O que realmente estava em causa na decisão sobre o habeas corpus de Lula

A sanha da luta política e cultural em que vivemos não permitiu que muitas pessoas percebessem que, na verdade, a discussão de ontem foi sobre uma divergência jurídica bem complicada e que diz respeito a todos nós. Afinal, ninguém está imune a um dia ser preso.

Voltei então aos meus tempos de Faculdade de Direito e fui pesquisar sobre o assunto.

Primeiro, um detalhe importante. Houve quem dissesse que a prisão após condenação em 2ª instância é regra fora do Brasil. Não é, e este artigo explica bem. Citando:
(No Brasil) há quatro instâncias possíveis de julgamento. Primeiro, nas varas criminais e, depois, nos tribunais estaduais ou regionais federais, em que são analisados os fatos concretos e provas. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF julgam se a lei foi corretamente aplicada nas instâncias inferiores, podendo absolver condenados se houver ilegalidades no processo. (...)

Na Holanda, França ou Portugal, só há, em geral, três instâncias. Ou seja, há uma menor possibilidade de recursos.

Já nos EUA, apesar de haver muitas prisões após a decisão de 1ª instância, elas acontecem ou porque os réus abrem mão de recursos em troca de penas mais favoráveis ou porque lhes é negada a possibilidade de recorrer, um sistema nada isento de falhas. Ainda do artigo:
O juiz federal e professor da Universidade de Columbia Jed Rakoff, por exemplo, diz em artigo sobre o tema que o sistema americano tem penas altas e dá poder desproporcional à acusação em relação aos defensores. Com isso, pessoas inocentes acabam aceitando se declarar culpadas por temer julgamentos longos que podem acabar em graves condenações.

Então, recapitulemos.

Por um lado, o Brasil tem uma instância de recurso a mais do que outros países, o que  pode significar a impunidade de réus poderosos e ricos. Como bem disse Luís Roberto Barroso ontem:
“Se tornou muitíssimo mais fácil prender um menino com 100 gramas de maconha do que prender um agente público ou um agente privado que desviou 10, 20, 50 milhões. Esta é a realidade do sistema penal brasileiro: ele é feito para prender menino pobre e não consegue prender essas pessoas que desviam por corrupção e outros delitos milhões de dinheiros, que matam as pessoas”

Por outro, a Constituição brasileira institui, no seu art. 5º inciso LVII, que:
Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Por "trânsito em julgado", entendam "não haver mais possibilidade de recurso porque se esgotaram os prazos ou as instituições para recorrer".

Aqui é que a coisa fica interessante.

Considerando o art. 5º, se alguém for preso antes do trânsito em julgado, isso equivale a aplicar uma pena a alguém que não é constitucionalmente considerado culpado.

Porém, surge a dúvida: a Constituição proíbe considerar culpado antes do trânsito em julgado, mas não proíbe expressamente a aplicação de uma pena a alguém nessa condição. O El País resumiu ontem bem a divergência de opiniões:
Os que não concordam com a prisão após o julgamento em segunda instância argumentam que o inciso afirma que ela só pode acontecer quando não existam mais recursos, já que só assim alguém é considerado "culpado", segundo a Constituição; por isso, a prisão antes disso seria ferir a presunção de inocência do indivíduo.

Os que defendem a prisão após a segunda instância afirmam que considerar "culpado" é diferente de prender e que a expressão constitucional serve apenas para colocar o nome do réu no rol dos culpados.

Eu diria que o problema se resolveria mais facilmente mexendo no processo penal e eliminando uma instância de recurso, mas isso daria muito trabalho e acabaria com alguns empregos no meio judicial. Então, a solução mais lógica não interessa a ninguém.

As motivações dos dois lados são muito razoáveis.

Os defensores da pena após 2ª instância pensam na eficácia dos tribunais e em impedir que poderosos consigam evitar as penas ad nauseam.
(Não consideremos este ou aquele ministro do STF que muda de opinião consoante ela possa afetar ou não os seus amigos da política, não vale a pena). 


