Rio de Janeiro, agora

Quando a constituição de um país democrático reconhece ser "livre a manifestação do pensamento", ele inclui nesse direito não ter que receber ameaças de morte por parte de polícias à paisana, certo? Ao que parece, não é isso que pensa a polícia do Rio de Janeiro.

Desde o dia 26 de Julho, um grupo de cidadãos livres está na rua, numa ocupação na frente da casa do Governador do RJ Sérgio Cabral Filho, na Delfim Moreira com a Rainha Guilhermina. Manifestam-se para exigir a sua prisão por aquilo que consideram ser os seus crimes, nomeadamente pelo seu envolvimento no caso da imobiliária Delta. Quem quiser saber todas as motivações do grupo, pode ir à sua página do Facebook.

httpv://www.youtube.com/watch?v=kwHIT8jaCmA

Numa democracia, as pessoas podem concordar ou não umas com as outras. E, numa democracia, os cidadãos e as forças policiais jogam permanentemente a tensão entre direito à expressão livre e o dever de manutenção da ordem pública. Isto são coisas normais. Estive em Londres em Novembro e vi a polícia dispersar uma manifestação do Occupy London na St. Paul's Cathedral. Os protestantes protestaram, a polícia avançou bem devagar, os ânimos aqueceram, mas não houve nenhum confronto. Isto é um jogo, que tem que ser jogado para que uma sociedade seja esclarecida sobre os diferentes pontos de vista quanto ao modo como ela se deve organizar.

Mas as regras do jogo são violadas quando polícias à paisana fotografam os manifestantes e ameaçam um deles dizendo "vocês querem morrer cedo...", que foi o que aconteceu ontem no Rio de Janeiro. E não adianta dizer "no Brasil é assim". Não existe "Brasil assim". Não existe "Portugal" ou "Europa assim". Os direitos estão consagrados e, se não são respeitados, cabe aos seus detentores fazer com que o sejam. As pessoas que estão neste preciso momento à frente da casa do Governador do RJ estão fazendo isso mesmo. Concorde-se ou não com o seu ponto de vista, eles têm o direito de expressá-lo. E, como um movimento de contestação válido não está tendo a cobertura devida pela comunicação social tradicional - o que, me apercebo tristemente, é cada vez mais normal neste país -, é preciso que blogs como este o façam.

Amor! Amor! Amor!

Há muitas coisas para dizer, mas não as vou dizer agora. Em vez disso, vou deixar que outras pessoas falem por mim. Estes são alguns dos últimos sublinhados que fiz.

Sexo é como futebol. É divertido, atlético e deve ser feito com amigos.
Perfil do pornstar James Deen para a GQ

Não sei que tipo de nação acaba com a arte, a música e a educação física na escola pública. Vamos ser uma nação de jovens estudantes obesos e que não sabem nada sobre arte ou música.
Spike Lee fala sobre Obama, o fim da Broklyn de Mookie e a divisão de cor em Hollywood

O Anonymous tornou-se numa cultura. Como uma máscara de plástico do Guy Fawkes, ele é uma identidade que qualquer pessoa pode assumir.
Como o Anonymous escolhe alvos, lança ataques e derruba organizações poderosas

O cinema está na sua infância. Os livros, na meia idade. As histórias em si mesmas são antigas. Mas a música é primitiva. Os livros podem preceder o comércio, mas a música precede a linguagem.
Música: o pecado original da Internet

Ler é uma capacidade da maioria, mas uma arte de minorias.
Julian Barnes: a minha vida como bibliófilo

No final, escrever é como usar roupa: fazemo-lo para contribuir para o modo como o mundo nos vê, e acabamos a revelar precisamente o que escondemos e mais, mais do que alguma vez saberemos.
As dicas de moda do meu pai

As minhas pesquisas psicotrónicas levaram-me a uma nova descoberta: um artista é um monstro que pensa que é humano.
Uma infância psicotrónica


Filmes são feitos por pessoas que se dedicam em absoluto a fazer filmes. Elas abandonam as suas vidas e negligenciam os filhos para fazer filmes sobre o valor da família.
10 Timeframes

As pessoas continuam a trabalhar num mundo freelance, e o mundo é cada vez mais freelance, porque o seu trabalho é bom, porque é fácil conviver com elas, e porque entregam o trabalho a tempo. E nem as três condições são precisas. Duas de três está ótimo. As pessoas vão tolerar seres desagradável se o teu trabalho é bom e o entregas a tempo. Elas perdoarão o atraso do trabalho se ele for bom e gostarem de ti. E nem precisas de ser tão bom como os outros se fores pontual e for sempre um prazer ouvir a tua voz.
Neil Gaiman: discurso de formatura para a Universidade das Artes

"Amor!" disse ele a cada apontar de dedo. "Amor! Amor! Amor! Amor! Amor! Amor!"
Papá: as últimas palavras do meu pai

Perícia sobre Patrícia

Relato da falecida ex-Paquita Patrícia do programa da XUXA!
A pessoa da foto chama-se Patrícia e, a acreditar pelo meme que tem inundado o Facebook por estes dias, morreu aos 17 anos com 24 quilos devido a paragem cardíaco-respiratória em consequência da AIDS. Isso, pelo menos, é que descreveu a enfermeira Danelise, a quem Patrícia terá ditado uma comovente carta, narrando o caminho de droga e perdição que a levou de patricinha com aspirações a modelo até à morte, começando em chopps e acabando em misturas de cocaína com sangue.

Uma pesquisa rápida mostra que a história de Patrícia corre desde 2003, ano em que a carta terá sido escrita. Algumas passagens dão-me que pensar. É curioso, por exemplo, que a galera que iniciou Patrícia na maconha e no pó tenha vindo logo de São Paulo. Ah, esses paulistas viciosos, espalhando a sua sujeira pelo Brasil...

Outro momento pitoresco é quando ela diz que, num momento de fabulosa decadência, se entretinha a misturar esterco de cavalo com maconha. Maconha já não é uma coisa que haja em qualquer lugar, mas esterco de cavalo? Imagino a dificuldade que seja encontrar esterco de cavalo com boa qualidade na noite de Florianópolis. Se quiserem encontrar os responsáveis pela morte de Patrícia, procurem nas cavalariças de lá. Mas ainda bem que não foi a galera de São Paulo a fazer a mistura. Afinal, fazer uma viagem de SP até Santa Catarina com uma mochila cheia de maconha e merda deve ser muito desconfortável.

Uma leitura mais atenta mostra que há coisas que não batem certo neste texto. O site Quatro Cantos aponta algumas, incluindo uma bem curiosa:
Cronologia dos fatos supondo que a mensagem tenha sido ditada em 2003, ano em que ela começou a circular:

2003 Patrícia morreu aos 17 anos.
1997 Patrícia descobriu que estava com AIDS.
1994 Patrícia foi à Oktoberfest, bebeu chopp e provou a maconha.

Notou alguma coisa estranha nessas datas?

Se ela morreu aos 17 anos - em 2003 -, então no ano de 1994, quando ela foi à Oktoberfest, ela teria 8 anos de idade. Se a morte dela ocorreu em 2002, então ela teria ido à tal festa aos 9 anos de idade.

Por mais liberais e desapegados que fossem os pais dela, é pouco provável que a tivessem liberado, aos 8 ou 9 anos de idade, para ir, com uma turma de amigos, à famosa festa.




Outra coisa que não bate certo é que a suposta foto de Patrícia pré-desgraça seja a foto de perfil no Facebook de uma tal Anke Grunwald. Segundo o mesmo perfil, Anke gosta de ProMedia TV POS Entertainment GmbH & Co.KG e de DRIVZ.de. Nenhuma menção a coca com sangue.

É sempre possível que Anke Grunwald tenha copiado a foto da defunta Patrícia e esteja roubando a personalidade dela. Se for assim, Anke Grunwald é uma pessoa má e pérfida que nunca deve ser admitida a entrar em Florianópolis. Mas eu não acredito que isso seja verdade. Acredito que a história é um embuste fabricado por quem não tinha mais para fazer. E até pode ser que tivesse bons motivos. Uma história de droga próxima, que levou a escrever um texto sensacionalista que servisse de alerta. E vai haver sempre quem diga que, apesar de o texto ser falso, não nos podemos esquecer de que há pessoas em situações trágicas semelhantes ou piores do que a Patrícia, que nesse preciso momento andam a estragar a vida fumando esterco de cavalo (ou de burro, quando o produto bom está em falta).

Nós ensinamos as crianças a não mentir. E há várias razões para isso. Não é só uma questão de educação ou de impedir que elas se transformem, por exemplo, em maléficos paulistas que vão a Florianópolis converter jovens à droga. A mentira atrasa a sociedade, porque faz com que não saibamos com o que podemos contar. Uma mentira abre a possibilidade de que tudo seja falso. E pode ser assim mesmo, mas adultos querem-se esclarecidos e conhecedores, não figuras histéricas que gritam "fogo" quando alguém acende um isqueiro e partilham coisas com o mundo que não são mais do que fogachos de medo e obscurantismo.

Seria bom viver num mundo em que se começa no chopp e em poucos anos se acaba a dar na coca até morrer. Num mundo assim, saberíamos com o que podemos contar. Mas o mundo não é assim.

Tom Cruise ladrão, cachimbo de crack e indianos

1. No último Missão Impossível, há uma cena em que o Tom Cruise está a ser perseguido e, sem parar, pega um celular da mesa de um café para ligar para a central lá da coisa onde trabalha. No fim, joga o celular fora. A chamada corre bem e ele safa-se, mas fez-me impressão, quando vi o filme e ainda hoje, que ninguém se importe com o cliente de café, que devia ter ido no banheiro e, descansado, esperava ter o seu celular em cima da mesa do mesmo jeito que o tinha deixado. O fato de ele ser agente especial e mais não sei o quê não dá a Tom Cruise o direito de andar para aí a roubar coisas. Mais atenção da próxima vez.

2. O crack é a droga mais barata e destruidora que existe. Ela tem que ser fumada em cachimbadas, normalmente improvisadas em tubos de plásticos. Mas no outro dia, quando passei na esquina da Nothmann com a São João, onde o ex-pessoal da Cracolândia encontrou um pousio mais ou menos tranquilo, vi um rapaz, bem novo e ainda não muito destruído, com um cachimbo a sério, fornalha de madeira e piteira de metal. Um gourmet do crack, que parece quase tão absurdo como dizer "degustador de fumos industriais", mas é assim mesmo. Em terra de crack, quem tem um cachimbo é rei?

3. Só há dois restaurantes indianos em São Paulo e, sempre que me dá vontade de um camarão korma, só me lembro daquele em Lisboa na Graça (não esse; o outro, em frente ao Pingo Doce), onde havia cerveja Cobra fresquinha, um nan incrível e uma bebinca deliciosa. Quero comer chamuças sem ter que lhes chamar "samossas". Quero comer um caril sem ter que lhe chamar "curry". Se aqui há senegaleses a venderem bijuterias, porque não pode haver indianos a venderem comida?

