Deus

Eu acho que deus é o acaso. Mas o acaso não é uma aleatoriedade solta, se pensarmos bem. Ele também obedece a regras.

Pensemos numa situação em que diríamos que o acaso funciona. Apanhamos um avião e por acaso encontramos um amigo no mesmo avião. O fato foi completamente aleatório, mas, ao mesmo tempo, ele obedece a regras. Há um número definido de aviões circulando no mundo e temos um número definido de amigos. Todos podemos viajar de avião. Temos interesses em comum, incluindo destinos que achamos interessantes. Se quisermos subir um degrau no que essas regras podem ser, nenhum de nós pode abrir asas e voar, por isso dependemos de aviões se quisermos percorrer uma distância longa. E não podemos estar e não estar num lugar ao mesmo tempo, por isso, se ambos estamos num avião, nenhum de nós pode, ao mesmo tempo, não estar nele e evitar encontrar o outro.

É risível ser tão específico, mas só quero dizer que a nossa existência no mundo físico está limitada pelas regras físicas desse mesmo mundo. O meu movimento, e o do meu amigo, têm um número incalculável, mas previsivelmente limitado, de variáveis.

Isto não serve para dizer que tudo está escrito e é incontornável. Mas, mesmo que nem tudo seja possível, muita coisa é possível.

Um exemplo nem tão esdrúxulo: uma vez um amigo disse-me "Nande, descobri uma coisa que vais achar interessante". Só para ser jocoso, disse o pensamento mais estranho de que me lembrei: "Por acaso tem a ver com o princípio de incerteza de Werner Heisenberg?". O meu amigo ficou parado, perplexo, e, antes de romper à gargalhada, disse "Tem. Merda!".

Foi uma das trocas de palavras mais estranhas que tive na vida, mas houve razões aleatórias para ela. Ambos nos interessávamos por coisas enviesadas; ambos ouvíramos por acaso falar de Heinseberg recentemente, eu por um filme e ele por um site; ele conhecia os meus interesses; eu queria fazer palhaçada. Se algum destes fatos não tivesse acontecido, a conversa não teria acontecido. Estava escrito que teríamos essa conversa? Não. Mas havia uma probabilidade remota dela acontecer no reino das probabilidades.

Uma série de ciências poderiam contribuir para analisar a probabilidade desta conversa. A psicologia poderia analisar nossas psiques. A neuromedicina, como os nossos cérebros processam o interesse e o conhecimento. A antropologia, a sociologia, a biologia social poderiam debruçar-se sobre a nossa vida em sociedade e como o nosso contato nos levou a esse momento.

E a religião - não enquanto organização que inventa estratégias para garantir a sua sobrevivência (isso não me interessa mesmo nada), mas enquanto um conjunto de crenças e doutrinas - também poderia dar-nos uma resposta, ou melhor, uma finalidade, dizendo que nada acontece por acaso e tudo faz sentido no grande desígnio e vontade de Deus. E eu acho que isso seria verdade, mas provavelmente não pelos motivos que a religião me daria. Não acho que haja um homenzinho barbudo numa nuvem a apontar o dedo aqui para baixo e a ditar o que acontece, apesar de essa metáfora facilitar muito a explicação, algo em que as religiões foram muitas vezes geniais.

O que eu acho que isso realmente quer dizer é que tudo faria sentido se considerássemos o conjunto de mecânicas do mundo. A totalidade delas é-nos vedada, porque elas são muitas e as possibilidades que elas abrem são inúmeras. Mas muitos ditames religiosos que conheço parecem-me explanações do mesmo princípio. "Não questionarás os desígnios de deus" é um. "Deus é omnipotente, omnipresente e omniciente" é outro. Se pensarmos que deus é as mecânicas do mundo, as enésimas normas conhecidas e desconhecidas que regem a existência de tudo o que existe, desde a gravidade até ao magnetismo, desde a formatação do corpo pelo espírito e do espírito pelo corpo, dos efeitos do comportamento nas outras pessoas e em nós mesmos - se Deus for tudo isso, é claro que ele é omnipotente, omnipresente e omnisciente, porque ele realmente é tudo. Ou melhor: tudo é ele.