Os defensores da pena só após o trânsito em julgado consideram que as garantias constitucionais valem para todos e que as consequências que delas se podem razoavelmente intuir são para cumprir.

Então, quem tem razão?

Eu diria que o arremedo jurídico que ontem prevaleceu é um pouco perigoso.

Não me agrada nada essa conversa de "cumprir prisão não significa que depois não venha a ser declarado não-culpado".

É que, considerando ser quase certo que os tribunais brasileiros tomarão esta decisão do STF praticamente com a força de uma ação declaratória de constitucionalidade, ela valerá, não só para Lula, mas para qualquer um de nós.

E agora respondam: se vocês fossem condenados por um crime, achariam justo poderem ser presos sem esgotarem todos os recursos judiciais a que têm direito?

Também achei que não.

Alckmin

Alckmin diz no Twitter:

Curiosamente, eu não discordo de Alckmin.

Eu adoraria que o dinheiro de meus impostos fosse poupado em excrescências e usado para ter educação, saúde e segurança públicas incríveis.

Mas o que sei é que, quando esse papinho neo-liberal começa, está implícita também a ajuda aos amigos empresários, os mesmos que vão financiar a campanha e esperam leis amigas.

Isso fica ainda mais claro no trecho de vídeo que não é transcrito, em que Alckmin gonga a "partidarização das agências reguladoras".

Alguém duvida que "partidarização", no caso, significa apenas "partidarização por outro partido que não o nosso" e que, uma vez chegando lá, as cabeças dos outros cairão para serem substituídas por cabeças ligadas ao PSDB ou distribuídas pelos amigos do Congresso?

É muito fácil falar de mãos invisíveis quando há uma mão pública bem visível te carregando.

8 coisas sobre Marielle

1. A munição usada para matar Marielle veio de um lote vendido à PF de Brasília em 2006.

2. Soubemos que a Polícia Militar tem essas balas desde que foram usado pelos PMs que cometeram a chacina de Osasco em 2015.

3. Essas balas ficaram só com as forças da PM? Foram desviadas para milicianos?

4. É imprescindível sabermos se os mandantes da morte de Marielle são de estruturas regulares policiais, políticas ou do crime organizado.

5. Seja quem for esse mandante, parece claro que Marielle morreu por defender os indefesos e os direitos humanos devidos a todos.

6. Não pode ser pura coincidência seu assassinato com balas de um lote que já foi usado por policiais militares numa chacina poucos dias após denunciar brutalidades da Polícia Militar em Acari.

7. O Estado falhou em dar a uma representante política dos cidadãos mais pobres a proteção que ela merecia.

8. Marielle foi assassinada com balas que um dia foram compradas com o dinheiro de seus impostos.

Sobre Marielle


Não há eufemismo possível: Marielle Franco foi executada.

Fora nomeada relatora da comissão de acompanhamento da intervenção federal semanas antes e criticara a brutalidade do 41º batalhão da PM em Acari dias antes.

Então, a PM como órgão, o 41º batalhão ou, quem sabe, as milícias que tomam conta de certas zonas do RJ aparecem como primeiras suspeitas. Não me surpreenderia.

Há também quem sugira que ela teria sido alvo do crime organizado, em reação à sua posição na comissão da intervenção, o que seria cruelmente irónico, já que ela era contrária à mesma.

Confesso que acho um pouco estranho o caso.

Marielle, do que se sabe, nunca sofrera ameaças e, como vereadora, não me parece que estivesse numa posição suficientemente alta para fazer alguém se sentir ameaçado.

Mesmo que isso tivesse acontecido, o que vemos é usarem os parentes, dizerem algo como "se você não parar, matamos sua filha".



Será que o assassinato fora encomendado para outro político? Não sei.

Será que a loucura crescente do Rio levou a isto? Não sei.

O que sei é que, se hoje é possível matar políticos desta forma no RJ, fica provado que a intervenção federal do exército realmente não serve para mais nada a não ser importunar moradores e salvar a face de Temer depois do fracasso da votação da Previdência.



