O piropo e o sexo

Li a resenha da sessão sobre o piropo no Fórum Socialismo 2013 que está a agitar o meu Facebook há uns dias. Comentários:

"[O piropo é] mais uma demonstração da relação de poder que a sociedade patriarcal estabelece."
Se aceitarmos que a sociedade é patriarcal, sim. Não me parece que a sociedade seja tão patriarcal como já foi, mas, se o piropo existe e alguém se incomoda, isso deve ser falado. Afinal, estes fóruns não são para isso mesmo?

"A rua pertence de maneira diferente aos homens do que às mulheres, às quais lhe é reservado o espaço privado, o da casa, os filhos , as comidas."
Quem sinceramente dá crédito a algum homem ou mulher que pense assim? A sério, quem, desta ou de outra geração? Uma vez, no elétrico 28, um velho taradote fez um comentário menos próprio sobre a parte posterior de uma jovem moça que estava à frente dele. Sem desculpar o mau gosto, as velhas que lá estavam trucidaram-no ao ponto que cheguei a temer pela segurança física do homem.

"O homem é ensinado desde pequeno a ser sujeito sexual (...). Pelo contrário à mulher lhe é reservada apenas a possibilidade de ser objeto sexual."
Claramente, alguém se esqueceu de dizer isso a várias mulheres que conheci. E ainda bem.

"O corpo da mulher está presente nas fantasias masculinas heterossexuais e na sua realidade, como algo que ele utiliza ao seu gosto e conveniência."
Er... não podemos dizer também que o corpo do homem está presente nas fantasias femininas heterossexuais e na sua realidade, como algo que ela utiliza ao seu gosto e conveniência? Não é isso a base da fantasia?

Eu acho muito bem que estas palestrantes exponham os seus pontos de vista e a sua indignação, que só quer transformar o mundo num lugar melhor. Mas eu espero que, quando o fizerem, queiram transformar este mundo - e não aquele sobre que as feministas do século XX escreviam. Não esqueçamos que, se "a banalização [do piropo] reflete a normalização da ideia da mulher enquanto ser que está aí para cumprir o seu papel, ser vista e avaliada, tocada", o direito da mulher se virar para o homem e dizer "vai apanhar no cu, cabrão filho da puta" também já foi conquistado há algum tempo.

Justice: uma grande aula

http://www.youtube.com/watch?v=8I8e8oJpoII&list=SP5FAA509E4E51B654

O que me chamou mais a atenção há uns meses na primeira vez que vi Justice foi que, logo no primeiro episódio, Michael Sandel confronta os seus alunos com um caso que me lembrava de ter lido no manual de Direito Penal do Eduardo Correia, onde ele defendia haver uma coisa chamada "espaço livre de Direito". Isso tem-me servido em conversas desde então para mascarar o fato de recordar muito pouco do que estudei durante 5 anos.

Assistir Justice é um reencontro com um tempo em que ouvia um grande professor, Gomes Canotilho, falar de temas complexos a mentes ansiosas com a consciência de que a reflexão sobre a resposta é mais importante do que a própria resposta. É um reconhecimento nas caras dos alunos, desde os mais tímidos até aos mais interventivos, da minha e das dos meus colegas, fervilhando enquanto tentávamos fazer sentido do que estavamos a ouvir. E, claro, não deixa de haver uma certa vaidade intelectual de estarmos a assistir uma aula de Harvard...

Felizmente, a UNIVESP TV disponibiliza todos os episódios legendados de forma gratuita no seu canal do YouTube. Se quiserem vê-los de seguida, é só dar um play no vídeo aqui em cima.

O que é ver Deolinda em São Paulo

É ir ao SESC Santana, ver uma sala cheia e ficar surpreendido por a esmagadora maioria ser brasileira, e não portuguesa.

É lembrar tê-los ouvido na internet por acaso, ir ao lançamento do primeiro disco deles na FNAC do Chiado, onde estavam umas 20 pessoas, e ganhar o bilhete para ir ao São Jorge uma semana depois, que estava cheio, e pensar que esta não era uma banda qualquer.

É ouvir as guitarras tocar e lembrar Lisboa, o sol, as praças, as casinhas da Graça, o elétrico 28 que me levava até ao trabalho na Estrela, os velhos castiços, as ginjinhas no Rossio.

É ouvir "Parva que sou" e me passarem pela cabeça as manifestações a que não pude ir e as caras das minhas pessoas a descer a Avenida da Liberdade.

É chorar um pouco também.

"A adoção de crianças por casais homossexuais põe em risco a família"


Assim diz uma vereadora do Recife, Michele Collins. É uma das minhas lógicas preferidas nos tempos que correm. Apliquemos o argumento a outras dimensões da realidade.

A adoção de iPhone por quem tem PC põe em risco a tecnologia.
Claro.

A adoção de um carro por quem dirige bicicleta põe em risco o transporte.
É muito certo.

A adoção de cachorro por quem tem gato põe em risco a vida animal.
Porque não se fala isso mais vezes?

