro diz que o aeroporto só abre às 4h30. “Puta que pariu...”. Ok, foco. Preciso ir ao WC e tem que haver um por aqui. Sigo o corredor das máquinas de check-in até ao fim, mas ele só leva até uma sala larga com caixas de banco automáticas e máquinas para comprar bilhetes de transportes. Nada de WC.

O corredor não tem ar condicionado e a noite está gelada. Impossível aguentar horas à espera que o aeroporto abra.

De repente, abre-se uma porta e um segurança alto aparece na minha frente.
“O que o senhor está a fazer aqui?”
“Eu não sabia que o aeroporto fechava à noite”.
“Peço desculpa, mas não pode ficar aqui. Razões de segurança”.
“Há algum lugar em volta onde possa ficar?”
“Não. E não pode ficar aqui”.
“Posso pelo menos usar o seu WC rapidamente?”
“Não”.

Este é o momento em que levo a mão ao rosto e, com a voz fraca, não consigo dizer mais nada a não ser “amigo... estou no meio da pior viagem da minha vida”. Na voz do homem, percebo que ele se condói. E ele diz-me uma coisa que depois me vai ecoar algumas vezes na lembrança: “you’ve got to brave it”. Tens que enfrentar a situação, ser valente.

Ele tem razão. Levanto a cabeça e ele diz-me que, ali ao lado, há o Travelodge. “É tipo um hotel, devem deixá-lo ficar pela recepção. Dá uns 10 minutos de caminhada”.
“Mas eu tenho estas duas malonas... posso levar o trólei até lá?”
“Não posso deixá-lo levar o trólei até lá. Mas pode pegar o bus aqui na frente, ele deixa-o lá”.
“Ele aceita euros?”
“Só libras. Há uma máquina lá dentro onde pode sacar”.

Vou até ao caixa automático e, com o cartão de débito português, levanto umas 20 libras. Saio e acendo um cigarro, mas logo chega um bus. Jogo o cigarro fora, entro no bus e pergunto ao motorista se passa no Travelodge. Ele diz-me que não, mas o 747 passa. Saio, acendo outro cigarro e também não o consigo fumar até ao fim, porque logo vem o 747. O motorista é um indiano novo, e diz que, sim, passa no Travelodge. Ponho 10 libras na janelinha que nos separa e ele abana a cabeça.
“Não aceito dinheiro, você vai ter que ir lá dentro comprar o bilhete e pegar o próximo”.
A frase bate-me como um bofetão de cansaço na cara. Olho em volta, desorientado, para as malas, para o aeroporto, para o bus quase vazio, para ele, que me encara com pena.
“Você só vai até ao Travelodge?”.
“Sim”.
“Entra aí”.
Se não houvesse um vidro entre nós, daria um beijo neste homem.

8. SEGUNDA-FEIRA, 1h45-4h20: O TRAVELODGE
O Travelodge fica só a uma paragem de bus do aeroporto. Aos tropeções, carrego as duas malas até à entrada. Penso que estou a perder a força e que tenho de comer alguma coisa. É um hotelzinho simples para viajantes. De fora, vejo que tem um lobby pequeno e, graças a deus, uma cafetaria. A porta de vidro abre-se e um rapaz na recepção pergunta-me se eu estou lá hospedado.

“Então, amigo, eu não estou... eu vim para o aeroporto, mas não sabia...”
“... que ele fechava à noite”, diz o rapaz a rir-se.
“Será que eu posso ficar um pouco aqui até ele abrir?”
“Sim, mas fique aqui nos sofás do lobby. A cafetaria está a ser limpa”.
“Poderia tomar um café?”

O homem que limpava a cafetaria ouve a conversa e resmunga “o que é isto, a Amnistia Internacional?”. Não sei se ele pensou que eu estava a pedir caridade ou se a cafetaria é exclusiva para os hóspedes. Mesmo assim, ele lá acaba por oferecer-me um café e eu aceito a oferta.