Noturno


1
O castelinho da rua Apa é um dos edifícios mais conhecidos de São Paulo, e não pelas melhores razões. Só me apercebi que morava perto dele quando tinha aqui o Salvador e fiquei à espera dele na esquina para irmos não sei já bem para onde. Enquanto esperava, percebi que tinha uma construção bastante invulgar à frente. Grande, com torres e ameias, tapada por redes e com ar de negligência prolongada. Nenhum movimento. Apesar de a região ter muitos sem-abrigo, principalmente depois de terem esvaziado a Cracolândia, não parecia que alguém lá se abrigasse à noite. Fiquei intrigado: o que seria aquele castelo com ar medieval no meio da urbaníssima São Paulo? O Guia do Desconhecido diz-nos porque ele se encontra desocupado e com fama de mal assombrado há mais de 70 anos:
Uma história de glamour e sangue abalou a aristocracia paulistana na noite de 12 de maio de 1937. Três membros de uma das mais abastadas e tradicionais famílias foram encontrados mortos em circunstâncias misteriosas.
O cenário do crime: o interior de um castelinho localizado na Rua Apa com a Avenida São João no centro de São Paulo. O imóvel é uma réplica de um castelo medieval, projetado e construído por arquitetos franceses no século passado.
No distante dia 12 de maio de 1937, o empresário Álvaro César dos Reis, 45 anos, supostamente assassinou a tiros sua mãe, Maria Cândida Guimarães dos Reis, 73, e também o irmão, Armando César dos Reis, 42, suicidando em seguida (estranhamente o fazendo com dois disparos). O motivo do assim chamado "Crime do Castelinho da Rua Apa", que aconteceu nesse castelo onde a velha mãe morava, até hoje não foi inteiramente esclarecido.


2
Era normal em Monção que os morcegos aparecessem no fim do Verão. Antes de a escola recomeçar, eles ficavam a dar voltas por cima das vinhas que formavam um chão frágil entre os dois terraços da minha casa e onde os gatos gostavam de descansar, pequenos montes de pêlo quietos de preguiça. Eu, que ainda vinha com a pele jovem curtida do sol de Vila Praia de Âncora, saía ao terraço para aproveitar as últimas noites quentes e livres e ficava a vê-los voar, tentando perceber como seriam as caras, imaginando a textura das asas. Um dia quis-lhes testar o radar e fui buscar a rede de camaroeiro com que passara um mês tentando catar gambas dos charcos nas rochas da praia. Levantei-a o mais que pude, mas nenhum morcego foi ingénuo o suficiente para se deixar apanhar. O círculo que voavam era mais importante e nunca desciam o suficiente para chegarem até mim. Acho que foi por causa disso que nunca tive medo que se me prendessem no cabelo.

3
É noite e o morcego sai do castelinho da Rua Apa. Vejo-o da janela da minha casa, descrevendo círculos intermináveis em volta da árvore que está mesmo em frente. Pode ficar assim durante meia hora, reentrar e só voltar a sair dali a pouco. É grande. As asas abertas devem ter o comprimento de um dos braços. Não lhe consigo ver a cara, só a forma escura rondando a noite, voando por cima dos sem-abrigo que, com medo de cruzar os muros do castelo, se deixam ficar deitados em colchões improvisados e com cheiro a merda por baixo do Minhocão. De repente, ele bate as asas e quebra o círculo. Começa a voar por cima do viaduto para longe, uma linha direta, sem fim, interminável, pelo meio dos edifícios de São Paulo. Nunca mais o vejo.

A morte de Bernardo Sassetti


O que é ser uma figura pública? A morte de Bernardo Sassetti, 41 anos, faz-me pensar nisso. Ele não seria alguém que se dissesse extremamente conhecido, apesar de que qualquer pessoa lhe conhecesse o nome de algum lugar. Mas então eu lembro-me de quando trabalhei na loja que a Trem Azul teve em Coimbra. Numa tarde de Junho, entrou um casal holandês. Queriam discos de pianistas portugueses e mostrei-lhes vários do Sassetti. Quando a música do filme Alice começou a tocar e aqueles acordes soltos e profundos de piano se fizeram ouvir, um alfinete não poderia cair sem quebrar o momento. Era como se o ar quente, a tarde, os ruídos todos da baixa se enfunilassem e desaparecessem até que aqueles segundos não fossem mais do que aquele som que tocou algo em todas as pessoas que estavam naquela sala. Fiquei calado, só podia ficar calado, como se estivesse numa igreja. Olhei para os turistas. Estavam de olhos fechados, respirando profundamente, evitando sentir algo mais que não fosse a música. E hoje eu entendo: Sassetti era uma figura pública porque, de alguma forma, ele esteve presente dessa forma significativa na vida de milhares de pessoas, emocionando-as - e não só comovendo-as: não esquecer que ele já participava em discos de jazz bem swingado desde adolescente - com a sua música. E, por causa de um acidente, não o poderá continuar a fazer. É uma pena.
httpv://www.youtube.com/watch?v=cY1i1tgAgS4

Salvador no Brasil: a série que gravei com o Salvador Martinha

A 20 de Outubro de 2011, recebi uma mensagem do Salvador Martinha no Facebook dizendo que me queria lançar um repto. Conhecia o Salvador mais ou menos. Tínhamo-nos cruzado uma ou outra vez quando trabalhei nas Produções Fictícias e sempre me pareceu bem disposto (há quem não saiba que isso não é regra entre humoristas) e bastante profissional. Porém, não o conhecia a ponto de poder assegurar que era uma ótima pessoa. Hoje, posso fazê-lo.

http://rd3.videos.sapo.pt/play?file=http://rd3.videos.sapo.pt/pDNAP5yDrJvKNMHSULLZ/mov/1

O repto que o Salvador me lançou foi gravar um documentário sobre a tournée que ele planeava fazer pelo Brasil. Logo disse que sim. Nunca me considerei humorista, mas trabalho muito com humor no que faço. Estou próximo o suficiente para entender o universo de quem, noite após noite, se submete ao julgamento imediato do público pronunciado nos cruéis termos de rir/não rir. Em Portugal, os humoristas não são tratados com seriedade. Um documentário como o Comedian seria impossível há uns anos na Tugalândia. Fazer o Comedian português sobre a tarefa hercúlea que o Salvador Martinha se propôs - um português, no Brasil pela primeira vez, a fazer rir os brasileiros com um texto construído in loco - era um desafio ao qual não podia dizer que não.

http://rd3.videos.sapo.pt/play?file=http://rd3.videos.sapo.pt/u8QukftABvf1aop8C2hT/mov/1

O Canal Q bancou-nos o projeto, com um previsível orçamento reduzido. Não podiamos garantir resultados, só força de vontade. Ajudou o fato de eu ter acabado de começar a morar sozinho quando ele chegou. O Salvador entrou numa casa nova, sem móveis, que nem eletrodomésticos tinha (aliás, ele testemunhou a chegada de alguns deles). Nunca uma queixa lhe saiu da boca. Ficamos amigos imediatamente e, durante 3 semanas, gravei-o dia e noite. Gravei-o a escrever, a dormir, a comer, a tomar banho, a dar os espetáculos, a descobrir a cidade, a entrevistar alguns dos humoristas mais conhecidos do Brasil. Ajudei-o com as palavras que deveria evitar, com as punchlines que deveria preferir. O Salvador entrou no meu círculo de amigos aqui. Foi muito divertido e, no final, os resultados viram-se. Com dezenas de horas gravadas, a descoberta de um mundo novo, o confronto do comediante com o público e os vaivéns do processo de construção do texto ficaram registadas como nunca antes se viu em português.

http://rd3.videos.sapo.pt/play?file=http://rd3.videos.sapo.pt/6rqpDfOBcZ5PJMjRrw60/mov/1

A série que acabou sendo transmitida pelo Canal Q enche-me de orgulho e tenho que dar um agradecimento especial ao Nuno Alberto, que nos emprestou a câmara principal com que gravámos, e ao Tiago Câmara, que navegou pela imensidão do hard drive que seguiu para Portugal e com esse material criou grandiosos episódios. Espero que esta série ajude a mudar a imagem que alguns portugueses têm sobre os brasileiros e a que alguns brasileiros têm sobre os portugueses. E, acima de tudo, espero que ela ajude a mudar a imagem que a generalidade do público tem sobre a profissão de humorista.

http://rd3.videos.sapo.pt/play?file=http://rd3.videos.sapo.pt/PAC5qikcJbNeyqpF9tVZ/mov/1

Sobre o Bloco do Eu Sozinho de Los Hermanos

Pensamentos e observações enquanto ouvia um disco completo de Los Hermanos pela primeira vez. Para a escuta, tinha as músicas e as letras e nada mais. Portanto, se aqui houver incorreções por falta de informação, considerem que não pretendo fazer uma crítica, mas tão só registar uma experiência. Mais explicações aqui.

COISAS PRÉVIAS
"Bloco do Eu Sozinho" é um título interessante e bem revelador daquilo que imagino que a banda queira dizer: à alegria e multidão associadas aos blocos de Carnaval contrapõem a introspeção, o sentimento, o pensamento. O diabinho dentro de mim espeta a forca e pede-me para lhes chamar maricas e chorões, mas não me vou deixar render já aos pensamentos maliciosos.

(começo a tocar o disco)

Todo Carnaval Tem Seu Fim
Considerando o título do disco, faz todo o sentido que se comece com esta canção. Um trompete interessante, que lembra algo dos Beatles. Por momentos parece algo perdido, mas suponho que conquista o seu espaço no final.
Há uma coisa que sempre notei nalguma música brasileira: usa muitas palavras, fazendo fácil falar muito sem dizer nada. Versos como "Todo dia o dia não quer raiar o sol do dia" ou "Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada" não me fazem mudar de opinião. E alguém me explica porque é que, para esta gente, brincar de ser feliz significa pintar o nariz? Estranho.
O que é isto que oiço no final? Parece o concerto de Aranjuez. Um momento para respirar. Vamos ver o que segue.

A Flor
Uma típica canção de dor de corno pop rock. Los Hermanos parecem ser ao mesmo tempo melancólicos no sentimento e de uma fúria contida no som, mas acho que isso empobrece mais do que enriquece. Marcelo Camelo é como um narciso que prefere curtir a doçura da própria dor e se perde dentro dela. Assim a coisa nem fica realmente triste nem realmente furiosa.

Retrato para Iaiá
Um começo meio ska e lá vem o rapaz dizer como se enganou com a tal mulher e o catano. O refrão chega, o rapaz grita e as guitarras ficam mais lentas e poderosas. A secção de metais é muito interessante. Olha isto aqui a meio, parece um oboé flutuante. E a bateria, tem uns breaks interessantes, bem independente e solta.

Assim Será
Os metais dão um início do caraças. É o melhor que ouvi até agora. Ficaria a ouvir esta secção horas e horas, dispensava o resto... não, espera, que lá vem o rapaz outra vez dizer que está triste. Ele vai-se embora porque sabe que a mulher de quem ele gosta vai ser mais feliz sem ele. Será que é porque ela já não o aguenta ouvir dizer coisas como "seu fel fenecerá em nome de nós dois"? Como eu a entendo. Uma guitarra que lembra bons momentos de Ornatos Violeta, uma percussão samba e um final em que o baixo e a guitarra se enrolam numa dancinha latin jazz bem agradável até uma batida seca na tarola prenunciar...

Casa Pré-Fabricada
...o início duro de Casa Pré-Fabricada. Viva Weezer. Pelo menos o rapazola já diz "tristeza nunca mais", apesar de o seu "pranto" valer "esse canto em solidão". Ora sim. Um break acelerado da bateria é logo cortado para entrarmos noutro verso, e repete-se o refrão. Esta gente tem vergonha de se soltar? Vamos lá, rapazes, mostrem lá do que são capazes.

Cadê Teu Suín?
Que bela secção de metais, pá. Parece que Beirut ouviu isto para fazer lá o álbum mexicano dele. A última sílaba de cada verso é cortada para colar com a do seguinte, num exercício formal muito interessante. A flauta saltita lá atrás durante o refrão, o arranjo é fabuloso. Apesar de o título só me fazer pensar nos porcos que o meu avô tinha, é até agora a canção que me conquistou e que claramente ouviria de novo. O cantor começa a divertir-se no final, enrolando-se com os sopros. Bom, muito bom.