A adoção de vegetais por quem come carne põe em risco a comida.
Com certeza.

A adoção de panelas por chapeiros põe em risco a culinária.
Surpreende-me que ninguém tenha pensado nisso antes.

A adoção de regras por quem é desregrado põe em risco a ética.
Faz todo o sentido.

E por aí poderíamos ir. Agora, só fico muito curioso por saber o que Michele Collins diria sobre esta piada sobre a cidade que ela administra. Aposto que seria um comentário muito inteligente.

A Lei Maria da Penha deveria ter sido aplicada no caso da agressão a Luana Piovani?

Primeiro, achava que não.

A decisão de não aplicar a lei Maria da Penha foi baseada pelo relator do TJRJ no fato de que "a indicada vítima (...) não pode ser considerada uma mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade".

Portanto, eu, estrangeiro, desconhecedor, pensei que a Lei Maria da Penha precisava das condições "relação afetiva estável", "hipossuficiência" ou "vulnerabilidade" para ser aplicada.

Cabe dizer que não aplicar a lei Maria da Penha não significa que a agressão não seja punida. Simplesmente, sê-lo-á pelas leis gerais sobre agressão, sem os agravamentos previstos por aquela.

Portanto, se a lei Maria da Penha é especial, é preciso ver em que situações especiais ela deve ser aplicada.

Fui lê-la.

Pesquisei "estável": nada.

Pesquisei "hipossuficiência": nada.

Pesquisei "vulnerabilidade": nada.

"Raio", pensei, "vou ter mesmo de ler isto". Fico sempre relutante por voltar aos meus tempos de jurista, mas lá foi.

E então reparei no artigo 5º.
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
(...)
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Ou seja, "estabilidade", "hipossuficiência" e "vulnerabilidade" não são critérios necessários para a sua aplicação.

Não é necessário filhos, não é necessário um casamento, não é necessário coabitar, não é necessário dependência económica.

O que é necessário é convívio e uma relação íntima de afeto.

O art. 5º/III é claro, e esquecê-lo só pode revelar uma incompetência grave e uma argumentação desnecessária e circular. O TJRJ, como mostra o acórdão, incorreu nesses dois defeitos ao ir buscar a justificação numa ratio legis meio inventada ("violência intra-familiar, levando em conta a relação de gênero, diante da desigualdade socialmente constituída") quando a lei contem uma norma concreta claríssima.

Porque o tribunal fez isso, eu não sei. Mas, no caso de Luana Piovani, a sua decisão foi errada.

Memória

Um gajo trabalha tanto que é fácil esquecer-se de ter saudades. Porque não é só saudade que é lembrança: é preciso lembrarmo-nos de ter saudade. Mas um dia por acaso ouvimos coisas assim, que nos arrancam do presente e nos atiram com força, nos esmagam a cara, contra o que somos. Fora de Portugal, ouvindo coisas assim, pareço-me mais português do que nunca.

Um poema de Marcial (séc. I)

Pergunto-te: quem pode suportar esse afã?
Lês para mim quando estou de pé,
Lês para mim quando estou sentado,
Lês para mim quando estou correndo,
Lês para mim quando estou cagando.

As duas máquinas

São Paulo teve manifestações brutais esta semana que estão a ser alvo de muita atenção pelo mundo fora. A causa delas foi o aumento da tarifa dos ônibus e metro de R$3 para R$3,20, ou seja, um aumento de 15%. Mas elas representam um pouco mais do que isso.

Para que quem não é daqui entenda, o sistema de transporte público de São Paulo funciona de uma forma um pouco esquizofrénica. Nunca vi um metro que tivesse uma rotação de trens tão rápida, mas, por outro lado, o tamanho da rede é minúsculo em relação ao tamanho da cidade. SP é uma das cidades mais congestionadas do mundo e os ônibus sofrem nos engarrafamentos, se bem que desconfio que uma cidade como Lisboa arranja às vezes complicações maiores com um volume de trânsito muito menor. O metro e os ônibus, apesar de muito cheios nas horas de rush, são relativamente confortáveis, mas não existe integração entre viagens - ou seja, uma viagem que implique metro e ônibus implica o pagamento de duas tarifas (ainda que uma acabe diminuída, mas implica).

Ou seja, num estado em que o salário mínimo é de 755 reais e num país que discute a distribuição dos lucros do pré-sal e os biliões gastos nos estádios da Copa do Mundo, custa a engolir que seja a classe menos endinheirada a suportar o aumento da inflação no transporte público.

Claro, o Governador diz que a subida foi menor do que a inflação e o prefeito Haddad sempre admitiu que as tarifas iriam aumentar (e iriam aumentar mais do que o costume porque o anterior prefeito, Kassab, não quis ajustá-las em ano de eleição). Por outro lado, Haddad criou a primeira encarnação de passe mensal e ilimitado. Mas esta subida acabou por servir como a gota de água que fez transbordar o copo. O poder brasileiro tem frequentemente desvios de autoritarismo e, pior, é um autoritarismo que acontece sem muitas vezes ter uma razão aparente. A polícia acaba servindo como um braço visível desse impulso repressivo.