Ainda estou a precisar ir ao WC e, entretanto, o recepcionista desapareceu. Pergunto ao homem da cafetaria se há uma casa de banho que possa utilizar e ele diz-me, quase gritando, “Peça ao recepcionista! Não tenho nada a ver com isso!”. O recepcionista aparece, abre a porta do WC e consigo, finalmente, fazer xixi.

Reparo que há uma máquina com chocolates e salgados e penso que deveria comer alguma coisa. Não que tenha fome, mas já sinto dor nos braços de carregar as malas: preciso de energia. Compro umas bolachinhas salgadas e um Kinder Bueno, mas só a custo consigo comer o chocolate. A adrenalina tirou-me a fome e não me deixará dormir enquanto não estiver a caminho de Portugal. Sento-me no sofá e fecho os olhos, mas não consigo dar mais do que umas piscadas.

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Entretanto, um rapaz de barba bate no vidro lá fora e indica-me que a porta automática está travada e não abre. O recepcionista aparece, abre a porta e ele entra, junto com uma moça de cabelo curto. Ele é Borja, espanhol; vem de São Francisco e vai para Bona. Ela é a Svitlana, ucraniana; mora na Inglaterra e vai para Zurique. Estão na mesma situação que eu, fazendo tempo para que abra o aeroporto que ninguém sabia que fechava. Dali a pouco, entra um homem magro de cabeça rapada. É o Jorge, português. Anda a viajar há semanas e acabou por ficar retido em Londres sem conseguir um último voo que o levasse para casa. O Borja e a Svitlana já têm reservas, o Jorge anda a percorrer os aeroportos londrinos a ver se consegue um bilhete milagroso. Acho que todos nos sentimos melhor, não tão sozinhos, e ficamos umas horas a conversar sobre os países de onde somos e aqueles onde moramos, sobre as diferenças de línguas, sobre as nossas profissões, sobre aviões cancelados, overbookings e as malditas companhias aéreas.

Pelas 4h15, decidimos ir até ao aeroporto. Antes de sair, agradeço mais uma vez a gentileza ao recepcionista e digo-lhe que ele é uma pessoa muito boa. E falo alto, para que o mal-humorado na cafetaria ouça.

O Jorge adverte do frio que está lá fora, mas, neste momento, consigo até enfrentar um furacão. Oferece-me ajuda com uma das malas, mas eu recuso: quero ir para casa abraçar a minha família e carrego tudo o que for preciso. “Brave it”, disse o segurança do aeroporto, e eu vou brave it até ao fim.

Ambas as malas têm rodas, mas só uma tem pega de mão, e a que não tem começa-me a pesar pelo meio do caminho. Pouso-a na calçada, esbaforido. O ar gelado atrapalha-me a respiração. Penso em aceitar a ajuda do Jorge, mas ele e os outros já estão mais à frente. Brave it, meu. Enfio um dedo numa argola de ferro que a mala tem em cima e faço as rodas dela girarem. O dedo começa a doer. “Brave it” - troco de dedo. O segundo dedo começa a doer – “brave it”, e troco de dedo outra vez. Chego ao aeroporto cansado, com os dedos e os braços doridos, mas vivo e pronto para deixar Londres.

Mas ainda tenho que perceber como vai ser a questão das malas.

9. SEGUNDA-FEIRA, 4h30-10h10: DE VOLTA A LONDON CITY
As primeiras funcionárias a chegarem ao aeroporto asseguram-me que não vai haver problema com as malas: pago uma taxa a mais e poderei despachá-las sem problema. Só tenho de esperar até que o balcão da TAP abra 2 horas antes do voo, ou seja, às 8h da manhã. “Puta que pariu o esperar”, penso. O Borja e a Svitlana vão esperar que o balcão da British Airways abra às 5h, o Jorge vai esperar que o desk de venda de bilhetes abra às 5h e eu vou esperar que a TAP abra às 8h. Enfim, já estive pior. Respiro fundo. O Borja diz “eu agora só vou descansar quando tiver o cartão de embarque impresso na mão!” e eu penso que é uma bela idéia. Faço o check-in numa das máquinas da entrada e, quando vejo o cartão de embarque sair dela, sinto-me como um mineiro que acaba de descobrir um filão de ouro.