Não acreditar numa criatura superior faz de mim ateu? Eu acho que não, porque eu acredito numa transcendência, que é comum a todos nós, às ciências, às religiões, a tudo. Nós nunca vamos realmente entender todas as razões porque as coisas acontecem como acontecem, mas essas razões existem e definem um padrão tão complexo que nenhum sistema de conhecimento isolado as poderia abarcar, e isso inclui a religião. Acho que, pensando assim, posso recusar as metáforas ou representações de Deus das religiões que conheço, mas chego perto do significado delas. Mais do que eu não ter religião, acho mais certo dizer que não há religião que me tenha.

Um português olhando a campanha brasileira

Primeira impressão: a campanha dura muito. Muito MESMO. Em Portugal, são 12 dias de campanha oficial. No Brasil, são 3 meses. Sim, oficialmente a campanha começou em 6 de Julho e as eleições são em 5 de Outubro. Eu sei que são muitos candidatos e muitas eleições ao mesmo tempo, mas 3 meses?...

Eu diria que diminuir a duração da campanha serviria também para diminuir o número de dinheiro irregular desviado durante a campanha. Só uma ideia.

Segunda impressão: não entendo como funcionam as propagandas eleitorais. Nem falo dos anúncios de candidatos engraçados, que o mundo se acostumou a considerar uma coisa bem brasileira e que levava sorrisos a muitas pessoas sentadas à sua mesa de trabalho por esse mundo todo. Reparo que há bem menos destes. Falta de criatividade ou profissionalização geral?

De qualquer jeito, continuam a haver umas propagandas que me deixam intrigado. Ontem vi uma contra o Skaf. Era só isso mesmo: contra o Skaf. Dizia que ele escondia o Kassab, o Maluf, o Fleury, mas não propunha nada em alternativa. Uma busca na internet fez-me saber que é um anúncio da campanha do Alckmin e que ele o suspendeu há 6 dias. Nem vou perguntar então porque o vi ontem antes de estrear o Masterchef.

Terceira impressão: desde 2010, é proibido fazer humor sobre os candidatos durante o período de campanha. E não tenho vergonha de dizer que é uma das regras mais retrógadas, absurdas e revoltantes que pode existir no mundo civilizado. É vergonhoso que uma lei digna da Rússia de Putin esteja no currículo de um país como o Brasil, que sempre gosta de estar na linha de frente em tudo (menos na inflação, claro).

Quarta impressão: é impressionante a velocidade com que um candidato passa de São Jorge a dragão. Depois da morte de Eduardo Campos, Marina ia pegar de onde tinha saído na eleição de 2010. Em dois dias, os evangélicos cobraram-na, ela deixou cair o apoio ao casamento de homossexuais do programa eleitoral e tudo mudou. De sustentada pelos jovens esperançados num novo futuro, ela passou a ser a candidata da moralidade conservadora e dos apoios incômodo. Ou seja, de uma eleição para a outra, a sua base eleitoral provavelmente transformou-se bastante. Ela está à frente da Dilma no Rio e em SP, mas, a um mês da eleição, se ela não tiver cuidado, ainda vai ser tão presidente como Russomanno é prefeito de SP.

Quinta impressão: até Marina aparecer, Aécio era o grande obstáculo de Dilma para a reeleição. Mas ninguém mais fala de Aécio, e ele caiu nas sondagens. Ou seja, ao centrar a disputa nela e Dilma, Marina pode ter feito um favor a esta última.

Sexta impressão: um debate eleitoral como se faz no Brasil, em que todos os candidatos falam no seu tempo designado, seria impossível em Portugal. Exemplo: o pastor Everaldo faz uma pergunta a Aécio, este responde com uma crítica a Dilma no meio, Pastor Everaldo faz réplica, Aécio tréplica.

Em Portugal, Dilma interromperia logo depois da primeira resposta só para dizer "não, não, ele falou mal de mim, então eu tenho que responder".

Construir histórias

Em geral, aprendemos a pensar na história como uma sucessão de fatos ou afirmações: X anda pela rua, Y mata alguém, X vê o homicídio, Y foge, X enterra o corpo.

Isto não é uma crítica a esse jeito de fazer as coisas (todos o fazemos!), mas uma proposta para ver as coisas de um outro modo.

Enquanto vemos um filme, uma série, lemos um livro, estamos sempre a fazer PERGUNTAS. Quem é esta pessoa, o que ela vai fazer, como ela vai fazer, como o mundo em volta dela vai reagir, como isso vai influenciá-la, como ela vai mudar com isso, etc, etc.