Sentimental
Não poderia ter outro nome: um início lento, em que os instrumentos se vão encontrando uns aos outros e a si mesmos. Quase pós-rock, mas logo faz a sua concessão ao rock fm, com as guitarras a rasgar no refrão. Pessoal, o Manu Chao já tinha gasto o estoque de vozes tipo rádio no meio de canções e de um jeito bem mais inventivo. Como é? Assim fica aquém, ok?
Bem, o rapaz já deixou bem claro que não vai ser neste álbum que ele se vai alegrar. Aliás, rir para ele é só fingimento e ocultação da tristeza. Está no seu direito e já bons artistas se fizeram assim, antes e depois de Los Hermanos (Bon Iver vem logo à cabeça). Mas se queres ser triste sê mesmo, porra, chora e faz-nos chorar as pedras da calçada em vez de andares para aí nesse ganha-força-perde-força, nessas explosõezinhas bestas de raiva ocasional. Chora ou enfurece-te, meu, escolhe.
Este final, em que os instrumentos ganham saliência de novo, sombrio e problemático, é interessante.

Cher Antoine
Bonito e engraçado, este mix de chanson française. E olha a guitarra elétrica disco! Ahahahah. Pedaços soltos por cima de uma toada uniforme . Sentido de humor, que era algo que ainda não se tinha ouvido muito. O gajo diz "e confundir", e vem uma explosão quase Queen! E pura loucura disco no final, com slapzões no baixo e tudo! Sim, senhor, curti.

Deixa Estar
Ambiente interessante. Parece que estamos no circo, bem no meio do picadeiro. Então porque é que o homem continua a falar do amor e de estarmos juntos na distância e na discrepância do destino? Porra, que chato. Se estamos no circo, fala de elefantes. Ou, pelo menos, de amor a elefantes. A banda é definitivamente bem calibrada, mas o Marcelo Camelo é monótono em temas e imagens líricas e registo vocal. Alguém o devia avisar que os colegas dele conseguem tocar várias canções, para ele não ficar a cantar a mesma do início ao fim.

Mais Uma Canção
Tuba? Uma tuba?! Estou fascinado. Nada a dizer, uma bela e simples canção pop, sem que o Camelo se perca dentro dele mesmo e caia lá nas viagens líricas dele. E tem até um pífaro, tipo Fool on the Hill, mas ainda mais näif, a transportar para um coro de homens bêbedos que cantam à desgarrada. Só apetece agarrar um amigo e cantar também. É isto o que a música deve fazer.

(pausa para um cigarrinho, já volto, ok?)

Fingi na Hora Rir
Uuuuuuh, entramos no domínio do noturno e da guitarra a fazer barulho. Mas espera aí um coche, que o Camelo tem que dizer outra vez que a alegria para ele é só fingida, porque houve uma mulher que o fodeu e em quem ele não consegue deixar de pensar. Parece a história de um amigo meu, mas isso são outros assuntos.
Olha como ele suspende, se ouve um acorde solto de piano, ele diz mais alguma coisa e as guitarras arrebentam. Banda definitivamente muuuuito bem afinada, melhor do que o motor de um Rolls Royce. Final em crescendo, raiva, fúria. Talvez seja por também já não aturarem o vocalista.

Veja Bem, Meu Bem
Bom. Um tango eletrificado, mas se eles começarem a rasgar no refrão, eu juro que arranco os fones da cabe… não, não rasgaram. Ainda bem. Só uma guitarra mais forte a meio, que combina com a confissão "a solidão deixa o coração neste leva-e-traz". Belo momento lírico, que condensa tudo o que o homem esteve a dizer até agora e com um toque de ironia que só lhe fica bem. Um grande remate, "Se eu te troquei não foi por maldade… amor, veja bem, arranjei alguém chamado saudade", a banda rasga - agora, sim -, mas para um solo de trompete e não para um gritinho pseudo-dolorido do cantor. Novo refrão, nova tranquilizada, novo solo de trompete, o resto dos metais a juntar-se. Belíssima canção.

Tão Sozinho
Eh lá! Viva o punk! Bora, pessoal. Mas, calma aí, vão devagar. Pensam que o Camelo é o Rodolfo Abrantes? O homem ainda se vai cagar todo, pá! Olha ele aqui a tentar gritar. Ahahahahah. Muito engraçado. Até há um gajo a rir-se no final. Deve ter pensado o mesmo que eu. Ou então o Camelo mordeu a língua e ficou louco por provar sangue pela primeira vez.

Adeus Você
Tipo, é a última canção e chama-se Adeus, topam? Golpe de gênio! Concentra tudo o que o disco mostrou: banda ótima, vocal monótono, letras sobressentimentalizadas, metais do outro mundo. Aliás, pá, quem fez os arranjos disto? Quero esta secção de metais todos os dias a entrar no meu quarto de manhã para me acordar! Que coisa fabulosa. E um cheirinho, um cheirinho só de violinos meio dissonantes no fim, só para mostrar que ouviram os Beatles todos e curtem esta mistura entre música erudita e popular. Nada mau.

CONCLUSÕES
Los Hermanos são uma banda pop-rock. E, admito, são uma boa banda pop-rock. Não boazinha - boa mesmo. "Bloco do Eu Sozinho" é uma espécie de triste celebração da solidão depois de uma relação fracassada. Relação-alegria-Carnaval vs. solidão-tristeza-fim parecem ser as linhas de tensão que estruturam a coisa. É eclético, variado, com músicos alinhadíssimos e a procurarem soluções imaginativas. Pelo menos neste disco, têm uma secção de metais incrível e arranjos francamente geniais, que a momentos me lembraram muito a Mesa, de Sérgio Godinho. Porém, isso não chega para me distrair do fato de que a banda parece sempre tocar mais do que aquilo que canta. A unidade das letras, o conceito, se quisermos considerar assim, é conseguido, mas não sem muita repetição, floreado e batidas na mesma tecla. Uma tecla que se chama "sentimento" e "narcisismo". Isto não é uma crítica ao tom em si mesmo, mas à falta de variação com que ele foi apresentado. Ouvi Bloco do Eu Sozinho com gosto apesar do vocal, e não também por ele, como deveria ter sido. Depois deste disco, iria ver um show de Los Hermanos? Iria. Esta banda, estes metais, estes arranjos merecem uma visita. Ainda não estou apaixonado, é verdade, mas já aceitaria ir jantar lá a casa e ver o que rola.

Os Los Hermanos baterem-me


Há uns tempos, sonhei com um novo projeto artístico. Seria um grupo de hip hop, que só faz versões da banda Los Hermanos. Chamar-se-á Os Manos.

Quem me conhece sabe que eu não tenho grande apreço por Los Hermanos e por isso é que faço piadas sobre eles. Nem é o caso de ter ficado mal impressionado com o êxito de "Ana Júlia". A verdade é que para mim a banda carioca faz parte de um grupo de gente talentosa com uma visão artística que me irrita. Aparecem-me no mesmo saco de Miranda July, a quem só me apetece dar um murro na cara e dizer que não há uma beleza trágica em tudo no mundo.

É como alguém que achamos bonito, mas com quem não queremos mais do que amizade. O que ouvi não me apaixonou, mas também não posso dizer que conheça a obra da banda bem o suficiente para me conseguir defender. Por isso, em nome da justiça, decidi submeter-me a uma experiência. Vou ouvir o "Bloco do Eu Sozinho"; álbum de 2001, do início ao final, registar tudo o que estiver a pensar e postar aqui amanhã. Assim pelo menos poderei dizer que o meu juízo é fundamentado. Ou, pelo menos, terei um link para enviar.

Roberto Freire e a ignomínia


Roberto Freire é um político de carreira, que já foi candidato à Presidência da República em 1989 e que em 1992 fundou o Partido Popular Socialista, de Terceira Via e opositor dos governos do PT. Hoje ele leu um artigo no site G17, que dizia Dilma pede e Banco Central coloca em circulação notas com a frase "Lula seja louvado" e, sem saber que o site publica notícias satíricas, ele postou isso no seu Twitter, classificando a ação de "ignomínia".

Até aí tudo bem. Por muito que nos custe acreditar que políticos também podem cometer erros, a verdade é que os fazem de vez em quando. Agora, o que não se entende é a insistente amargura que sai dos tweets posteriores de Freire. Apesar de décadas de vida pública, ele parece empenhado em responder a toda e qualquer provocação de todo e qualquer tweetador, bloqueando seguidores, "insistindo para poder responder aos que pertencem ao mundo digital" e pedindo desculpas porque, segundo ele, "nos tempos imorais lulodilmistas tudo é possivel".

Entre isto e o caso da Carolina Dieckmann, há por aí alguma síndrome esta semana que impede as pessoas de perceberem a real importância do que fizeram, cagarem de alto e deixarem os cães ladrar enquanto a caravana passa? É impressão minha ou anda tudo muito preocupado com aquilo que os fait-divers da vida fazem os outros pensar?

A poética dos dedos de Tony Iommi


Tony Iommi é o guitarrista dos Black Sabbath e, como saberá qualquer um que fazia parte das gentes que faziam rodas de violão e tinham cabelo comprido, ele perdeu duas falangetas da mão direita enquanto trabalhava numa fábrica. Ele pensou que isso o impediria para sempre de tocar, mas ele colocou umas próteses plásticas, o que acabou por definir a guitarra dos Sabbath: riffs grandiosos e lentos (já que ele não conseguia tocar muito depressa), e um som pesado, que as novas pontas postiças dos dedos facilitavam, porque, sendo canhoto, conseguia bater as cordas com muito mais força do que qualquer outro guitarrista.

Agora, pensemos: os Black Sabbath são de Birmingham, cidade fortemente industrializada, onde as opções eram ser operário de fábrica, patrão de fábrica, dono de fábrica - e para os membros da banda só a primeira era viável. O som deles é repetitivo e grande, tal como o barulho de máquinas industriais produzindo sem parar, e esta influência não é só deles. Já ouvi o James Hetfield dos Metallica, que trabalhou numa fábrica quando era puto, dizer exatamente a mesma coisa e até a expressão "heavy metal" foi criada, ao que parece, quando um crítico disse que a música do Jimi Hendrix era como "heavy metal falling from the sky".

Ou seja, há uma ligação direta entre o metal da indústria e o da música, como se este fosse a consequência musical no século XX da Revolução Industrial do século XIX. E nada incorpora tanto essa ligação como os dedos de Tony Iommi. O acidente que ele sofreu e o que ele conseguiu fazer com ele transformaram-no em História feita em corpo. E isso é bem bonito.

As fotos íntimas de Carolina Dieckmann


A atriz Carolina Dieckmann apareceu nua em fotos que supostamente foram tiradas com o seu celular. Golpe de marketing ou não, não consigo deixar de pensar: porque é que achamos isto interessante? Reparem, isto não é uma crítica, é mesmo uma pergunta. Nós já vimos Dieckmann nua, ela já fez fotos sem roupa, não é nem por sombras a pessoa mais coberta do mundo. Então: mais do que o que diz sobre ela que se divirta a tirar fotos sem roupa, o que diz sobre nós que queiramos tanto ver e falar sobre isto?

Eu acho que diz que já acreditamos em muito pouca coisa. Nós somos pessoas, temos impulsos e um deles é gostar de ver gente boa sem roupa. Mas há no meio disto tudo uma espécie de cheiro a desespero. Nada do que vemos na tv, no cinema, na Internet ou nas revistas é verídico. Tudo é fabricado, até os corpos. E nós sabemos disso. É por isso que corremos para o Google depois de sabermos que estas fotos existem. Não tanto para ver Carolina nua, mas para perceber que uma pessoa de um universo que nos está sempre a querer vender tipos de beleza e de comportamento e de consumo, que nos está sempre a dizer "estas pessoas são melhores do que tu porque são ricas, compram estas marcas, fazem estas coisas caras e são bonitas e educadas, e tu vais acreditar porque nós dizemos", é igual a nós. Carolina Dieckmann é o que menos importa no meio disto tudo. A verdade é que, sem estes escapes no meio da farsa das imagens, não poderíamos continuar a participar dela e sentirmo-nos humanos ao mesmo tempo.