Chegamos no cume da montanha de discórdia e sanha que começou com o impeachment da Dilma e cresceu com a Lava Jato e só posso esperar que Marielle seja a mártir que vai fazer todos pararem e refletirem.

Mas não estou otimista.

A Garraiada de Coimbra

Talvez um dia, sim, tenha havido na tourada a beleza estranha e cruel de touro e homem dançando com a morte.

Não foi isso que vi em 98 ou 99, quando apanhei o comboio de Coimbra para a Figueira da Foz durante a Queima das Fitas e fui à Garraiada.

Na época, ainda havia "novilhada": um pobre indivíduo de roupas paramentadas tentava provocar um touro magro até que este se aproximasse para ter ferros cravados no lombo.

Nenhum parecia ter muita vontade de estar ali, mas o público aplaudia a cada farpa espetada.

O touro desorientado, como um refém a quem mandavam atacar o captor só para poder ser agredido na volta.

Depois, mandaram um tourinho mais magro ainda para os estudantes pularem em volta e provocarem. A garraiada propriamente dita, ou uma sequência bêbeda e triste de palhaçadas aborrecidas.

Das coisas mais miseráveis que assisti na vida.

Saí antes de acabar e nunca mais voltei.

Nos anos seguintes, continuei a apanhar o comboio sonâmbulo para a Figueira.

Dormia na praia, queimava o rosto, comia gelado e voltava para Coimbra à tarde. Era ótimo.

Desde então, às vezes me intrigo com o absurdo que era pedir para manter certas "tradições" em Coimbra, não só porque ninguém tem obrigação de perpetuar uma tradição de que não gosta, mas também porque se vai descobrindo como cada uma dessas tradições foi um dia cuidadosamente inventada, construída e ficcionalizada.

Amanhã os estudantes de Coimbra têm a possibilidade de acabar com este espetáculo de trampa.

Seria bom que o fizessem.

Defeitos do Brasileiro: A Elite

Nesta série, analiso os pequenos grandes defeitos que descubro em vocês, meus amigos brasileiros. Vocês são um povo extraordinário e fascinante tanto nas qualidades quanto nas mazelas, mas quero debruçar-me sobre estas últimas, porque quem quer saber de qualidades, não é mesmo? Não estou jogando pedras, porque, como todos, sou pecador e também porque não quero: acredito sinceramente que, melhor do que ser perfeito, é ser deliciosamente imperfeito. 

Como diz Eduardo Bueno no seu ótimo canal Buenas Ideias, o que se segue está cheio de generalizações. Mas, como de boas especificações está o inferno cheio, espero que me perdoem.

Os meus anos no Brasil ensinaram-me que sempre que a elite brasileira espreita por cima dos muros de seus condomínios privados para dizer alguma coisa é geralmente digno de nota.

Não por boas razões, é claro.

Por "elite", não quero dizer grandes pensadores, artistas ou políticos, mas aquela alta burguesia mesmo, que, no seu faustiano caminho para o topo, parece ter prometido a Mefistófeles não só entregar a alma no final da viagem mas também despojar-se de todo e qualquer bom senso no caminho.

Mefistófeles terá dito Mas, olhe, não é realmente necessário, só para ouvir Não, Mefistófeles, se é para fazer isso, vamos fazer a sério. Toma meu bom senso aqui e vamoquevamo.

E Mefistófeles aceita, relutante, e, ao virar da esquina, joga o bom senso da elite brasileira no lixo, porque já é tão pequeno e pouco impressionante que não vale a pena levar para casa nem tentar vender na Santa Efigênia.

Talvez por isso a elite brasileira seja responsável por tantas e tão estranhas afirmações, daquelas que nunca se espera ouvir de ninguém.

Metrô do lado de casa? Não queremos.

Ciclofaixas tirando espaço aos carros? Nunca.

Dar mais dinheiro à cultura, aos museus, ao teatro? Imagina.

Não gostamos de quem está na presidência, vamos quebrar a normalidade democrática? Conta comigo.