O Jorge pergunta-me se eu consigo ver se ainda há bilhetes para algum voo hoje. Abro o Gotogate, mas eles já só têm lugares para amanhã. Penso “ainda bem que eu comprei ontem...”. Ele vai tentar no balcão da British. Acaba por comprar um bilhete para amanhã mesmo e despede-se: vai alugar um quarto no Travelodge e esperar por lá. Aproveito para ir ao WC e para me sentar num coffeeshop, onde carrego a bateria do celular, tomo um café e como um sanduíche, a minha primeira proteína em umas 18 horas. O Borja e a Svitlana também vão resolvendo as vidas e partindo, mas antes ainda tiramos uma foto juntos.

Enquanto espero dar as 8h10, vejo o lobby do aeroporto encher-se de pessoas, formando uma fila quilométrica que começa no raio X no piso superior, desce a escada, dá várias curvas através de um caminho de separadores instalado pelos funcionários e termina na porta de entrada. Pergunto-me se duas horas vão chegar para enfrentar essa fila e chegar a tempo ao avião ou se me vai acontecer o mesmo que em Gatwick. Respiro fundo. “Brave it”. A adrenalina baixou, e fico a saltitar num e noutro pé para não deixar o sono vencer. Vou lá fora, fumo. Compro uma garrafa de meio litro de água que bebo inteira em 5 minutos.

De repente, o logo da SwissAir dá lugar ao da TAP no painel sobre o balcão do check-in, e eu sou o primeiro a chegar. As malas – obrigado, Deus e São Cristóvão – não são um problema e consigo despachá-las.

Vou então enfrentar a fila gigante de raio X. Fico impressionado: não paro um único segundo e chego às máquinas nuns brevíssimos 20 minutos. Uma mulher com cara de poucos amigos diz “Isto aqui não é Heathrow ou Gatwick! Somos um aeroporto rigoroso e não deixamos passar as coisas pequenas! Tirem tudo das malas!”. Como se fosse um atleta numa prova olímpica, em poucos segundos tiro o cinto da cintura, o laptop da mochila e enfio os liquidozinhos que levava numa sacola plástica que me tinham dado antes. Passo pela máquina e ela não apita, mas uma moça aparece na minha frente e resmunga “senhor, o que você tem no bolso?!”. Olho e tiro a minha tapadeira de olhos, que uso para dormir no avião. Ela mexe nela para ver se não esconde nada perigoso e devolve-ma sem dizer nada. Depois de recompor a mochila e a roupa, viro-me para uma funcionária, a mesma com quem tinha conversado sobre as malas quando o aeroporto abriu, e digo-lhe com sinceridade “minha senhora, esta é uma das melhores operações de segurança que alguma vez vi”. Ela sorri.

Só me resta ir para a área de embarque e esperar o meu voo. Arranjo um lugar em frente a um painel com os horários e logo me sobressalto: o tempo lá fora parece estar a piorar de novo, há vários voos atrasados e o da Lufthansa que sai 5 minutos antes do meu aparece como cancelado. “Por favor, não me cancelem o voo... por favor, não me cancelem o voo...”. Tenso, arranjo um método para descansar um pouco sem perder de vista o painel: fecho os olhos e durmo um micro-sono enquanto conto mentalmente até 60. Aí abro os olhos de novo e vejo o que mudou nesse minuto. É difícil: enquanto eu faço isto, um rapaz inglês ao lado conta aos amigos o seu método para ter milhões de views no Youtube, conversa que faria dormir mesmo quem não está acordado há 24 horas.