Meu amor artificial de plástico

Como há dias escrevi sobre música e uma desgraça nunca vem só, vou fazê-lo mais um pouco. Deu-se o caso de na 2a feira ter ido ao Studio SP ver os Radiolarians, de André Frateschi, uma banda que parece ter um pouco de receio de admitir que é uma banda cover de Radiohead, o que é desnecessário, porque, não só são uma belíssima banda, como fazem belíssimos covers. Já mais para o final, eles fizeram-me o favor de tocar isto.

httpv://youtu.be/4B0KfEGNKDw

Foi tipo biscoito do Proust. Recuei para Novembro de 2011. Estava em Londres, numa cafetaria de Camden com vista para o canal. O Jorge estava a mostrar-me a cidade. A dada altura, ele foi à casa de banho e eu fiquei a olhar pela janela. Havia pouca gente e estava a tocar uma compilação de Radiohead. De repente, essa canção começou.

Sabes aquele tipo de momentos bem, bem simples, que poderiam acontecer a qualquer hora, mas por qualquer razão, são tão perfeitos, tão perfeitos, que nada poderá estragar a lembrança que deles tens? Aqueles em que parece que não há merdas dentro de ti, que não há merdas no mundo e o tempo faz um parênteses? Foi um desses momentos. Pensei "estou em Londres, à beira do canal. Está tudo calmo, a água corre no escuro, ainda tenho um pouco de café. Estou sozinho. E está a tocar Radiohead. Estou em Londres e está a tocar Radiohead. Foda-se".

Como conheci Fernando Lopes

Estive com Fernando Lopes duas vezes. A primeira foi há 13 anos, no festival dos Caminhos do Cinema Português, em Coimbra. Ele tinha 63 e parecia ter 50. Foi lá para ser homenageado pela carreira. Houve uma retrospectiva, que passou todos os filmes dele até então. Eu era da organização, por isso deveria era ter estado na organização a organizar coisas, mas caguei. E não me arrependi, porque, se não o tivesse feito, não teria visto "Uma Abelha na Chuva", que é o melhor filme português de sempre juntamente com o "Belarmino" (também dele) e "Noite Escura" (do Canijo) e que tem esta discussão, das mais bem filmadas que alguma vez vi.

httpv://www.youtube.com/watch?v=CAgBCiCyt-o

Lembro-me que ele gostava que nós, putos, o tratássemos por "tu". Perguntei-lhe porque é que ele punha a "Sabor a Mi" em todos os filmes. Ele olhou-me, sorriu semicerrando os olhos e disse "aaah, isso é um fetiche, pá..."

A segunda vez que estive com ele foi em 2007, quando gravei este vídeo para a iniciativa das PF Os 50 Melhores Programas de Sempre.

http://rd.pftv.sapo.pt/play?file=http://rd.pftv.sapo.pt/ND0Edm7rKoe7zA29y08U/mov/1

Gravamos em casa dele e ele foi o mais simpático e afável que se pode ser. Já não parecia ter dez anos a menos. O peso da idade já tomara conta dele, mas ainda tinha toda a majestade de quem, depois de décadas de prática, domina todas as ferramentas da sua arte. Um verdadeiro mestre. Era suposto ter ido ao colóquio que finalizava a iniciativa, mas depois não pôde. Nunca mais estive com ele.

Fernando Lopes, falecido ontem, foi o realizador do Cinema Novo com quem mais senti empatia, quer pelas influências anglosaxónicas, quer pela obra em que as verteu. Ele nunca me iria reconhecer, mas gosto de acreditar que tinha lembrança de, um dia, em Coimbra, um fascinado miúdo de 18 anos lhe ter perguntado o porquê do Sabor a Mi. As probabilidades são pequenas. Mas é nisso que gosto de acreditar.

O Pingo Doce e as doces hipocrisias

Admito, eu sou uma pessoa de esquerda. Naturalmente, vim-me a considerar assim. Nunca fui doutrinado para acreditar em nada, mas, ao longo da vida, acabei por perceber que partilho as coisas que me parecem de bom senso e razoáveis mais com pessoas de esquerda do que de direita. Então, tudo bem, serei de esquerda. Mas eu não tenho saudosismos de uma época que não vivi e acredito numa economia livre regulada pelo Estado. Então, fico com algumas perguntas sobre os tumultos que aconteceram no Pingo Doce por este ter feito um desconto de 50% no 1º de Maio a quem fizesse compras de mais de 100 euros.

httpv://www.youtube.com/watch?v=NY-jf86ODt0&feature=player_embedded#!

Primeiro, houve produtos vendidos abaixo do custo? Se não, não há nada a dizer, tirando o fato de, se for assim, pela lógica o Pingo Doce estar a vender produtos com margem de lucro acima dos 50%, o que não será ilegal, mas não muito inteligente em tempos de crise. Eles não se parecem queixar de falta de compradores, por isso... Se sim, isso é dumping, mas será preciso perceber até que ponto é que a lei permite contornar essa regra numa promoção, o que foi o caso. Alguém pode explicar o que aconteceu e o que a lei diz sobre isto?

Segundo, os trabalhadores foram obrigados a trabalhar num feriado? Se sim, isso é terrorismo laboral e deve ser condenado. Se não, os trabalhadores foram voluntariamente fazer horas extraordinárias e não há nada a dizer. Alguém pode explicar o que aconteceu?

Terceiro, os trabalhadores foram compensados por terem feito horas extraordinárias? Se sim, é assim mesmo que tinha de ser. Se não, eles foram roubados e a empresa deve ser submetida à Justiça. Alguém pode dizer o que realmente aconteceu?

Em 2004, por um acaso, passei o 1º de Maio em França e surpreendeu-me o fato de estar tanta coisa fechada. Supermercados, lojas, tudo, até bares, o que era quase doloroso na cidade universitária onde estava. Mas não havia nenhuma razão honrosa e etérea para esse fecho. Simplesmente, em França as empresas têm que pagar três salários diários a quem for trabalhar no 1º de Maio (em qualquer outro feriado pagam dois) e isso não compensa para a maioria dos estabelecimentos.

O curioso neste caso do Pingo Doce é que tudo se trata de uma encantadora cadeia de hipocrisias. Os partidos de esquerda vêm pedir às grandes superfícias para respeitarem o 1º de Maio, mas aos olhos da lei este não é um feriado diferente dos outros. Porque é que elas têm que ter uma obrigação especial perante ele? Só porque sim? O Governo, que é esperto e anda à cata de dinheiro, invoca um moralismo semelhante para propor uma nova lei sobre promoções especiais, mas eu aposto que vão é querer criar uma taxa especial sobre os lucros assim conseguidos. Já a Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, vem dizer que fez a promoção para ser boazinha para as paupérrimas famílias portuguesas, o que também é um monte de tretas, porque ela não tem nenhuma obrigação de ser boazinha. Ela é uma empresa de comércio. Uma empresa de comércio quer vender para ganhar lucro. A questão é: as leis que regulam a prática foram cumpridas, sim ou não?

Seria agradável que alguém, de preferência sóbrio, viesse explicar melhor isto em vez de se andar para aí a fazer dramas e choradinhos sobre a educação e a angústia do povo português e não sei mais o quê.

O sorriso de Alex James


Para quem não sabe, Alex James é o baixista dos Blur. Sempre foi das figuras rock que mais me chamou a atenção, e o fato de ser um músico ótimo não tem muito a ver com o caso. Às vezes interessa-me mais a personagem que cada um é do que o virtuosismo com que toca. James é alto e no tempo da guerra Blur/Oasis, quando eu os conheci, o cabelo caía-lhe para a frente, tapando-lhe os olhos, enquanto ele dava à cabeça um abano dandy, completamente desfrutando todo o prazer que a vida do artista enquanto jovem estrela de rock lhe poderia proporcionar. Enquanto personagem, portanto, era ótimo.

A caraterística mais marcante de Alex James sempre foi o sorriso. Quando ele era novo e no crescendo da fama, este era irónico e afiado, como se não se importasse com nada do que estava a acontecer à volta. Era um sorriso arrogante, mas tão bon vivant que era impossível não sorrir também enquanto pensava "tu é que curtes, pá".

Agora, eu quero que entendam que houve sempre canções de Blur na minha vida, mas eu nunca fui um conhecedor profundo. Na verdade, o único álbum que eu tenho deles é o The Great Escape, precisamente porque era um puto com espinhas que queria saber mais sobre essa confusão toda do Britpop. Mas há um ano, numa altura em que estava muito triste, ouvi esta canção na casa de uma amiga.

httpv://www.youtube.com/watch?v=dgA_DlR8WsM&ob=av3n

Quando a música subiu na sala, com aquela espécie de slide miraculoso do Graham Coxon, perguntei-lhe "Isto é Blur. É novo?" e ela disse que eu era maluco e que a canção já tinha uns 12 anos. Desde então, ouço No Distance Left To Run sempre que preciso de consolo. Há uns dias, percebi que uma outra amiga estava muito triste e quis mandar-lha. Enquanto procurava a canção no YouTube, descobri que havia um documentário com o mesmo nome sobre o regresso da banda em 2009.

De novo, a primeira coisa que reparei em Alex James foi no sorriso. Mas agora, mais velho, mais tranquilo, o sorriso é diferente. Para além de aparecer com mais raridade, a arrogância e o hedonismo sumiram. Alex James, no fundo, sorri agora não como um rapaz convencido, mas como um homem, alguém que se feriu, cicatrizou e está mais tranquilo e mais conhecedor daquilo que o mundo é. E, enquanto ouvia as histórias sobre as zangas, o afastamento e a conciliação dos quatro, percebi algo que nunca tinha percebido antes: o regresso de uma banda não é só um reencontro entre eles, mas é também um reencontro de nós, que os escutamos, com eles, com aquilo que fomos quando os conhecemos e com aquilo que somos nesse momento.

É um lugar comum em poesia dizer-se que o leitor é também poeta, porque o significado final do poema só surge com aquilo que ele lhe acrescenta enquanto novo criador. Os Blur estão velhos e com as marcas da vida de músico no corpo, na cara, nos olhos. Mas, quando tocaram em Glastonbury e aquela multidão inacreditável que enchia o festival cantou Tender em coro e continuou a cantar depois de os instrumentos já terem parado de tocar, eles ficaram a olhá-la, pasmados.

Aquele coro estava cheio de vida: das vidas dos compositores que criaram a canção, mas também das vidas que aquelas centenas de milhares de pessoas tinham quando a ouviram e tiveram ao longo dos anos que a canção as acompanhou. No final, a banda agradeceu chegando-se à frente e levantando os braços. Todos os espetadores a aplaudiram por se ter reunido e se aplaudiram também por de certa forma reconhecerem que cantarmos as mesmas canções é saber que somos todos mais iguais e próximos uns dos outros do que poderíamos pensar.

No meio disto tudo, Alex James sorria.