O apego da elite brasileira ao seu carro estupidifica ao ponto de fazer pensar se ela não terá uma freudiana inveja de taxista.

O "público" em "transporte público" assusta-a.

A ideia de classes menos abastadas se movimentando, ameaçando a chiqueza esterilizada de seu bairro, ameaça-a.

Abrir o conhecimento, a cultura, a educação e o discurso deixa-a insegura.

Um representante político eleito por uma maioria à qual ela não pertence é um alvo a abater.

Portanto, a observação levou-me à conclusão sofisticada que a elite brasileira é burra e sabe-o.

Em vez de se educar, abrir a cabeça e, aceitando a sua situação privilegiada, ajudar a sociedade como um todo a avançar, prefere sonegar impostos e manifestar-se contra tudo aquilo que pode expô-la e as suas fraquezas ao opróbrio e ao reconhecimento da sua íntima inferioridade.

É como se os muros e o arame farpado de que se cerca não servissem para a proteger, mas para a esconder.

Fascinada com os paramentos e os chapéus que vê em suas televisões turbinadas quando príncipes ingleses se casam, sente-se de qualidade inferior e culpa o seu país pelos seus próprios defeitos.

E o mais fascinante é como, nesse ímpeto de autoproteção, ela, que ascendeu com o dinheiro, inventou uma identidade de classe que mantém além do dinheiro.

Já conheci moradores da Vila Nova Conceição que quebraram e viviam com menos dinheiro do que terá, por exemplo, o dono de um boteco de Taboão da Serra, mas, ainda assim, falavam com condescendência da "gente feia da periferia", com quem evitavam contato além da babá ou da doméstica, certamente devidamente uniformizadas ou, se preferirem, "diferenciadas".

As elites do antigamente, dos tempos que a Globo gosta de mostrar nas novelas das seis, tinham uma espécie de código de honra aristocrata.

Aqueles que, por obra e graça dos reis, deus e nossa senhora, tinham herdado uma posição, propriedades e rendimentos conexos e, por isso, se consideravam superiores à plebe, consideravam que fazia parte de sua posição de vanguarda social ser mecenas de teatros, artistas, organizar saraus e dar esmola para alimentar a mente e o corpo da turba obscurecida.

Como disse no início, com certeza generalizo.

Ser rico não é crime no presente e no passado muito aristocrata terá cagado para o que se esperava dele.

O argumento é apenas que, se você fosse aristocrata, era esperado de você mais do que a simples prática do escrotismo, do alheamento e da mediocridade.

E o mais fascinante é que, a partir do momento em que a classe do topo fixa essas características definidoras de si mesma, as pessoas que querem chegar ao seu nível adotam-nas para, um dia, quem sabe, serem também aceitas no clube, espalhando assim o escrotismo, o alheamento e a mediocridade por toda a sociedade como uma dengue que não precisa de aedes aegypti.

A elite gosta de imaginar o Brasil como um grande trem em que ela está na frente, puxando vagões que diz serem pesados, lentos e preguiçosos.

Mas eu tenho certeza que é a locomotiva que é fraca.

O que pensei enquanto assistia o filme proibido de Louis CK

I Love You, Daddy, escrito e dirigido por Louis CK, foi banido depois de o autor ter sido levado pela enxurrada de denúncias de 2017.
Estas são as coisas que fui pensando enquanto via.

(tem spoilers)

1


É uma pena e também de uma ironia fatal que a carreira de CK tenha sido interrompida neste filme.
Por causa da revelação de suas perversões no mundo do espetáculo, é "cancelada" a obra em que ele analisa a possibilidade de um relacionamento puro (entre pai e filha)... no meio dos pervertidos relacionamentos do mundo do espetáculo.
Na verdade, a dado momento, é dito mesmo que toda a gente é pervertida.
Olhando as personagens, faz sentido.
Um diretor quase septuagenário de quem se desconfia ser abusador de menores.
Um ator que faz comentários sexuais inadequados o tempo todo.
Um roteirista apaixonado por uma atriz grávida que a dado momento lhe diz "você dormiu comigo para eu te dar o papel", só para ela responder "não, eu falei que queria o papel só para dormir contigo".
Lembra-me um ensaio sobre comédia que li uma vez.
Aparentemente, para os gregos antigos, a comédia, e não a tragédia, era a forma artística superior.
A tragédia era feita a partir da perspectiva humana (adoecemos, morremos), enquanto que a comédia correspondia ao olhar divertido dos deuses enquanto nos observavam lá do alto.
"Olhem esses tontinhos sendo perversos", parece dizer CK.