O voo da TAP aparece. Parece estar no horário, mas não tem o portão escrito. Fico temeroso que na próxima atualização de horários ele apareça com atraso ou cancelado. “Por favor, não cancelem o voo... por favor, não cancelem o voo...”. De repente, pelas 9h45, o portão aparece, e o horário continua o mesmo. Vou para lá quase a correr e espero para entrar. A fila é longa e não anda, mas, neste momento, acho que qualquer fila me pareceria longa, e é isso mesmo que repito para me acalmar. “Neste momento, qualquer fila te pareceria longa. Não desconfies de tudo. Vai tudo correr bem. Brave it”. De repente, a fila começa a andar. Não há nem manga nem shuttlezinho para nos levar até ao avião, mas ele está mesmo ali, a poucos passos. A chuva cai-me na cabeça, mas nem a sinto.

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10. SEGUNDA-FEIRA, 10h10-14h15: O VOO PARA LISBOA
Quando ponho o pé dentro do avião, digo ao comissário de bordo que tenho uma ligação para o Porto às 14h. “Dá para apanhar! Estamos um pouco atrasados, mas vamos conseguir recuperar o tempo lá em cima. De qualquer forma, a TAP tem muitos voos Lisboa-Porto. Se não der, não vai ter problema em remarcar”. Eu sei que ele tem razão, mas remarcar voos perdidos não é a coisa que mais me apetece neste momento. Enfim, oremos.

Sento-me no meu lugar com satisfação. Depois de um dia a correr de aeroporto em aeroporto, finalmente estou dentro de um avião com destino ao meu país. Ponho a tapadeira sobre os olhos e preparo-me para dormir umas horas, mas apercebo-me de uma coisa estranha: a porta do avião continua aberta, com o comissário a olhar para fora, para a escada ainda montada. Mas o que é isto agora?

Funcionários com coletes fluorescentes aparecem de vez em quando e vão falar com os pilotos na cabine. Finalmente, o comandante diz o que se passa: por faltar uma documentação técnica qualquer, não estão a deixar o avião sair. Ele espera que o pessoal de terra da TAP consiga resolver a situação nuns 50 minutos. Lembrei algo que o Borja me tinha dito: que uma vez lhe cancelaram o voo quando o avião já estava em movimento, prestes a decolar. Tento dormir um pouco, mas na minha mente ecoa-me a frase “por favor, não cancelem o voo... por favor, não cancelem o voo...”, e continua a ecoar até que, com mais ou menos uma hora de atraso, o avião sai do chão, atravessando as nuvens de chuva com destino a Lisboa. Neste momento, por fim, eu apago de sono.

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11. SEGUNDA-FEIRA,14h15-16h: LISBOA
Depois de sonhar com uma escultura branca cujas formas iam mudando devagar, chego a Lisboa 15 minutos depois do horário da partida do meu voo para o Porto. Penso “Bem, vou remarcar, aproveito para ir ao WC e comer alguma coisa”. Sigo para a área dos voos de ligação e – surpresa – tenho que passar por um raio X de novo. Como se não fosse suficiente, há uma fila gigantesca e lentíssima. Entro nela contrariado, mas logo vejo uma moça da Groundforce lá na frente a orientar as pessoas. Aproximo-me dela.

“Menina, desculpe... eu já passei por um raio X em Londres, acabei de perder a minha ligação para o Porto e preciso remarcar”.

“Olhe, lamento, mas tem mesmo que passar aqui, e agora eu só consigo dar prioridade a quem vai para Marraquexe. Mas dou-lhe um conselho: se, ao sair, o balcão da TAP estiver muito cheio, vá direto até ao do portão”.

Guardo o conselho no bolso. Cansado, suado e meio desorientado, reentro na fila mais à frente do lugar onde estava – bem mais à frente, aliás. Decido então cometer um delito que em São Paulo quase me daria pena de prisão: furar a fila. O homem à minha frente queixa-se que acabara de passar por um raio X em Inglaterra, e eu puxo conversa com ele, dizendo que eu também, e que, sim, é um absurdo, e esta fila tão longa, um horror, uma ineficiência e etcetera e tal. As pessoas imediatamente atrás pensam que somos amigos de longa data e ninguém me incomoda.