O documentário que deveria passar nas escolas

Graças à Internet, podemos ver várias coisas do nosso país natal quando estamos fora, como jogos de futebol, noticiários e concorrentes de reality shows dizendo que não sabem onde é África. E, felizmente, podemos ver também o documentário Os Donos de Portugal, que, num extraordinário ato de interesse público, a RTP passou no 25 de Abril. Adaptação do livro do mesmo nome, trata da hegemonia secular de algumas famílias na posse de Portugal e de como essa hegemonia foi mantida em estreita relação com todos os regimes, partidos e governantes que lideraram a política portuguesa desde o final do século XIX.
"Para quem contrata, a influência política é o ativo mais desejado. A promiscuidade torna-se um problema colateral. Quem dirigiu a privatização, passa a dirigir o que privatizou. Quem adjudicou a obra pública, passa a liderar a construtora escolhida. Quem negociou pelo Estado a parceria público/privado, passa a gerir a renda que antes atribuiu. Ou vice versa."

httpv://www.youtube.com/watch?v=jg_gd9aUWJQ

Para os meus amigos brasileiros

Gostaria que vocês entendessem que hoje faz 38 anos que Portugal se tornou uma democracia com uma das revoluções mais bonitas que já houve. Desculpem-me dizer isto assim, eu sei que parece presunçoso e uma espécie de patriotismo babaca. Mas eu acho isso mesmo. Foi uma revolução linda, porque teve flores, canções, quase nenhum sangue derramado. Os militares, em vez de fazerem uma nova ditadura, derrubaram a que lá estava e vigiaram todo o processo que levou até à democracia. As senhas para eles saberem quando avançar foram dadas pela rádio, com duas canções, "E Depois do Adeus" e "Grândola Vila Morena". Eu tenho orgulho disso. Eu tenho orgulho que a revolução do meu país, um país que começou então a descobrir quem realmente é, tenha começado nas palavras "quis saber quem sou, o que faço aqui, quem me abandonou, de quem me esqueci" e "dentro de ti, ó cidade, o povo é quem mais ordena" sendo cantadas na rádio. Não choradas, não só faladas: cantadas, por uma voz que rompeu a noite como se rompesse o breu onde até aí tinha vivido. Os presos políticos regressaram às famílias. Todos os jovens souberam que deixariam de ir ter de matar pessoas para África. E, acima de tudo, o mais belo, o mais pungente, é que todo um povo estava unido em volta da mesma esperança. O mais extraordinário sobre o 25 de Abril é isso. Os portugueses podem ser quezilentos, problemáticos, reclamões e, ao mesmo tempo, conformados com a situação e incapazes de mudar seja o que for. Mas no 25 de Abril todos nós nos unimos por sabermos que todos somos iguais enquanto donos do nosso país e do nosso destino. Que Portugal, ao fim e ao cabo, não é de um primeiro-ministro, da Igreja ou dos grandes grupos económicos - ele é nosso. Ainda hoje, o 25 de Abril é o dia em que os portugueses se lembram disso. Por isso, eu não digo que não é por eu estar no Brasil que Portugal deixa de ser meu. Eu digo que não é por eu estar no Brasil que Portugal deixa de ser nosso.
httpv://www.youtube.com/watch?v=uMiAYRRp-cE

Contenta-te com o que tens

Quando tinha 90 anos, Billy Wilder recebeu um prémio de carreira e começou o discurso de agradecimento com uma história. Um homem de 90 anos vai ao médico e diz "doutor, não consigo mijar". O médico pergunta "qual a sua idade?". O homem diz "90 anos". O médico responde "já mijou o suficiente".

O passeio à tarde

Havia uma ponte. Eu estava a atravessá-la, sozinho. À minha volta, estavam dezenas de pessoas. E era isso. Um dia muito quente, o céu estava azul. Não sei o que havia por baixo. Talvez um rio, mas ninguém falava disso. Todas as pessoas pareciam satisfeitas só por saberem para onde estavam a ir. Eu também. A ponte era enorme, larguíssima, do tamanho de uma cidade. Mas era mesmo uma ponte, com faixas desenhadas no chão para os carros saberem por onde ir. Todas as pessoas seguiam em frente, sem conversar. Eu não estava à frente, mas também não estava no fim. As pessoas que iam mais à frente começaram a chegar ao fim. Fila por fila, todos entravam no fim. E eu também.

O tapete mais feio do mundo

Escrito para a última edição d'A Cabra, porque é sempre bom sentir um pezinho em casa. Inspirado numa história real.

Era uma vez um tapete. Muitas histórias poderiam começar assim. Mas ele não era um tapete qualquer, porque ele era o tapete mais feio do mundo. O dono já não se lembrava de onde o tinha encontrado. Pelo menos, nunca o admitiu a ninguém. Quando Márcio e Dora, um casal de amigos, o visitaram, Márcio riu-se e disse "não acredito que deste dinheiro por isto. Este é o tapete mais feio do mundo!". Dora baixou os olhos, triste com as coisas que o namorado dizia. E o dono do tapete tentou lembrar-se porque é que ainda era amigo do Márcio.
O tapete já ouvia coisas parecidas desde que, acabadinho de sair da linha de produção, o pessoal da fábrica o olhou com preocupação. Um funcionário disse mesmo "será que pode ir para a loja assim?". O patrão chegou, viu toda a gente parada, atirou o tapete para a pilha dos vendidos e gritou "a crise já acabou ou quê? Tudo a trabalhar!".
Na loja, as empregadas puseram-no no fundo da pilha, com a esperança que ninguém o visse e saísse assustado. Mas, um dia, alguém comprou o camarada que estava por cima dele e, sem querer, levou-o também. A rapariga da caixa reparou no engano, mas não disse nada. O tapete mais feio do mundo tinha que se fazer à vida.
Quando o dono do tapete fez aniversário, diminuiu e direcionou sabiamente as luzes para que ninguém na festa conseguisse notá-lo Ao tapete, soube bem sentir tantos pés a pisarem-no. Normalmente, era evitado. Mas nessa noite não: ele podia por fim sonhar que era um tapete igual aos outros, peludo e grande, aqueles tapetes que os pais passam para os filhos e os filhos para os netos e assim por diante. Mas o Márcio estava na festa também, e o Márcio é daquele tipo de pessoas que cria uma roda de convidados em volta dele e se põe a contar coisas que as fazem rir. Entre elas, o tapete mais feio do mundo. Todos explodiram numa gargalhada, menos Dora, que ficava triste com as coisas que o namorado dizia, e o dono do tapete, que decidiu enfiá-lo num armário até decidir o que fazer com ele.
No dia seguinte, enquanto o dono arrumava a confusão que ficara da festa, o tapete estava triste. Ele não gostava do armário. O seu destino enquanto tapete era o chão, onde todos o podiam pisar e limpar os sapatos. O escuro do armário era a humilhação suprema na sua curta vida. E "curta" era realmente a palavra certa: o dono planeava deitá-lo ao lixo no fim do dia.
A campainha tocou. Era Dora. "Posso entrar?". "Claro", respondeu ele com surpresa. Dora era uma mulher cobiçável pelos homens, e o dono do tapete não era exceção. O que ela fazia ali? Ela entrou e despiu-se à frente dele. "Quero-te aqui e agora, com uma condição". Ele estaria disposto a tudo. Ela continuou: "vai ser em cima do tapete".
Nas horas seguintes, o tapete sentiu coisas inimagináveis para a maioria dos tapetes do mundo. O toque amigo da pele humana. A confusão do prazer enquanto joelhos e mãos se fincavam nele. As umidades caindo nos seus pelos, muitas vezes, repetidas vezes. E a perversão também, quando ela gritava o nome do Márcio no meio de uma onda de insultos enquanto o dono do tapete a ia preparando para o clímax. Ela, gozando, levantou os olhos. E o dono do tapete lembrou-se então porque era amigo de Márcio: para ficar com Dora por perto.
Depois de fumarem um cigarro, ela levantou-se, pegou as roupas do chão e vestiu-se. Ele riu-se: "E eu que ia deitar o tapete fora". Ela, que já estava perto da porta, disse "podes fazê-lo. Ele é feio mesmo. Mas há coisas que é má educação dizer". E saiu.
Mais tarde, o tapete estava no meio do lixo de um contentor e sentia o ar frio da noite. Era o fim, ele sabia. Mas, em tão pouco tempo, ele tinha conseguido mais do que tantos outros seus camaradas. Em si, para a morte, levava as marcas de uma tarde de amor. E, sorrindo, foi levado pelos almeidas enquanto, em casa, o seu ex-dono pensava na Dora e tentava inventar uma maneira de preencher o espaço em branco com que ficara no chão.

O que eu quero que o livro que vou escrever tenha

O livro tem que me pôr em causa. E eu vou ter que saber defendê-lo. Defendendo aquilo que me põe em causa, conseguirei, não sei como nem porquê, defender-me a mim também.

Vou escrever sobre o que conheço, o que me interessa e as coisas que me aconteceram. O livro deve ser uma defesa do que acredito ser preciso defender (fora ou dentro de mim), um ataque do que acredito ser preciso atacar (fora ou dentro de mim) e uma narração do que acredito que é preciso ser narrado.

O livro vai ter capítulos curtos. Ninguém tem paciência para nada. Nem eu. Muitos capítulos curtos. Muitos episódios.

Algumas personagens serão uma mistura de várias pessoas que conheci. Isso deve estar justificado dentro do próprio livro: a sucessão de pessoas fez-me esquecer de algumas delas.

O meu livro vai ser concreto. Mesmo que fale de sonhos e coisas imaginadas, queridas, idealizadas, ele vai ser concreto nelas e não adotar esse idealismo como parte da sua matéria constitutiva.

O meu livro não vai ter vergonha daquilo que é, tal como eu não tenho vergonha daquilo que sou.

O meu livro não vai ter medo, pois eu também não tenho medo.

O meu livro vai ser uma história com princípio, meio e fim, mas que pode ter digressões.

A linguagem e a gramática vão variar conforme o lugar que está lá. No Brasil, será brasileiro. Em Portugal, será português.

Eu vou escrever o meu livro como se filma um documentário. Escrever os capítulos que têm unidade temática como se fossem a gravação da realidade. E depois editar.

O meu livro vai ser uma coming up story em que o protagonista é um homem que se transforma num outro homem, e não um adolescente que se transforma num adulto.

O meu livro é escrito numa época de reality shows que apresentam uma versão higienizada do sexo e das relações humanas, ou seja, uma versão que não é real. O meu livro, sendo ficcional, vai ser mais real do que um reality.

Se eu tiver que chorar enquanto escrevo o meu livro, eu vou chorar.

O Kindle e a existência


Eu tenho um Kindle. E eu adoro o meu Kindle. Não tive grandes problemas em adaptar-me à leitura nele e, quanto mais o tempo passa, mais encontro novas maneiras de o utilizar. Uso-o para o trabalho, para tirar notas em textos, que posso depois ver num arquivo à parte. Posso comprar livros na Amazon que são imediatamente baixados. Com o Klip.Me, envio para lá os textos extensos que encontro em sites, para ler de modo bem mais confortável. Sublinho excertos que depois posso encontrar imediatamente, uso o dicionário inglês para palavras que não conheço, faço pesquisa no texto para encontrar só aquilo que me interessa. No fim das contas, o Kindle permite ser mais rápido e prático em ações morosas que uma leitura atenta implicava. Ele tem toda a agilidade que é necessária num tempo em que a leitura pode vir de mil lugares e em mil formatos diferentes. Lutar contra ele (ou contra os livros físicos, que ele não substitui) não faz muito sentido e, sinceramente, irritam-me muitos argumentos de detratores da leitura em ebooks, que raramente percebem que só se trata de uma escolha entre um ou outro fetichismo.

Mas há outra razão para o meu apreço pelo aparelho da Amazon. Eu sou um homem que mora fora do seu país e que, como tal, sente a vida sempre em suspenso. Isso transforma. Sentimos a tendência para reduzir o excesso. Costumo dizer que agora não quero nada na minha vida que não caiba dentro de duas malas. Claro que eu tenho eletrodomésticos em casa, mesas, cadeiras e um colchão de ar. Mas eu não levaria essas coisas para lugar nenhum. Não preciso delas.