2


CK adora os seus atores.
Ele adora colocá-los para falar, adora monólogos, adora dar-lhes espaço.
Isto leva-o a uma forma bem teatral, como se cada cena fosse uma desculpa para colocar os atores a contracenar nalgum canto (a cena da filha contando o encontro com o John Malkovich numa loja é bem revelador disso).
Se, em Horace and Pete, ele já tinha feito a ligação entre essa dinâmica e os formatos clássicos de televisão, neste filme ele recorre às convenções do cinema americano dos anos 40, ao mesmo tempo que invoca Lolita e Manhattan.
O seu repertório é maravilhoso.

3


Quem acha que a personagem da filha é um apenas um objeto bidimensional para o pervertido CK babar e fazer tarados como ele babarem deve esperar a maravilhosa cena em que ela conta a John Malkovich a sua experiência de spring break.

4


O que fez CK famoso foi a sua capacidade para falar sobre a sua vida privada com honestidade total.
É excessivo dizer que toda a sua obra deve ser vista através do filtro de desrespeito para com as mulheres, porque ela é muito mais do que isso.
As perversões de CK - cuja gravidade não vou discutir - existiram e, no momento em que o filme foi gravado, CK já tinha pedido desculpa a suas vítimas, mas continuava negando publicamente os seus pecados.
Sabendo isso hoje, é impossível não ver o filme com esse viés. Mas, como disse, ele é muito mais do que isso.
No mundo de CK, a humanidade é um caos e quase ninguém é inocente.
Quem é - e a personagem da filha é - deve ser protegida.
Por isso, estava todo errado o hype todo do tempo do escândalo, no seu tom de "oh, não, vejam como esse homem horrível fala de uma menina sendo abusada por um cineasta mais velho como se fosse uma coisa normal e compreensível".
Não digo "errado" no seu julgamento moral, mas porque foge completamente do que o filme é e conta.
Primeiro, porque ficamos o tempo todo a avaliar se o abusador realmente abusa ou não.
Segundo, porque CK não faz apologia de nada, sendo, no máximo, reflexivo sobre agressões de que ele próprio um dia foi culpado.
Terceiro, porque o motor da história é, na verdade, a batalha pela inocência da filha, que o pai CK, quebrado pela vida, quer perpetuar, talvez para ele mesmo poder acreditar na bondade do mundo.
O fatalismo da história é o de que ele não pode querer isso ao mesmo tempo que pede que a filha se torne adulta - ou seja, plena de si mesma, com defeitos e feridas.
É como se o filme nos dissesse "sim, estamos todos fodidos e é por isso mesmo que não nos devemos importar".
Dizer que não deveria ser assim, e que deveria haver um final com o castigo de quem se comportou mal, é defender que a finalidade última da arte é ser moralizante, e eu não concordo com isso.
A derradeira ironia do filme é essa.
Apesar de ser em preto e branco, ele diz-nos que nós, pessoas, estamos cheias de áreas cinzentas.

Defeitos do Brasileiro: O Pequeno Poderoso

Nesta série, analiso os pequenos grandes defeitos que descubro em vocês, meus amigos brasileiros. Vocês são um povo extraordinário e fascinante tanto nas qualidades quanto nas mazelas, mas quero me debruçar sobre estas últimas, porque quem quer saber de qualidades, não é mesmo? Não estou jogando pedras, porque, como todos, sou pecador e também porque não quero: acredito sinceramente que, melhor do que ser perfeito, é ser deliciosamente imperfeito. 

Dizia Dalberg-Acton que todo o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente.