Sim, companheiros, furo esta fila, e furo-a com uma categoria de príncipe! Poderia dizer que não me orgulho disso, mas estaria a mentir: orgulho-me tanto que penso nisso e quase rio sozinho.

Quando chego ao raio X, o homem pergunta-me se tenho líquidos.
“Tenho uns pequenos por aqui, estão numa sacola que me deram em Londres”
“É melhor tirar então, para evitar ter que revistar a bagagem”
Abro um dos fechos da mochila, remexo e remexo, mas não encontro o raio da sacola. Encolho os ombros. “Olhe, amigo, não sei”.
“Pronto, então passe”.

Passo o raio X e já nem tiro o cinto da mochila. O balcão da TAP está cheio, mas sigo o conselho que a moça me dera e sigo até ao portão da Ponte Aérea Lisboa-Porto. Três rapazes estão atrás de um computador ao lado de um portão e explico a minha situação. Um deles tecla no computador.
“Senhor, você até devia passar para o voo das 17h, mas vou conseguir pô-lo no das 16h”. Olho o relógio: só faltavam 40 minutos.
“E as malas vão seguir nele também?”
“Sim, senhor”.
“Amigo, você não imagina a felicidade que me está a dar. Estou a viajar há quase dois dias seguidos”.
“Obrigado, senhor. Eu entendo. Ontem saí daqui às duas da manhã por causa dos voos atrasados. A tempestade Ana atrapalhou tudo na Europa toda”.

Só tive tempo de ir ao WC e logo me chamaram para o embarque. O moço que me rasgou o bilhete diz-me “boa viagem, senhor Nande”. Desço para o shuttlezinho. Passo os dedos pelo cabelo, seco depois de quase dois dias de ares condicionados, ventos gelados e chuva. Subo a escada, sento-me e, depois de poucos minutos, o meu avião para o Porto decola.

12. 16h-17h: O VOO PARA O PORTO
O voo é tranquilo e rápido. O céu está limpo e, quando estou a chegar, consigo ver a espuma das ondas do mar e sinto o sol de Inverno a aquecer-me a cara. Penso no meu fim de semana, nas pessoas todas que me ajudaram e nas que não me ajudaram. Penso na minha namorada e nos meus pais, que se sentiram impotentes e preocupados e não dormiram enquanto me tentavam auxiliar por todos os meios que conseguiam. Fico com lágrimas nos olhos. Lembro-me do segurança de London City a dizer-me “brave it”, mas, não consigo, caem-me lágrimas dos olhos cansados, e é isso mesmo; neste momento, acho que mereço.

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O avião aterra no horário e vou para a esteira. As minhas malas são as primeiras a chegar. Passo pela alfândega e não me mandam parar. Neste momento, não preciso pedir favores a ninguém, não preciso comprar mais bilhete nenhum, não preciso ir para mais filas. Só preciso atravessar a porta do desembarque, encontrar os meus pais, que não vejo há meses, beijá-los e abraçá-los. Preciso dizer à minha namorada que tudo correu bem, que estou em casa. E preciso lembrar-me do que aconteceu, porque não quero esquecer nada, nunca. Por isso escrevo isto.

13. MORAL DA HISTÓRIA
A verdade triste é que, em viagens, saber a língua ajuda muito, mas, acima de tudo, é de dinheiro que precisas para te safares. E, quantas mais materializações dele tiveres à disposição, melhor. Vivo, débito, crédito, crédito de vários países: tenta ter todas as que conseguires e não esqueças nenhuma.

Nunca te distraias enquanto compras um bilhete de avião. Mesmo que já tenhas comprado dezenas e raramente te tenham surgido pacotes com conexões em aeroportos diferentes da mesma cidade, isso pode acontecer. E não é bom.

Evita escalas em Londres ou em lugares com probabilidade grande de serem acossados por tempestades que atrasem os voos de toda a Europa.