É normal dizer-se que, quando compramos um livro físico, o sentimos mais nosso, porque a posse aí é física, material. Eu contraponho que, quando leio um livro eletrónico, a minha ligação com o texto é imediata, porque acontece uma coisa curiosa com o Kindle: enquanto objeto, ele é independente do próprio texto. Num livro impresso não é assim. O livro é o texto que nele está escrito. Mas o Kindle recebe os livros que quisermos, apagamo-los, modificamo-los, substituimo-los. Quando lemos, a nossa ligação com a escrita é uma outra, diferente da que temos com a máquina, com o objeto. Ou seja, com ele nós somos donos, não do livro, mas do texto.

Acho que o resumo disto tudo é que eu acho que não precisamos de muitas coisas, mas precisamos de ler. O Kindle é um passo num caminho em que a leitura se desliga das coisas. É por isso que gosto dele.

O dia e a noite

Pouco a pouco, vou sendo mais deste lugar do que do outro que era. Sempre foi assim, mas nunca me deixa de surpreender a rapidez. Nem uma semana passou e já conheço as padarias, os cafés, os mercados. Também já conversei com um rapaz dos que circulam errantes pela São João. Chamava-se Eduardo, devia ter vinte e poucos anos. As compras estavam a cair-me da mão, porque tinha caixas a mais, e ofereceu-me ajuda. Perguntei-lhe se me ajudava a levar as panelas até casa e ele veio. No meio da brisa lá me disse que o tentaram matar enquanto estava a dormir. Pode ser verdade. Havia uma moda de deitar fogo aos gajos da rua, deitar-lhes querosene em cima enquanto dormiam ou estavam chapados e acender uma faísca para os ver morrer. Na primeira noite que passei aqui, havia vários a dormir por baixo do Minhocão. Sossegados, sem fazer mal a ninguém, só a dormir. Devem ter vindo para aqui depois de a Polícia limpar a Cracolândia ou do incêndio da favela do Moinho. Acredito que um fato não estará desligado do outro, mas isso é o que eu acho. No Minhocão que os abriga, tenho visto passar à noite dois gajos. Parecem-me sempre os mesmos. Presumo que vendam droga, ou pelo menos a andem a procurar. Eles podem fazer isso porque o Minhocão fecha aos carros todas as noites às 22h e só reabre às 6h. No domingo, está fechado o dia todo e enche-se de famílias, corredores, ciclistas, que vêm curtir o sol do fim de semana como se estivessem no Ibirapuera, mesmo que não haja árvores. Hoje vi uns cinco ciclistas que juntaram o dia à noite e se sentaram de lado a fumar um. Quando acabaram, não podiam com as bicicletas. Lembrei-me do Eduardo. Quando chegamos à porta do meu prédio e ele me passou as panelas, dei-lhe os 4 reais que tinha no bolso e disse-lhe para ir comer alguma coisa. Ele sorriu.

O dilema

Às vezes na vida temos que fazer coisas que nunca pensamos que faríamos. Uma delas é elogiar os Backstreet Boys. Eles são o que são, fazem a música que fazem. E, se não fosse o fato de eu preferir pessoas que não se levam muito a sério, talvez me doesse muito afirmar isto. Como prefiro, é só com uma ligeira estranheza que digo que este vídeo é admirável.
httpv://www.youtube.com/watch?v=EDvRs3SceGo
Agora podem chamar-me nomes e tal. Abraços.

O marechal

O militar Manuel Deodoro da Fonseca foi o primeiro presidente da república do Brasil. Amigo do Imperador e com fortes ideias monarquistas, os republicanos só o conseguiram convencer a entrar na revolução fazendo correr o boato de que teria sido emitida uma ordem de prisão contra ele. Sofria de dispneia, que o impedia de dormir. Morreu pouco menos de um ano depois de terminar o seu conturbado mandato de dois anos. O seu desejo de ser enterrado em trajes civis não foi respeitado. Deu nome a várias praças e cidades por todo o Brasil. E, a partir de hoje, eu sou o mais recente morador da Praça com o seu nome.

Escrever: 5 anos, 10 regras

Notei há umas semanas que ando a trabalhar exclusivamente nisto de escrever prosa há já cinco anos. Por isso, lembrei-me de escrever uma série de regras que aprendi na prática ao longo desse tempo. Não se trata de coisas só para quem trabalha com TV ou cinema, até porque não acho que "escritor" e "romancista" sejam os sinônimos que às vezes parecem querer que sejam. Simplesmente, são noções de quem trabalha profissionalmente com histórias.

1. 5% de inspiração, 95% de transpiração
Somos privilegiados por trabalharmos sentados à frente de um computador em vez de carregarmos tijolo na construção civil. As pessoas que desvalorizam as suas vidas tendem a esquecer-se de que poderiam sempre estar pior, e isto não quer dizer que o trabalho na construção civil seja menos nobre, mas só de que não tem a ver com aquilo que somos. Seja como for, isto é trabalho. Temos de fazer uma história funcionar e, para isso, temos de reunir conhecimentos e capacidade de imaginação suficiente para poder vê-la acontecer na nossa mente antes de a passarmos ao papel. Seja lá qual for a modalidade de escrita em que nos apliquemos, o nosso trabalho é pré-ver e registar em papel essa pré-visão, e de um modo absolutamente fascinante, porque as pessoas que vão ler vão ter que se sentir movidas de alguma forma. Já aqui citei Carolina Kotscho: um roteiro é um objeto de sedução. Poder-se-ia dizer o mesmo de qualquer texto, até da legenda de uma foto de meias num catálogo de roupa.

2. Uma história é um castelo de cartas
Um filme são múltiplos setups e payoffs a acontecerem. Causas e consequências. Ações e reações. Como quando se constrói um prédio, um tijolo encaixa no outro e a mudança de um único elemento pode afetar toda a estrutura. Por isso, é preciso conhecer os pilares que podem ser retirados e os que não podem, as paredes que são mestras e as que as não são, porque um dia alguém vai pedir para mudar alguma coisa e nesse momento temos que estar prontos para dizer "Sim, posso mudar isso" ou "Vai ser difícil mudar isso, mas" ou "isso vai ser outra coisa diferente daquilo que começou por fasciná-lo".

3. Manuais de escrita são a teoria específica da nossa atividade
Nós não temos uma sebenta. Existem livros sobre literatura, existem livros sobre cinema. Mas para construir uma história é preciso ler o "Story" do McKee. Para conhecer a arquitetura narrativa cristalizada na experiência dos espetadores, é preciso ler o "Script" do Syd Field. Por muito que se diga que esse tipo de livros passa uma visão limitada e estereotipada do que um filme deve ser - e eu não concordo com isso -, eles são a literatura que ensina na prática a construir uma história e temos a obrigação de os ler e de dominar o seu jargão. Mas...

4. Manuais de escrita não são verdades indiscutíveis e válidas para tudo
Até porque nenhum desses livros ou teorias quer sê-lo. Um caso claro para mim é a jornada do herói de Joseph Campbell. Para mim, ela serve para histórias com um herói claro, como O Feiticeiro de Oz, Matrix, Harry Potter, Star Wars. Pode-se sempre tentar analisar através dela um filme de um outro tipo, com enredos paralelos, multiprotagonistas, miniplot, mas no final dá-me sempre a sensação de exercício formal. A jornada do herói é um modelo que tem os seus méritos, mas é preciso saber quando ela nos pode servir, tal como qualquer outro modelo de construção narrativa. Contar histórias é, antes de tudo, uma aplicação da nossa experiência humana de ouvi-las e sonhá-las. Às vezes, vamos dar por nós a escrever algo que nos surpreende sem entendermos de onde vem tudo aquilo e sem que nisso consigamos reconhecer nenhum modelo. Esse é um momento de pureza absoluta. Por isso, concordo com Unamuno quando ele diz que escrevemos para nos conhecermos a nós mesmos.

5. Contar uma história é guiar a psicologia do público
Samuel Fuller dá-nos em "O Desprezo" de Godard a sua visão do cinema: numa palavra, "emoções". Qualquer produto de entretenimento - e até uma grande obra literária o é - é consumido por quem espera uma viagem emocional, ou seja, uma sucessão de estímulos emocionais que não sentiria se não o fruísse. Diz-se com frequência que é preciso enganchar a atenção do espetador ou do leitor, mas é preciso ir mais longe do que isso. Nós temos que dominar a arte de manipular emocionalmente as pessoas primeiro e de decidir o que fazer com essa manipulação depois. O suspense de Hitchock é um exemplo maior. Nós sabemos que a explosão de um carro vai assustar o público, mas o que é mais eficaz: uma explosão de surpresa ou darmos a saber que o carro tem uma bomba dentro e deixarmos acumular a tensão do público enquanto uma família com 3 crianças vai às compras nele, transformando minutos em horas? Não existe uma resposta certa para esta pergunta fora do contexto da história onde essa cena aparece. Tudo tem de ser decidido caso a caso.

6. Conflito antes de mais nada
A lição de McKee sobre conflito é preciosa e nunca me sai da cabeça. Quanto mais conseguirmos carregar uma cena com conflito, quanto mais conseguirmos fazer com que uma personagem, num determinado momento, esteja em oposição com outra e com ela mesma e, se possível, com o mundo inteiro, mais rica a cena vai ser. A minha experiência prática é que metade das dificuldades com enredo e com progressão dramática ficam resolvidas se pensarmos bem as cenas essenciais em termos do conflito que implicam.

7. Trabalho "estacionado" vai-te morder no cu
É normal trabalharmos em várias coisas ao mesmo tempo e, às vezes, deixamos um projeto de lado para fazer coisas mais urgentes, com prazos mais apertados, como um projeto que está mesmo a calhar para um edital de um canal de TV. Deve fazer parte da nossa rotina de trabalho uma organização sobre o material que temos incompleto, quais os elementos que faltam para o concluirmos e uma expectativa realista de dias até o terminarmos, porque, no futuro, esse projeto deixado de lado vai ser o ideal para um outro edital, um outro canal de TV. E das duas uma: ou o temos debaixo da mão ou nos deixamos levar numa onda como um surfista que não sabe nadar.

8. É preciso dar sempre o melhor
É o que é esperado. E a verdade é que nem sempre ele vai ser bom ou, pelo menos, bom o suficiente para quem o espera. Lidar com a falta de satisfação dos outros faz parte do pacote de se escrever sob contrato. Mas, se se aquilo que saiu foi mesmo o melhor, teremos uma justificação para todas as palavras. Se não a tivermos, talvez seja bom repensar se é mesmo o melhor que conseguimos. Qualquer roteiro, livro, artigo de jornal ou post de blog é a defesa de alguma coisa. Quando o enviamos para o mundo, seja através de um email para o nosso chefe ou clicando no "Publish" aqui do lado, estamos a dizer "este texto é aquilo que eu acho que um texto deve ser".

9. Nem sempre o melhor vai sair
Isto é o que se faz para ganhar a vida. Escrever não é ser um génio. Algum trabalho vai ser melhor do que outro. Todas as coisas que podem atrapalhar um trabalho normal podem atrapalhar aqui. Problemas pessoais, sobrecarga, falta de tempo geral. É preciso saber lidar com as expectativas das pessoas que te vão cobrar. Tu és uma pessoa que te vai cobrar. Lida com as tuas expectativas também. Algum dos trabalhos não vão ser os melhores da tua vida e muitas vezes vais ter que fazer coisas que não gostas de fazer e que não terão até necessariamente que ver com a atividade de escrita. Produção, assistência, redação seja lá do que for. Michael Cunningham fala em Screen Plays: How 25 Scripts Made It to a Theater Near You--for Better or Worse, "só podemos ter a experiência que já temos, só podemos fazer o melhor que podemos e nunca conseguiremos saber o que o mundo vai fazer com qualquer coisa que façamos. (...) É sempre uma aposta. Às vezes, trabalho bom vence; às vezes, trabalho bom falha. Só podemos fazer aquilo que conseguimos fazer e depois esperar para ver como o mundo reage".