O que realmente está a acontecer quando criamos uma história é um jogo de criar uma dúvida, ou uma possibilidade, e depois respondê-la: X anda pela rua (vai para onde?), Y mata alguém (quem? porquê?), X vê o homicídio (como reage?), Y foge (para onde?), X enterra o corpo (porquê??).

Para a história se fechar, estas perguntas têm que ser respondidas nalgum momento. Gênero, tom e outros elementos são definidos quando decidimos que perguntas escolhemos fazer, quando elas são respondidas e de que forma.

Tenhamos isso em conta.

suzy num filme com máscara

Escrevi isto há muito tempo. Encontrei-o por acaso aqui no computador. Sempre me fez sentir bem.

suzy

Nota para mim mesmo sobre o David Bowie

Isto é mais para mim do que para qualquer outra pessoa, sinto dizer. Mas, quem sabe, talvez achem interesse. Tenho revisto a série de documentários Seven Ages of Rock, de 2007, da BBC, e eu sabia que já tinha visto aquele conteúdo antes. Mais, eu sabia que já tinha visto aquele conteúdo com mais coisas, no antigo People & Arts, quando andava na universidade. Lembrava-me especialmente de um plano em que a câmara flutuava até encontrar o Mick Ronson a tocar sozinho a intro da Ziggy Stardust. Isto não está nas Seven Ages of Rock. Mas onde, onde eu tinha visto isso?

Depois de fuçar online, descobri o que aconteceu. A BBC2 fez uma série em 10 partes sobre rock em 1996, chamada Dancing In the Street, de onde acabou por retirar conteúdo para as Seven Ages of Rock. A série original parece meio esquecida no site do canal e só alguns pedaços dela foram parar ao Youtube, mas, felizmente, a minha paranóia acabou. Aqui está a câmara planante do Mick Ronson. E toda a parte do Bowie começa aqui.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=-yY6t4ncfAM&w=420&h=315]

Cara Isilda Pegado,

Quando foi a primeira vez que ouvi falar de ti? No referendo para o aborto, que perdeste? No do casamento gay, que perdeste também? Não me lembro já. Desculpa, aconteceu muita coisa e muita gente na minha vida nos últimos tempos e alguns inícios perderam-se. Mudei de país, mas não como quem muda de equipa, se é que me entendes, por isso, continuo atento ao que se passa por aí.

Percebo que muitas pessoas te odeiam, mas eu não te odeio. Na verdade, tu fascinas-me. Fico sempre a pensar no que te motiva a correr atrás de tantas causas, apesar de perderes tantas. Não digo isto com desdém, a sério, não penses que escrevo com ácido nas véias. Não vemos o mundo da mesma forma e frequentemente acho que distorces os fatos a favor dos teus argumentos, mas o empenho quixotesco com que o fazes intriga-me. Pergunto-me o que te leva a fazer isso, que histórias tens que te levam a ser assim. Não te vou mentir, eu acho que a tua visão do mundo é retrógada e, às vezes, completamente irrealista. Mas porque tanto ardor, Isilda?

Eu acho que tu és sincera. Queres intervir na sociedade para a deixar de um jeito que tu consideras melhor. Quando acredito que a intimidade de cada um é assunto seu, de certa forma estou a ser egoísta. Para ti, a intimidade define uma posição social e, como tal, a sociedade deve participar da forma como ela aparece. Talvez sejas melhor pessoa do que eu. À tua maneira, tu importas-te mais com os outros.

Há uns dias li este artigo teu e voltaste-me à mente. Estás igual ao que me lembro de ti, com um raciocínio labiríntico que serve a tua visão moral.

Dizes que agora uma "mãe decide que quer ter um filho, só seu, cujo pai fique incógnito (dador anónimo) e faz inseminação artificial a partir do banco de esperma para poder gerar a criança que é “só sua”. Só se for escondida na Espanha, não é, Isilda, porque na lei portuguesa, que citas, (ainda) não pode.

Dizes com reprovação que "a co-adopção vem reconhecer e legalizar práticas que estão proibidas por lei", mas isso é muito normal quando uma lei é mudada, certo, Isilda? Foi assim com a IVG, com o casamento homossexual e também terá de ser assim se, como tu reclamas, um dia houver um revogação destas. Se novas leis não legalizassem "práticas que estão proibidas por lei", a lei nunca seria mudada e o mundo não evoluiria.