O brasileiro médio parece ter absorvido muito bem essa sentença e, por isso, contenta-se em ser apenas pequenamente corrompido ao conquistar um pequeno poder.

Não falo daquela conhecida e feia corrupção política, do troca-troca e rouba-rouba e pega-pega. Dessa vocês já estão fartos de saber.

É mais aquela corrupção estilo Sassá Mutema, do homem bom que vai dando pequenas e saborosas dentadas na sua moral até que dela não reste mais do que um miserável e triste toco.

Falo do síndico do prédio que quer porque quer aumentar o condomínio de todos para instalar uma tela LCD no elevador que anuncie as notícias do dia e a previsão do tempo que vocês acabaram de ver no Wifi de casa.

Falo do porteiro que, com um singelo olhar, já decide que um visitante não é bom o suficiente para alugar um apartamento no prédio e que nunca deixará um entregador de pizza entrar na portaria, mesmo que lá fora comecem a chover canivetes com as pontas viradas para baixo.

Falo do funcionário de repartição que te faz esperar porque não gostou da tua cara.

Falo do administrador de grupo de Facebook que adora impor aos seus membros as regras e castigos que defecou numa noite solitária do mesmo jeito que o Dr. Moreau impunha as suas às criaturas da ilha.

(há que considerar a leve diferença de que o administrador bloqueia e o Dr. Moreau matava. Mas acho que deu para entender o argumento).

Num país tão grande, surpreende que tanta gente adore conquistar o seu pequeno espaço para brincar de pequeno ditador ou, melhor, de pequeno bundão.

Eu sei que a atitude tem a ver algo com os grandes bundões do passado e presente, que chegaram e chegam com pessoas e armas (principalmente com armas), disseram e dizem "isso agora é meu" e levaram e levam.

Mas a bundice alheia não deve motivar bundice própria, amigos.

Não é porque o António Conselheiro perdeu o arraial que você tem que transformar o seu próprio quintal em sertão.

Aí, você pode dizer "se não gosta, não é obrigado a ficar no prédio/grupo/mesa do bar", mas não seria melhor para você mesmo respirar um pouquinho e considerar o outro?

Amargura no coração mata mais do que não ter poder, amiguinho.

Que o diga Getúlio Vargas, suicidado com uma amarga bala.

O que é o FERIDO

Uma vez, vi uma entrevista ao Duke Ellington em que lhe fazem uma pergunta qualquer sobre "o seu povo". Avesso a deixar-se categorizar, um elegantíssimo Ellington divaga docemente. "O meu povo... qual dos meus povos? Estou em vários grupos. Estou no grupo dos pianistas, dos ouvintes..." . Entre outras hipóteses relutantes, ele diz que faz parte do "grupo dos que aspiram a ser diletantes". Se quiserem ver a resposta inteira, está aqui.

https://youtu.be/aAx_qsCjHiM?t=1h43m37s

Aquele eu que já então varava madrugadas vendo filmes de nacionalidades estranhas e vídeos em localizações recônditas, lendo ideias diferentes e tentando juntar palavras até fazerem sentido,  identificou-se totalmente com "o grupo dos que aspiram a ser diletantes". Diletante é o que se deleita, o que faz pelo prazer, o que estuda sem ter (e talvez porque não tem) um exame para passar.

Aconteceu que, há uns 6 meses, eu decidi compor uma música para dizer umas coisas que me pareciam precisar ser ditas. Tinha um microfone, tinha uma guitarra, tinha software, então, gravei mesmo. Depois, decidi fazer um vídeo. Peguei no celular, pressionei o "rec" e juntei mais umas quantas imagens que me pareciam apropriadas. Depois, era preciso lançá-la. Então eu pensei: já que estou a inventar uma música, porque não invento um músico? Pensei num nome, inventei um logo, criei um canal no YouTube e uma página no Facebook. E assim nasceu o FERIDO. Depois disso, tudo o que vou inventando ou copiando em música vai para lá, incluindo esta canção, que fiz para a minha terra natal depois que ela ardeu.

https://www.youtube.com/watch?v=NJKKVULPgsE&t=76s

Não sou guitarrista, mas, bem ou mal, gosto de tocar guitarra. Não sou produtor, mas, bem ou mal, gosto de gravar e editar. Não sou compositor, mas, bem ou mal, gosto de criar canções. Sou apenas um diletante, e quem quiser que ouça. Espero que gostem e, se quiserem, chamem para conversar.