10. Toda a gente se esquece de quem escreve
O roteirista é o profissional mais generoso do mundo, porque é o seu trabalho que dá o arranque para o de inúmeros outros profissionais que tendem, na esmagadora maioria dos casos, a esquecer-se dele. Porque é que em curtas-metragens universitárias os técnicos recebem dinheiro, os atores recebem atenção e o roteirista recebe nicles? Só porque toda a gente sabe escrever e nem toda a gente sabe montar uma boa iluminação, isso não quer dizer que toda a gente saiba construir uma história. Sim, devemos ser humildes e aceitar opiniões que são melhores do que as nossas. Mas é precisamente essa humildade que nos vai dar autoridade para depois dizer "eu aceito todas as boas soluções e essa não é uma delas". Todas as pessoas andam no mundo querendo só uma coisa: conseguirem dormir bem à noite. E roterista não é excepção.

Dois barbados, quatro índios e um brasileiro

GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
Só um aviso:
isto vicia.

A culpa não é do cachorro!


Numa noite de Novembro, quando ainda estava em Portugal, ia pegar o carro para sair e pus o pé em cima de algo volumoso. Levantei o pé e o volume fez um "cóóóó..." como se fosse um fole. Olhei para baixo. Era uma galinha, que o assassino do meu cão tinha caçado lá fora e trazido para o quintal. Ele faz isso desde pequeno e nunca pensei que isso prejudicasse o meu país. Mas depois de ler este título não tenho tanta certeza.

Comissão Europeia processa Portugal por não proteger as galinhas poedeiras

O que parece que está acontecendo no Pinheirinho...

...é a consequência de um entendimento entre poder e dinheiro para impor os interesses da especulação imobiliária sobre os da população.

O art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil reconhece o direito à moradia como um direito fundamental. Deixemos isso ficar na mente. Em 2006, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra ocupou um terreno desocupado pertencente a um grupo empresarial. O curioso é que esse terreno, após o assassinato de antigos proprietários sem herdeiros em 1969, foi bem vago e, como tal, passou para as mãos do Estado. E, ainda assim, acabou misteriosamente incorporado pelo grupo de Naji Nahas, que, aparentemente, deve 15 milhões de reais em impostos à Prefeitura de São José dos Campos. E agora o Estado age para desocupar terra em nome da propriedade privada sem que se saiba bem como ela deixou de ser pública.

Agora vejam este vídeo.
httpv://www.youtube.com/watch?v=H8pPOYHmkCc
Como diz o site Maria Frô, observe com atenção o casal com o carrinho de bebê por volta de 2:40; homens pedindo para a polícia parar de atirar que na rota dos tiros tinha idosos, cadeirantes por volta de 4:40; aos 5:40 mulher e criança tentando passar no meio de tiros; as expressões de terror e indignação da família por volta dos 6:03.. Leiam também a reportagem do Blog do Tsavkko para uma perspectiva in loco do que aconteceu no Pinheirinho.

Independentemente de a ação policial estar apoiada numa decisão de tribunal - suspensa pela Justiça Federal e reafirmada sem base jurídica por um juiz estadual -, o que vemos aqui não é uma simples operação de desocupação. Entrar com helicópteros e balas de borracha e atirar indiscriminadamente em pessoas cujo único crime é morar na sua casa, sem acautelar a segurança de crianças, inválidos e idosos, é um ato injustificado e desmedido. A lógica de "no Brasil é assim" já teve o seu tempo. Nenhuma Polícia, em nenhum país do mundo, tem legitimidade para se virar contra a população que jura proteger. Qualquer ordem superior que a oriente nesse sentido é inconstitucional e, como tal, nula.

Enquanto ventos tristes sopram em São José dos Campos, é bom lembrar Adoniran Barbosa. E também que o art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil reconhece o direito à moradia como um direito fundamental.
httpv://www.youtube.com/watch?v=0NCvDg6E3JQ

Explicação ao Brasil da lista da Vice Portugal

A Popload republicou uma lista da Vice Portugal. Para desvanecer as dúvidas sobre os artistas portugueses que lá aparecem:

B Fachada: bem mais novo do que Marcelo Camelo e bem menos fashion. Mais um Devendra Banhart, se Devendra Banhart tivesse influência de música tradicional portuguesa e pop-rock tuga dos anos 80.
httpv://www.youtube.com/watch?v=Ld2hDc5R9iQ&feature=related

Fausto Bordalo Dias: um dos gigantes da música nacional, veio na onda de cantautores de esquerda ligados à revolução democrática nos anos 70. Autor de "Por este rio acima", um dos álbuns mais importantes de sempre em PT. Pode ser considerado um Caetano, mas, como esteve muito tempo desaparecido, será mais um Tom Zé, menos alegre e menos louco.
httpv://www.youtube.com/watch?v=vPxBNVs0s6E

Norberto Lobo e Filho da Mãe: os dois novos expoentes do violão em Portugal. Com a influência clássica da guitarra portuguesa de Carlos Paredes, mas já com trejeitos de jazz e rock - ao contrário da geração anterior -, fazem música melancólica, muito, muito portuguesa e muito, muito bela.
httpv://www.youtube.com/watch?v=XL6r9E7dR1c&feature=related
httpv://www.youtube.com/watch?v=O3J0OHNHOEw

Paus: a banda rock que está acontecendo em Portugal. Têm um toque eletropunk, um tanto de pós-rock e, mais uma vez, bastante de rock português dos anos 80. Estive em Portugal em Outubro e posso dizer que todo mundo lá adora Paus.
httpv://www.youtube.com/watch?v=SMwbye9H84Q

As chouriças pretas da Rosinha do Lapa


Não lhes vou chamar morcelas, porque toda a vida lhes chamei isto: chouriças pretas. Ou de sangue, pronto. Digo com segurança que as da Rosinha do Lapa, que tem o talho na Praça da República de Monção, são as melhores do mundo. Não sei se é do fumeiro ou da carne, mas alguma coisa elas têm, porque são diferentes de quaisquer outras. Em Monção, notava logo a diferença quando a Rosinha não as tinha e a minha mãe tinha de comprar outras noutro lado qualquer. Em Coimbra, ficava-me pelas alheiras que a minha amiga Cândida trazia de Macedo. Deliciosas também, mas alheira é outra liga. Quando almoçava cozido à portuguesa nos cafés de Lisboa e provava aquele sucedâneo com sabor de plástico de embalado, chorava por elas. Aqui, no Brasil, foram das primeiras coisas que trouxe, porque o André, com quem fiquei na primeira semana, me disse logo que isto não era famoso de enchidos e que, se lhe queria mostrar gratidão, era um bom jeito. Nunca mais deixei de as trazer. Se Marcel Proust tivesse conhecido a Rosinha do Lapa, não se tinha andado a meter nas madalenas para lembrar a infância.

Não é normal cozinhar-se com sangue em São Paulo e os nativos ficam meio surpreendidos quando as vêem. No Natal, levei uma para um churrasco na minha produtora (ver foto) e as reações variaram entre a repugnância e a adesão total. Pelo meio, houve quem tivesse franzido o sobrolho no início e repetido a dose no final.

Durante a minha vida aqui, as chouriças pretas da Rosinha do Lapa acompanharam-me por alegrias e tristezas. Uma alegria foi o cozido à portuguesa que o pessoal do Inov-Art armou quando ainda cá estávamos todos e pude vê-los, todos de diferentes regiões de Portugal, a confirmar o que eu já sabia: que são as melhores da História. As tristezas deram-se normalmente como, quando ontem, assei a última chouriça. Mas talvez esqueça isso quando hoje estiver a almoçar a outra metade dela com um belo arroz de açafrão.

Ação e reação

Há um limite para escrever filmes. Um roteiro é um exercício de causalidade. Aquilo que acontece no início tem que ter uma justificação mais à frente. Um guião perfeito é aquele que se fecha em si mesmo, que apresenta um conjunto fechado de causas e consequências conduzido irremediavelmente para um final catártico. Mas a vida não é lógica ou consequencial. Por exemplo, estive a ver o primeiro filme dos X Files, que começa com uma cena em que um cavernícola encontra um amigo morto e com uma ferida aberta na pele. Ele poderia pôr o dedo na ferida e provar o seu sangue. Está dentro do universo selvagem da pré-história, a lógica não se feriria com isso. Mas não faria sentido no filme, porque não serviria para nada mais tarde. A vida é construída com acasos, acessos inexplicáveis, coisas que as pessoas fazem sem justificação. E uma história, com essa ordem ou não, tem de ter um princípio, meio e fim, porque as narrativas servem para acreditarmos que a nossa passagem livre e desorientada por este mundo segue uma continuidade e não faz parte do caos que reina sobre tudo o mais. Uma história não pode copiar a ordem natural das coisas na sua desconexão. Se o fizer, perde a sua motivação, desencontra-se do seu DNA.

Não acredito em ter vida privada

Pelo menos, enquanto escritor. Por duas razões, ou talvez três. É preciso trabalhar muito, sentado a escrever e de pé a viver. Mesmo quando se vive, trabalha-se, porque o nosso trabalho é conhecer o mundo, as pessoas, os temperamentos. Sair à noite e conhecer alguém, amar alguém, quebrar um coração ou ter o teu quebrado, tudo isso é trabalho. Como todo o trabalho, tem objetivos a serem cumpridos. O nosso é dominar o conhecimento da polpa humana. Mas o escritor também não pode ter vida privada porque a vida do escritor é pública. Tudo o que se vive vai alimentar o que se produz. Por isso não acredito em vida privada.

Alô, alô, estupro, Brasil

Os fatos são que uma moça ficou bêbeda no Big Brother, andou aos amassos com um rapaz, foi dormir e ele saltou para baixo dos lençóis. Desde essa noite, o Brasil anda a discutir se ela foi estuprada. Se uma mulher bêbeda pode ser violada, os limites do consentimento, se o rapaz estava bêbedo também, se um bêbedo pode estuprar, etc. A Globo não mostrou nada na versão editada e, se não fosse o pessoal que viu tudo no pay per view e fez barulho nas redes sociais, talvez a polícia nem tivesse sido chamada.

Talvez seja o final da reality TV nos moldes que conhecemos dos últimos 15 anos. Parece-me claro que um programa que chega ao ponto de tornar tópico de discussão se uma mulher foi estrupada ou não em frente às câmeras foi longe demais. O formato BB assenta em fazer coisas acontecer para gerar fofoca, esse é a motivação dele. Um noticiário informa, uma novela conta histórias, o BB gera fofocas. Tudo bem. Ninguém é santo, a fazer TV muito menos. Mas permitir-se colocar pessoas numa condição em que este tipo de dúvida pode surgir é chegar no puro vazio. O atrativo que o BB poderia ter foi-se. A fantasia que ele criava, o mundo além do mundo que, como a Disneylândia, ele arquitetava, desfez-se quando ele se perdeu dentro dele mesmo e bateu de frente contra o real. E essa fantasia nunca mais se recuperará, porque mais ninguém volta a acreditar no Papai Noel depois que sabe que ele é o tio com uma barba.

Marcelino Freire tem razão:
Acho que virei puritano,
melhor eu ficar na minha.

Só não posso concordar
que apenas o negro
tenha de pagar pelo abuso
coletivo.

Por debaixo dos panos,
todas as noites,
sempre foi este
o nosso programa
preferido.