Tu sabes disso. E também sabes que a comparação que fazes entre os pais incógnitos do Estado Novo e os "filhos sem pai" que a co-adoção geraria é desonesta. A filiação tem sobretudo a ver com uma coisa - a capacidade de herdar. Os filhos legítimos dos senhores do Estado Novo ficavam protegidos de terem de partilhar o seu património aquando da morte destes; estavam salvaguardados os bolsos dos filhos e a fornicação do pai.

Mudar essa lei, acima de tudo, garantiu o direito de sucessão dos filhos ilegítimos. E a lei da co-adoção, irá ter o mesmo efeito. Vou-te dar um exemplo. Imagina que a Helena, solteira, tem um filho, o Diogo. A Helena trabalha, paga os seus impostos e cria o Diogo com amor. Entretanto, a Helena assume a sua homossexualidade e casa-se com a Márcia, que, naturalmente, vai criar uma relação parental com o Diogo. Segundo tu, a Márcia nunca poderá tratar o Diogo como filho; e, caso a Márcia morra, o Diogo nunca vai, por lei, poder herdar dela.

Ou seja, para salvaguardar os direitos do Diogo da mesma forma que os direitos dos filhos ilegítimos foram salvaguardados revogando a lei da ditadura, a co-adoção é o caminho mais lógico. Eu sei que tentaste impor a tua visão moral do que a sociedade deve ser - crianças nascidas e criadas no seio de uma família devidamente casada e heterossexual -, mas esqueceste do resto. O Diogo e a Márcia vão ser filho e mãe, mas, na tua visão, eles nunca poderão realmente sê-lo. A Márcia não poderá assinar as fichas da escola do Diogo, autorizar uma cirurgia, sei lá mais o quê que tem de ser um pai a fazer. A lei estará constantemente a lembrá-los de que não são realmente mãe e filho. E eu acho que o Estado não tem o direito de humilhar os seus cidadãos assim. Se queres mesmo defender o Diogo, tu tens que defender esta mudança legal, Isilda.

Eu sei que nunca vais aceitar isto, porque, para ti, "casal do mesmo sexo" já é uma expressão contraditória. Imagino que, para ti, o amor de uma homossexual para com o filho sempre será de segunda categoria, porque, na tua visão, ela será um ser desequilibrado e incapaz de afeto verdadeiro. Tenho muita pena. Espero continuar a ouvir-te, Isilda, e a ver-te defender com convicção aquilo em que acreditas. Espero que, como sempre, continues a remar contra a maré de pessoas bem mais razoáveis que discordam de ti. E espero que, um dia, percebas que estás errada em opor a moral ao amor. Até lá, um grande abraço.

As vítimas do Meco e a praxe

Vi esta notícia ("Vítimas do Meco vistas a rastejar com pedras nos tornozelos") no Facebook.
"Isto é uma praxe. Uma experiência de vida. Não se meta." Terá sido desta forma que os alunos da Lusófona, que integravam o grupo estudantes que foram arrastados por uma onda na praia do Meco, se dirigiram aos moradores de Aiana de Cima que os abordaram na tarde de sábado, horas antes da tragédia, indignados com os contornos de humilhação a que se estavam a sujeitar.


Os comentários no Facebook seguiram-se. Condenações da praxe, elogios da praxe, de tudo um pouco.

Vamos pensar sobre isto. Uma hierarquia de poder existe porque alguém aceita submeter-se a ela. É um contrato social como outro qualquer, desde a família até ao Estado. Se ninguém se submetesse a ela, esse poder seria esvaziado e a hierarquia, consequentemente, deixaria de existir.

Então, primeira pergunta: o que leva alguém a submeter-se à hierarquia de poder "praxe"? O medo, diria. Medo de ficar excluído, de recusar um grupo possível de amigos, de passar por cima de uma experiência, etc. Mas, na verdade, a praxe, como surgiu em Coimbra e como ainda se pode ver no código, é um sistema que regulava as relações entre estudantes e dos estudantes com o resto da cidade. Não esqueçamos que aqui, pelo século XIX, havia uma segregação entre a parte futrica e a parte estudante da cidade. Era um equilíbrio social complicado, e o código da praxe surgiu como uma espécie de auto-regulamentação, que impedia que as pessoas fizessem merda e fossem parar aos calabouços da guarda universitária. Ainda hoje existem. Passem pela FDUC, vão até às escadas de Minerva e peçam a um bedel que vos mostrem. Não são bonitos.