Entre muitas coisas, uma manifestação é um símbolo, em que duas máquinas se confrontam: uma máquina de manifestar e uma máquina de controlar. Essas máquinas são bem complexas e bem maiores do que as pessoas que as representam no momento e espaço concreto. Trata-se de manifestantes e policiais, sim, mas também de opinion makers das duas facções, anarquistas e comerciantes preocupados com as suas lojas, cidadãos comuns e políticos.

A polícia justifica-se com a radicalidade de alguns manifestantes, agressões contra PM's e atos de vandalismo para justificar a carga. Argumentos que perdem um pouco a razão quando a polícia é encontrada a partir as janelas dos seus próprios carros para culpar terceiros.

httpv://www.youtube.com/watch?v=kxPNQDFcR0U

Além de achar que balas de borracha e bombas de lacrimogéneo disparadas a rodo contra protestantes pacíficos não são uma solução proporcional para lidar com pedradas ou sprays para pichar paredes, tenho uma pergunta a martelar-me a cabeça: quem transformou ao longo do tempo uma manifestação num evento violento? Foram os manifestantes? A carga policial de ontem está a justificar maiores mecanismos de defesa - e de agressão - para a próxima manifestação na segunda feira. Portanto, a violência da máquina de controlar justifica a violência da máquina de manifestar e vice-versa. A polícia impediu os manifestantes de entrarem na Paulista, limitando sem razão o seu direito de se manifestar. A polícia prendeu pessoas por terem, não gasolina ou granadas, mas simples vinagre (usado para suportar o gás lacrimogéneo). A polícia fez ontem os atos que os meus amigos Cícero Oliveira e Ana Reber, bem descreveram.
"A tropa de choque avançou pelas laterais do cortejo, que subia pacificamente em direção à Avenida Paulista. Na altura do Mackenzie, ela fez um bloqueio e, entre gritos de "Sem violência!" e "Não reajam", começou a atirar bombas de gás lacrimogêneo. A multidão recuou, concentrando-se, então, na Praça Roosevelt. A tropa de choque (que havia se dividido e encurralado dos dois lados – Avenida Ipiranga e Consolação – os manifestantes) jogava bombas, balas de borracha, a cavalaria. De repente só havia gente correndo desesperada, gente, aliás, que nunca tinha participado de nenhuma manifestação (a média de idade ali era claramente de 20, 25 anos), que não sabia que gás lacrimogêneo fazia arder a garganta e chorar."

"Os manifestantes gritavam e pediam paz. Estudantes com olhos cheios de lágrimas, gente machucada...foi muito triste e me lembrou aquele discurso, de que as pessoas que lutavam contra a ditadura eram terroristas. Por que protestos em qualquer outro lugar do mundo são legítimos e aqui são taxados de baderna?"

A violência ontem levou a mídia a mudar o discurso: depois de focar no vandalismo de terríveis pichadores, centrou-se hoje na malvadeza da terrível polícia. Ontem, a Folha de São Paulo pedia fotografias de vandalismo; hoje pediu relatos de violência policial. Haddad, sentindo o seu eleitorado desertar, já veio condenar a violência. Vejamos o que as máquinas vão dizer na segunda feira. Por agora, até uma dança mereceu rojão.

httpv://www.youtube.com/watch?v=LmcLqlFk6Ac

Uma daquelas coisas que dá gosto ler quando se é roteirista

https://twitter.com/Juliadidit/status/339160343647498240

A primeira vez

São quase 3h da manhã e eu devia estar a dormir, mas acabei de fazer uma coisa pela primeira vez e quero registá-la aqui. Não, relaxem, não foi encher sacos plásticos com os pedacinhos milimétricos de uma mulher que passeava na rua à noite (até porque só faço isso com gatinhos de até 2 semanas de idade).

Eu já vi dois (ou mais) filmes, uns atrás dos outros, várias vezes. Eu já vi dois (ou mais) episódios de série, uns atrás dos outros, várias vezes. Mas eu nunca vira um episódio de série e, no final, voltado a vê-lo todo de novo por puro e absoluto deleite. E foi isso que me aconteceu com o 8º episódio da 6ª temporada de Mad Men.

Eu sei que vou merecer escárnio eterno pelo que vou dizer, mas houve um momento que fez os meus olhos marejarem-se de lágrimas, não pelos fatos que aconteciam, mas pelo modo como estavam a ser contados. Uma estrutura perfeita, dolorosa de tão boa, um exemplo de como inteligência na planificação da história previne o overacting do ator. Para entender o que estou a dizer, vejam como aquelas elipses são feitas e como Jon Hamm não precisa de cambalear para mostrar que... enfim, vejam e irão entender.

Aproveitando, antes que alguém ache que estou hipersensível e me pergunte se está tudo bem, já deixo aqui a resposta.

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