Pensando

Uma vez, ouvi Carolina Kotscho dizendo que um roteiro é um objeto de sedução. A frase é em cheio e não se costuma ler em manuais de escrita. É um texto técnico, ao mesmo tempo uma obra artística que alimenta outros artistas. Ou combate, pois, como disse Truffaut, filma-se contra o roteiro e monta-se contra a filmagem. Mas, para além disso tudo, um roteiro é um instrumento de engate. Escreve-se para fascinar o teu chefe, colegas, produtores, investidores, canais de televisão, estrelas, gajos do marketing. E escreve-se para ti mesmo também, porque qualquer sedução é um discurso com que, na verdade, te conquistas a ti mesmo e a outra pessoa é só alguém que te confirma. A cada história nova que me é proposta, o meu primeiro desafio antes de escrever uma palavra é entender como me posso apaixonar pelo projeto. É uma atividade em que me questiono, me guerreio e me encontro ou desencontro. Entregar-me a um trabalho, como entregar-me a uma pessoa, exige que me apaixone por ele. Que me conquiste a mim mesmo através dele, que ele me confirme. Mas os trabalhos variam por necessidade e uns entram no lugar dos outros. Por isso, a diferença entre mim e as meninas que vendem amor no Love Story não é assim tão grande.

Cine Qua Non nos prémios LER BLOGTAILORS


A Cine Qua Non, fenomenal revista com que colaboro, concorreu a um prémio de edição para melhor design de Arte e Fotografia e foi seleccionada para a fase final do concurso. As três “finalistas” estão agora a votação. Podem votar aqui!

o livro

O livro tem que ser um grito. Do início ao final, um grito de terra e dor. Sem divisão de capítulos, porque os gritos não têm capítulos. Um monólogo que junte tudo o que tenho feito. E tudo é um grito de mim mesmo e um alívio e uma confissão e uma condenação e uma penitência. Uma continuidade de dor e escândalo que merece existir de tão negra e violadora e fundamental. O livro tem que ser a verdade no que diz e como diz. O livro tem que ser meu e um escolho um incómodo um berro bruto com que o passado insulta o futuro e todos os tempos e pessoas se encontram para odiar. O livro tem que ser ódio ódio ódio tudo o que é negro e toda a raiva quente de um confronto. O livro é negro e sangue e sangue negro. O livro é eu.

A chuva

A chuva de São Paulo lembra-me do documentário do Possidónio Cachapa sobre o Urbano Tavares Rodrigues. O documentado diz a dada altura que a mulher compreende a necessidade de solidão dele enquanto escritor. Experimentei a solidão um destes dias, quando não tinha nada para fazer, nada para dizer a ninguém, nenhum lugar aonde ir. Um rumor remexeu-se do fundo e cavou caminho até acima. E eu pude escrever como quando era adolescente e não pensava, com os olhos fechados, só os abrindo de vez em quando para ver se as linhas não se estavam a atropelar. Estava a chover também. Não havia carros, não havia pessoas a passar na rua. O meu quarto pequeno, existir num lugar e tempo sem propósito, sem nada a entender, nenhum livro para ler, nenhum filme para ver, nenhum grito urgente a que assistir: tudo resultou em linhas negras, impensadas, puras, num caderno. Existir simples, básico, sem aplicativos, e deixar o resto falar.

Conto inédito: "Carta aberta do Grupo das Sextas Feiras relativa ao falecimento do Presidente da República"


Escrevi este conto em 2010 para uma revista institucional. Compreensivelmente, ela recusou-o e, para o substituir, escrevi uma carta triste. Ele ficou guardado no meu computador, até que hoje, enquanto via o V for Vendetta, me lembrei que estive em Londres no 5 de Novembro, onde me encontrei com manifestações a serem travadas, e que hoje vi um vídeo de estudantes, que se manifestavam sentados e pacificamente, a serem sprayzados com gás pimenta, como quem passa Raid em melgas porque nos vêm perturbar o sono. Por isso tudo, acho que chegou o momento de o dar a ser lido.


Caro leitor, se nada mais fixar deste texto, eu desejo, em representação do Grupo das Sextas-Feiras, que pelo menos fixe a seguinte mensagem: não fomos nós a matar o Presidente da República. Nós apenas operámos a consequência da causa que foi a acção do Governo e de uma classe política corrupta, do mesmo modo que um buraco numa parede é causado, não pela bala que a fura, mas pelo homem que a dispara. Os motivos para o rapto e condições para a libertação do sequestrado foram assumidos desde o início e tinham como principais pontos os seguintes:

- Fiscalização de todos os actos governamentais por uma entidade civil, apartidária e independente;
- Suspensão das quotas de produção impostas pela União Europeia;
- Reforma agrária, com limitação dos hectares apropriáveis pela mesma pessoa singular ou colectiva;
- Obrigatoriedade das multinacionais se submeterem a uma fiscalização prévia de merecimento ético e ecológico antes de poderem actuar no país;
- Possibilidade de expulsão das mesmas, caso esse merecimento se perca;
- Declaração de nulidade de todas as regras de propriedade intelectual;
- Nacionalização de toda e qualquer forma de propriedade em zonas seleccionadas, com especial rigor na ilha da Madeira;
- Definição de intervalos rigorosos que progressivamente anulem as diferenças salariais entre os trabalhadores dentro da mesma empresa, em todas as empresas portuguesas;
- Fim do ensino universitário tendencialmente exclusivo, privatizado e com finalidade lucrativa, com um pedido oficial de desculpas à nossa geração e ao país.


Estes pontos foram ditados ao PR assim que ele acordou do transe que lhe induzimos e repetidos a todos os nossos interlocutores durante o processo de negociação que se arrastou durante uma semana. Recordo que, após essa primeira leitura, o comentário feito pelo PR foi particularmente insultuoso relativamente às nossas boas intenções e, como tal, tivemos de pô-lo a dormir outra vez. Mas isso agora não interessa.

Durante a negociação, ficámos surpreendidos com o modo como o Governo e também a Casa Civil pareceram particularmente indiferentes aos nossos apelos. Os nossos telefonemas não eram atendidos e, quando o eram, não ouvíamos os famosos ruídos que indiciavam escutas. Ao contrário de tantos cidadãos, ninguém se interessava pelo que dizíamos, mesmo que tivéssemos raptado o Presidente. Riram-se das nossas condições, não acreditavam em nós, ainda que (e talvez precisamente porque) não exigíssemos qualquer quantia monetária para a libertação e apenas o cumprimento daqueles nove pontos, que considerávamos, ainda e sempre, necessários para que este país se tornasse, se não recomendável, pelo menos tolerável. Já num período de míngua de soluções que não se resolveu nem quando propusemos que o PR falasse directamente ao telefone com o PM e o presidente da AR – as agendas carregadas deles não o permitiam - vimo-nos obrigados, em desespero, a recorrer à solução que não desejávamos, mas que na altura se apresentou como a única possível.

A primeira orelha do PR foi enviada no dia 18 de Março para a sede oficial do maior partido da oposição e não, como correu nalguns fóruns anarquistas na Internet, directamente para a Primeira-Dama. Reacção: silêncio, apesar de lá estarem bem claros todos os nossos devidos contactos e motivações. Tememos por um extravio postal e, a 20 de Março, cortámos a segunda orelha, que remetemos para a sede do partido do Governo em envelope verde registado, o que, para uma pequena organização clandestina, representou um grande custo… mas não suscitou impacto maior do que os CV que enviámos logo após acabarmos a licenciatura.

Quero salientar o seguinte ponto: todas as intervenções cirúrgicas foram executadas pelos nossos membros estagiários de Medicina, com recurso ao material que conseguiram surripiar dos respectivos locais de trabalho. Somos raptores, mas não somos bárbaros. O sofrimento do PR foi reduzido ao mínimo possível e foi com satisfação que verificámos que, nos seus breves intervalos de semi-consciência, nada de reprovador exprimiu sobre a nossa acção. Enquanto órgão unipessoal, o PR compreendia que o extirpássemos dos órgãos de modo lento e calculado. Isso animava-nos e levava-nos a entender que estávamos no caminho certo.

Considero que, após esta contextualização, o leitor conseguirá entender e, quem sabe, ser compassivo com o nosso acto seguinte, discutido até à exaustão em várias reuniões extraordinárias e levado a cabo com grande esforço e mobilização de meios. O aterrador silêncio que era contraposto às nossas acções só podia ser quebrado, sabíamo-lo, com uma atitude drástica. Como tal, no dia 22 de Março anestesiámos e desmembrámos o PR. Distribuímos os seus membros pelos seguintes locais: as pernas para o centro do campo dos dois estádios da Segunda Circular; o braço esquerdo para o nariz do Cristo-Rei; e o braço direito masturbando um dos leões nas escadas da Assembleia da República.

Concordando ou não com o método escolhido, o leitor diria que isto terá chegado, que esta acção foi suficiente para que pelo menos alguém se interrogasse sobre o se passava. Mas isso não aconteceu. Da noite para o dia, os monumentos foram limpos dos elementos perturbadores, a normalidade foi reposta. Então compreendemos: alguém tinha interesse em que não se soubesse que o PR fora sequestrado, como se pudesse beneficiar de um Palácio de Belém silencioso. Ou então alguém preferiu assistir à lenta decomposição de um homem a fazer cumprir nove simples pontos - presumindo, claro, que saberia fazê-los cumprir.

Quando o estado de fraqueza extrema do PR causou o seu falecimento (ao que parece, ele padecia de anemia crónica, o que nunca nos foi comunicado), o Grupo das Sextas-Feiras foi desactivado e todas as suas actividades suspensas. Colocámos o semi-presidente no chafariz do Freeport de Alcochete, onde considerámos que seria fácil encontrá-lo. Porém, até hoje não ouvimos qualquer notícia que relatasse a descoberta do corpo ou mencionasse os factos enumerados na nota que deixámos com ele. O tempo foi passando e a única conclusão possível é que não nos faremos entender por quem de direito. Ninguém nos vai ouvir, ninguém nos vai ligar. Nem você, caro leitor, que provavelmente estará a ler este texto como se de ficção se tratasse. Passados todos estes dias, percebemos enfim que nem a morte do Presidente da República chega para alguma coisa neste mundo estúpido. Jogando limpo ou fazendo batota, nunca venceremos nada e essa é a única certeza possível.

Cumprimentos.

O poema novo que disse no Slam Lx na semana passada

Eu sou um homem de metáforas
Perdido nas diásporas
Tudo o que digo
Pode ser mal entendido
Tudo o que faço
Pode ser um embaraço

Um dia, disse a uma amiga
“Dás-me frio na barriga”
E ela, agradecida,
Ofereceu-me a perseguida
Mas não era frio de paixão
Era só indigestão

Há pouco, a moça do bar
Fixou em mim o olhar.
E perguntou “queres gelo?”. Não era feia
E falei de mamilos e nove semanas e meia
Porque a mente não me pára
E ela atirou-me o gelo à cara

Eu sou homem de metáforas
Hipérboles e anáforas
Aquilo que falo
Será burro ou cavalo.
E acostumei-me, de murro em murro,
A passar de cavalo pra burro.

Quando ligo a televisão
E vejo o estado da nação
No Parlamento
Não sinto qualquer sofrimento.
Enquanto tomam conta de nós
Não precisamos levantar a voz

Tudo está bem
Não olhes para além
Deixa-te ficar onde estás
As coisas não são más.
Tens a vida assegurada
Não te incomodes com nada.

Sou um homem de ironias
Sarcasmos e alegrias.
Entende-me quem quiser,
O resto só se puder.
Não confundam a minha voz,
Ela é minha, ela é nós.

Eu sou um homem de metáforas,
Digo palavras tão ásperas.
Vagueiam entre o bem e o mal
Como o pecado original
E vêm plenas de prazer
Doam a quem doer.

Eu não sou quem aqui está
Neste palco, pessoa má
Ou boa, depende da perspectiva.
Eu não sou da gente ativa
Que faz o mundo funcionar
Com o Excel a dar e a dar.

Eu sou dali atrás,
Só no escuro estou em paz
E sozinho é que me encontro
Me defino ponto a ponto.
Eu não sou eu.
Eu não sou eu.