Ou seja: essa coisa da praxe servir para integrar os caloiros na vida universitária não é a razão que está no seu âmago. A razão é a permanência de uma estrutura social do século XIX. Tradição? É o argumento mais falso que existe na coisa toda. Se o mundo que envolve a praxe mudou, o papel que ela ocupa no mundo muda também, portanto, não existe qualquer possibilidade de manter tradição. O pessoal conhecer-se e criar amizade sempre foi uma consequência, não a causa.

Segunda pergunta: essa consequência vale o esforço? Os defensores da praxe usam o seu efeito de integração para justificar todo e qualquer abuso e toda e qualquer patetice. Isso não se conseguiria convidando o pessoal novo para uma cerveja e batendo uma conversa e pronto? Para que pintar-lhes a cara e obrigá-los a fazer coisas burras?

O problema é que nós somos pessoas. Não tenho grande fé nas pessoas. Nós não fazemos atos de aproximação gratuitos; na generalidade, precisamos de uma justificação banal para eles acontecerem. Essas cerimónias patetas são essa justificação. Mas, ainda assim, há pessoas e pessoas.

Eu fui praxado em Coimbra. O que é que eu fiz? Nada que não faça hoje numa noite bem bebida, suponho. Jogar à apanhada com pessoal que não conheço. Simular um jogo de bilhar, em que uns gajos eram bola, outro era taco, etc. Enrolarem-me uma capa na cintura para fazer de saia, porque era o único gajo com cabelo comprido e tive de fazer de conta que era uma gaja numa discoteca a ser engatada. Subir para uma cadeira num café e fingir que era o João Baião no Big Show Sic. Ninguém me pintou a cara, foi uma bela manhã de 5a feira, ri-me muito, realmente comecei grandes amizades aí e não me senti nem um pouco humilhado. O pessoal que me praxava era porreiro. Depois disso, a minha "praxe" durante o ano era querer estar em casa na 6a feira à noite e ligarem-me com uma ameaçazinha pateta qualquer a dizer que tinha de sair com eles. No fundo, apenas uma forma de dizer "gostamos de ti e queremos que nos venhas encontrar". Nada que um amigo meu não me vá fazer hoje mesmo. Se, no meio desses desfiles gigantes que Coimbra tinha, algum idiota me vinha chatear e queria que eu fizesse alguma coisa burra, eu dizia-lhe que não. Os meus "padrinhos de praxe" eram, e continuam, meus amigos. Que se fodessem os idiotas.

Eu sei que sempre se pode dizer "mas tu tinhas uma boa estrutura e confiança para dizer isso. há quem não tenha, e essas pessoas tem que ser protegidas". Eu sei. Eu tive amigos que tiveram que ficar numa varanda numa noite gelada porque o gajo que os praxava era um idiota em tons nazis. Para essas idiotices, existem tribunais. Nenhum juiz se vai virar para uma mulher e dizer "a sua violação repetida e sangrenta durante toda uma noite por um grupo de 15 homens não é crime, porque você aceitou ser praxada meses antes". Nenhum pode, pelo menos.

Qual a alternativa para isto? Um artigo no Código Penal a proibir toda e qualquer praxe? É preferível a este estado de coisas aquele que legitima um polícia vir e dizer "vocês estão presos por obrigarem este homem a imitar o João Baião"? Ainda assim, parece-me preferível a possibilidade de qualquer pessoa que seja vítima de violência injustificada poder julgar por si mesma se o foi e poder recorrer à justiça. Nós ainda temos uma responsabilidade por nós mesmos.

Se entendo bem, o que está em causa aqui é que os putos foram levados pela onda porque estavam a ser praxados. Mas e se não estivessem a ser praxados? Se estivessem só a tomar umas latas de cerveja e fossem apanhados igualmente, iríamos proibir as latas de cerveja? E se a "praxe", em vez de consistir em se arrastarem pela areia com pedras nos tornozelos, fosse ensaiar uma mega coreografia tipo Glee - depois de a onda vir, iríamos proibir o Glee?

Não gosto de gente idiota nem de atos idiotas. Também não gosto nada da falta de liberdade. Se este pessoal morreu por causa da negligência ignorante de quem os mandou para lá, quem os mandou para lá tem que se submeter à justiça. Histórias tristes acontecem, porque a vida é uma merda. Pelo menos, que isto sirva para os idiotas pensarem que talvez valha mais a pena ser porreiro.