Para você, o meu amigo que todo mundo desconfia ser gay, mas ninguém tem certeza

A gente nunca conversou sobre isso, porque pertence a cada um o querer falar sobre isso ou não.
No entanto, sem que chegue a seus ouvidos, o questionamento existe entre nós, seus amigos.
E não existe, repare, porque isso nos importe muito ou porque vá mudar profundamente as nossas vidas.
A grande verdade é que as pessoas são todas meio egoístas, e trabalhar o nosso próprio bem estar ocupa grande parte do nosso tempo.
Não é que nós sejamos assim, é o mundo que é.
Nós só coincidimos em existir nele.
Se outros mundos houvessem, talvez não fosse assim.
Elon Musk está aí, tentando levar-nos daqui para fora, quem sabe por essas razões.

Porém, há aqueles momentos do dia em que pensamos se aqueles de quem gostamos estarão bem e se poderemos fazer alguma coisa para estarem melhor.
E é nesse momento que pensamos em você.
Depende de você querer ser feliz ou não, e não vou ser eu a dizer que, para o ser, tem que andar por aí abrindo o cadeado do seu diário.
Pessoalmente, eu até acho que esse papo de felicidade é sobrevalorizado.
Se almoçou e jantou e dorme por baixo de um teto, já está melhor do que muitos.

Eu só gostaria que você entendesse que, se isso for importante para você, e se por acaso o seu silêncio sobre aquilo de que gosta, não gosta ou não sabe se gosta vem do medo de que os seus amigos resolvidos na heterossexualidade deixem de ser seus amigos, ou te deem uma palmadinha no ombro enquanto dizem "que bom que você falou" e depois se afastem porque não sabem mais como lidar com você, para já com isso.
A gente já sabe que nestas coisas não há normal. Como poderia, se não há norma? A gente já conviveu com tudo o que é matiz sexual, já flutou sobre todas as possibilidades da vida e, melhor ainda, a gente já é velho e sabe que todo mundo está fodido.
Todos temos que pagar impostos, o dinheiro é mais finito do que as contas por pagar, vamos ser idosos mais ou menos doentes e, pelo caminho, haverá pessoas nos desapontando, nós desapontando pessoas, e é assim mesmo.
Você falar "eu gosto de meninos", "eu gosto de meninas", "eu gosto de tudo" ou "eu não gosto de nada" não vai mudar isso.
As bocas estão por aí, os corpos junto com elas, e as leis que regem as atrações e os encontros são pormenores quando comparadas com a reforma da Previdência.

Ser seu amigo significa que, depois de resolvidas as nossas necessidades, o que a gente mais quer é te ajudar a ser feliz.
Devo te avisar que minha prima ficou solteira ou que meu primo ficou solteiro ou que ambos ficaram solteiros?
Eu não sei, porque eu nunca vi você com ninguém.
Se o que você quer é continuar o silêncio, porque você considera que a sua vida íntima é sua e eu não tenho nada a ver com isso, nem vou ficar me perguntando se você me considera menos amigo por nunca me ter falado sobre o assunto e evitarei para sempre o pensamento mesquinho e invejoso que talvez você tenha falado sobre isso com outro amigo mais merecedor.
Eu adoro o silêncio e, se o que te deixa bem é deixar as coisas assim, maravilha.
Mas, se você sempre quis falar algo e nunca soube como, fica à vontade também, rapaz.
Você vai me falar dos teus problemas e eu vou poder dar os meus conselhos.
Provavelmente, estarão errados, mas serão sinceros e virão com um abraço.

Então, deixa de neurose, tá bom?

Teu amigo,
Jorge.