Café, cigarros e frio matam e não podem ser defendidos. Também são do melhor que há para ficar acordado e alerta. Tira as tuas próprias conclusões.

Blanche Dubois dizia que sempre dependera da bondade de estranhos. Isso não é bom, mas ninguém está imune a passar por necessidades. Por isso, na próxima vez que um estranho te pedir um favor, pensa que pode ser só um rapaz que quer muito chegar a casa.

Os cães

Devia ter uns 16 anos e voltava para casa à noite. Não sei porquê, decidi fazer um caminho alternativo e subir por uma ruazinha em vez de seguir na estrada principal. A meio da subida, vi uma matilha. Os donos dos cães deixavam-nos soltos à noite e eles juntavam-se para matar umas galinhas, comer lixo e foder. Os cães viram-me também, e eu soube que, se voltasse para trás, eles correriam atrás de mim. Então, segui em frente. Começaram a latir muito, mas eu não olhei para eles. Fixei um ponto no fim da rua e, de cabeça erguida, continuei, caminhando normalmente. Quando atravessei no meio deles, os cães enlouqueceram e eu senti medo, mas não parei, não corri e não desviei o olhar. O barulho era ensurdecedor e dois atiraram-se a mim de boca aberta. Senti os dentes deles na pele do meu braço, mas eles não fecharam a mandíbula, não me morderam. A volúpia deles era a de me assustar e o atrevimento acabava aí. Saí do outro lado da matilha, e os cães pararam de latir. Quando dobrei a curva, olhei para trás, temendo que me perseguissem. Não o fizeram. Nessa noite aprendi uma lição e sei exatamente qual.

Dilma andou de bicicleta na calçada

Dilma não é uma presidente competente. Ou melhor, não é uma política competente. Ela sabe resistir, mas não é ágil. Foi reeleita por um triz, não soube lidar com um Congresso adverso, não conseguiu impor políticas, perdeu eleitores, autoridade e voz.

Nada disso é base para um impeachment.

Estamos acostumados a ouvir falar em impeachment de políticos quando eles cometem abusos latentes de poder, como sonegação de dados, corrupção, apropriação indevida de bens públicos. As chamadas "pedaladas fiscais" de Dilma, por muito que sejam expedientes irregulares para lidar com um desequilíbrio nas contas públicas - do qual, diga-se, ela é responsável -, parecem uma desculpa esfarrapada para a oposição derrubar um partido que está há 14 anos no poder. É um pouco como se a presidenta fosse pega andando de bicicleta na calçada e castigada com uns meses de prisão. A pena não combina com a violação, e quem contesta o impeachment percebe isso muito bem.

Chamar o impeachment de golpe é exagerado. O processo está a seguir como deve, com o STF dando chicotadas regulares ao Congresso. Mas o mérito dele é, sim, errado. A oposição recorreu a ele como se fosse mais uma arma do arsenal, e não a bomba atômica que ele realmente é, o que revela também que ela é tão incompetente fazendo política quanto a presidente.

Ninguém sai bem deste processo. Ele é a prova de que os políticos brasileiros vivem numa redoma, jogando o seu jogo sem pensar em quem os elegeu e, até, no futuro do próprio jogo. O precedente aberto vai paralisar os próximos presidentes, temerosos de que qualquer ato de gestão possa vir a ser interpretado como uma irregularidade e castigado por um Congresso recheado de deputados calculistas e mais preocupados com o que podem ganhar do que com o futuro do país. A menos que o sistema político brasileiro seja reformulado de cima a baixo, isso vai irremediavelmente acontecer.

E há uma outra questão, mais imediata, a pensar: o dia seguinte. Pouco depois de eu ter chegado ao Brasil, Tiririca foi eleito deputado, e lembro-me da enorme polêmica que se criou sobre se um palhaço mereceria ser deputado. E os suspeitos de corrupção, Temer e Cunha - eles merecem ser presidentes? Onde está essa polêmica então?