Elegia a Albert Camus

Perguntaram-lhe se era um intelectual de esquerda, e ele respondeu, “Não sei se sou um intelectual. Quanto ao resto, sou de esquerda, apesar de mim e apesar da esquerda.”
(...)
Durante a guerra de 1954 a 1962 na Argélia, Camus recusou escolher entre os árabes argelinos, cujos direitos ele defendia com frequência, e a sua própria gente, os pieds noirs europeus. (...) Depois da cerimônia do prémio Nobel na Suécia, ele foi abordado por um jovem argelino a quem respondeu, num ataque de indignação "Eu acredito na justiça, mas defendo a minha mãe antes da justiça".
The Irish Times


Por acaso, há dois dias comecei a reler coisas sobre Camus e, numa daquelas coincidências boas (para não dizer incríveis), reparei que 7 de Novembro - amanhã! - é o centenário do nascimento dele.

Albert Camus foi provavelmente o autor que me marcou mais na vida. Li "O Estrangeiro" na idade certa, aos 16 ou 17 anos, na esplanada do antigo café das Termas em Monção. Enquanto os emigrantes temporariamente retornados aproveitavam as férias de Verão nas mesas ao lado, eu enchia o livro de notas, sublinhados e dobras (e, claro, espreitava-lhes as filhas). Como disse aqui, no primeiro e mais duradouro blog que tive, batizado com o título de outra obra dele:

Nunca tão claramente (ou mesmo nunca mais) um livro me transformou (...), no sentido de que o meu pensamento, a minha ética, tornaram-se outros depois de o ter lido. (...) Eu fui para a universidade para ser um homem absurdo - ou seja, tentei reflectir na minha vida o que tinha lido (...) e por isso é que "O Estrangeiro" é o livro da minha vida. Apropriei-me dele quando tentei aplicar o seu "programa" a ela e isso nunca mais voltou a acontecer com outro livro, por falta de disposição e porque, se calhar, a própria vida só nos dá uma tentativa para que isso aconteça.


Não sei se estava a sucumbir a um resto de entusiasmo adolescente há dez anos quando escrevi isto. Por outro lado, entusiasmo nunca deixa de ser uma coisa boa. Acontece-me com Camus uma daquelas coisas mágicas e difíceis de acontecer com qualquer autor: uma identificação imediata com o que leio e com a pessoa por trás daquele texto, desconfiado de totalitarismos, defensor do justo, um pensador livre. Parece que ele me tira da cabeça pensamentos que não pensei, mas que estão lá, prontos para serem pensados. Todas as frases estão no lugar certo e escritas do jeito que devem ser escritas, sem nada a mais e sem nada a menos. E, depois, parece que ele está a escrever só para mim, como se os romances dele fossem cartas que só encontraram o destinatário quando eu as encontrei. A personagem Joseph Grand, d'A Peste, um homem cujo trabalho de vida é reescrever constantemente uma frase até ela ficar perfeita ("Por uma bela manhã do mês de Maio, uma elegante amazona percorria, numa soberba égua alazã, as áleas floridas do Bosque de Bolonha"), marcou-me tanto que passei a usar esse nome em fóruns de Internet, nicknames em sites, emails, etc. Às vezes havia quem pensasse que eu me estava a referir ao tamanho do meu membro sexual, mas, quando o mundo real acontecia, só o Camus me restava.

Nos teus 100 anos, Camus, eu agradeço-te, honro a tua memória e declaro a minha admiração. Espero um dia produzir alguma coisa que marque alguém tanto quanto o que tu escreveste me marcou a mim. Por enquanto, releio-te, agora e sempre.

A história da minha dívida à Segurança Social

O Hugo Gonçalves escreveu no Facebook:
Prezado Estado português - em 15 anos de trabalho fui apenas dois anos efectivo. Escolhi este caminho de free lancer e nunca te pedi nada além do básico (escola, transportes, polícia) nunca tive subsídios, nem 13 ou 14 mês. Nunca tive um tacho ou fui assessor do assessor. Nunca escolhi o lado seguro e conivente dos yes man. Mas sempre paguei os meus impostos e agora, quando tento regularizar um pequena dívida à segurança social, és tão lento e inábil que me penhoras apesar da minha vontade em pagar. É por isso que vou cessar actividade em Portugal e, tão cedo, não vais ver um tostão nem um minuto do meu trabalho.

Isto lembrou-me a história da minha dívida à Segurança Social. E esta não é uma história de redenção e cheia de esperança no final, mas é bom contá-la, no mínimo para que a sua memória não se desvaneça.

Era Dezembro de 2011 e eu já estava no Brasil. Enquanto esperava o réveillon numa praia de Santa Catarina, a minha mãe mandou-me uma mensagem dizendo que tinha recebido uma carta estranha do banco. Ela digitalizou a carta e mandou-ma. A Segurança Social tinha-me penhorado 1.500 euros da minha conta a prazo da Caixa. Sem avisos, notificações, nada. O número do processo, que eu não sabia que existia, estava lá na carta, enorme, misterioso, o mais kafkiano que algo pode ser.

Eu adivinhava do que se tratava. Em 2010, quando cheguei ao Brasil, suspendi a atividade nas Finanças na loja do cidadão. Passei logo pelas SS e perguntei se era preciso fazer alguma coisa. A senhora, muito simpática, disse-me que não, que depois cruzavam os dados e pronto. Tudo bem, lá vim para o Brasil descansado.

Março de 2011. Voltei a Portugal e fui às SS por um assunto que não tinha nada a ver com isto. Pelo meio, a mulher disse-me "você tem uma dívida aqui". Eu resmunguei que não tinha dívida nenhuma, que sempre pagara todas as contribuições e nunca fiquei a dever nada a ninguém. Ela disse-me os meses das contribuições que supostamente não pagara. Eram os meses posteriores a ter encerrado a atividade nas Finanças. Pelos vistos, não tinham sido cruzados dados nenhuns com as Finanças. No que às SS dizia respeito, eu continuara a trabalhar tranquilamente e, um belo dia, decidira não lhes pagar mais nada.

A mulher bloqueou a dívida, para não render juros. Ela ficaria lá na base de dados deles por uma questão meramente formal e desapareceria do sistema assim que eu apresentasse o comprovativo do encerramento de atividade. Só que eu ia viajar para o Brasil uns dias depois e não conseguiria fazer isso. "Há um prazo?", perguntei. "Não", ela respondeu. Fiquei descansado.

Outubro de 2011. As SS nunca mais me disseram nada, mas, como estava em Portugal outra vez, fui à repartição entregar o comprovativo de encerramento da atividade. Pelo que me dizia respeito, o assunto estava encerrado.

Até que, em Dezembro, quando eu já estou no Brasil outra vez, a minha mãe me diz que as SS me penhoraram 1.500 euros da minha conta a prazo por conta de um processo que eu nunca vira, do qual nunca fora notificado e, consequentemente, nunca me fora dada oportunidade de fazer contraditório.

Seguiu-se uma série de e-mails e telefonemas para tentar descobrir que processo era este e o que se deveria fazer para o resolver. Por sorte, a minha mãe professora tem uns 20 anos de sindicalismo nas costas e conhece todas as subtilezas do diálogo com órgãos públicos. Depois de muito blablablá com as SS, lá acabou por ir à repartição entregar não só o comprovativo do encerramento da atividade nas Finanças como também o comprovativo de que já tinha entregue nas SS o comprovativo do encerramento da atividade nas Finanças. Em Janeiro, o dinheiro que me fora penhorado voltou à minha conta.

A minha veia conspirativa sussurra-me ainda hoje que, num ano em que todo o discurso político já se fazia à volta da crise, houve uma corrida para injetar todo o dinheiro possível na máquina do Estado. Por isso me tiraram o dinheiro em Dezembro, por isso mo devolveram em Janeiro. Os números oficiais mostrariam que as cobranças por dívídas às SS aumentariam em 2011 - mas não se veriam os números dizendo quantas dessas cobranças foram devolvidas em 2012.

Como disse, isso é o que a minha veia conspirativa me sussura, e ela pode estar errada. A culpa não foi dos funcionários públicos que me atenderam, que, ao longo desta história toda, foram sempre prestativos e educados. A culpa também não foi minha, porque fiz tudo o que precisava ter feito. A culpa nem foi da minha mãe (lamento, Freud). A culpa foi toda de um sistema burocrático que deveria existir para servir as pessoas, mas do qual é mais fácil sair do que suportar. E é uma pena que isso seja assim.

As lágrimas do chuveiro elétrico

O meu chuveiro elétrico
É que sofre no entretanto.
"É inverno ou verão?!",
Pergunta ele chorando.

Mas, meu querido chuveiro,
Não adianta chorar
Porque moras em São Paulo
Tens mais é que trabalhar.